Uma proposta de reflexão coletiva para o
OBSERVATÓRIO DA SAÚDE DO DF (Parte I)
Geniberto
Paiva Campos - maio/2014
1) Um breve histórico da trajetória do SUS
Decorrido
um quarto de século da existência e do funcionamento do SUS/Sistema Único de
Saúde brasileiro, urge fazer permanentes avaliações do Sistema e o impacto da sua implantação na Saúde Pública do país.
Esta frase deveria soar como
um chamamento, talvez um alerta, para todos os cidadãos preocupados com a
formulação e a execução de políticas sociais, potencialmente capazes de
corrigir as graves distorções e desigualdades prevalentes no modelo de
desenvolvimento adotado no Brasil nas
últimas décadas.
A criação do SUS, no momento
em que o Brasil reencontrava o caminho da Democracia, após décadas de
turbulências político-institucionais, representa a vitória de um grupo de
sanitaristas engajados na luta pelas garantias do acesso à Saúde como direito
de cidadania e dever do Estado, finalmente, expresso como norma constitucional.
Entretanto, o Sistema
Público de Saúde vem, ao longo do tempo, enfrentando dificuldades para exercer em plenitude o que
está expresso na letra e no espírito da Constituição Cidadã, promulgada em
1988. Problemas que, pela sua complexidade, merecem análises atentas a partir do
entendimento de que o Estado brasileiro sofreu mudanças e inflexões
significativas, quando da inserção do
Brasil como mercado emergente da economia global.
Transcrevendo Octávio Ianni (1997): “este é
o contexto em que se desenvolve a reestruturação do Estado compreendendo a
desestatização, a desregulação, a privatização e a abertura dos mercados. Redefine-se, de alto a
baixo, a estrutura do aparelho estatal
de modo a fornecer e dinamizar a transnacionalização
da indústria, da agricultura, do comércio e do sistema bancário.”
Em seu nascedouro o SUS,
originário de concepções corretas e socialmente justas, atribuiu à iniciativa estatal
praticamente toda a carga de responsabilidade na organização e na oferta dos serviços de Saúde. Cabendo ao setor
privado o papel de sistema suplementar, previsto na nova Constituição.
Simultaneamente, a prática médica passava por profundas modificações,
incorporando, com surpreendente rapidez, e consequentes aumentos de custos,
novos conhecimentos científicos e tecnologias diagnósticas e terapêuticas, antes
impensáveis. A conjunção desses fatores impactou fortemente o SUS ao longo da
sua existência. E é possível perceber o crescimento lento e inexorável do
Sistema Suplementar, colocado como alternativa ao Sistema Público.
Se considerarmos o governo
José Sarney – 1985/89 – como um período de transição para a normalidade
democrática e reconstitucionalização do país, a eleição de Fernando Collor – 1990/92
– substituído pelo seu vice, Itamar Franco – 1992/93 – marca um período de
forte questionamento do Estado¸ com objetivos de modernização da sociedade
brasileira e o sempre esperado “salto para o Desenvolvimento”. Os governos
subsequentes, dispondo, a partir de 1998, do estatuto da reeleição,
continuaram, apenas com diferentes nuances, esse questionamento da missão do
Estado como indutor e executor de políticas públicas. Os governos Itamar
Franco/Fernando Henrique Cardoso propiciaram o controle racional do processo
inflacionário, dotaram o país de uma moeda forte, o Real, mas seguiram a trilha
do neoliberalismo. Os governos subsequentes, Luis Inácio Lula da Silva e Dilma
Roussef promoveram consistente inclusão social. Com esforços evidentes para
fazer do Estado o elemento indutor do desenvolvimento. Mas, em essência, respeitaram
os cânones do neoliberalismo ortodoxo. E nenhum deles, no espaço de 20 anos dos
seus mandatos, lograram fazer do SUS um
programa efetivo de Saúde Pública. O SUS persistiu enfrentando todas as
dificuldades impostas pelo aparato legal que nega ao Estado tornar-se efetivo
na implantação e no desenvolvimento de
políticas públicas.
O impacto dessas novas concepções no âmbito do
Congresso Nacional foi muito intenso. A
elite brasileira, ou se preferirmos, a classe dominante, sobretudo aquela representante do capitalismo financeiro,
rentista e não produtivo, percebeu que o
controle da “fábrica de leis” – senado e câmara federais – tornara-se a arena
decisiva para o caminhar seguro do processo de modernização, de acordo com o
seu ponto de vista e interesses de classe. Alguns experientes analistas
políticos afirmam que o maior partido do Congresso é o “partido do
empresariado”. A tudo isso o SUS vem conseguindo resistir, a duras penas. O
episódio da CPMF, em 2007, é emblemático. Recursos substanciais, cerca de 40
(quarenta) bilhões anuais, foram retirados do SUS, por decisão do Congresso
Nacional, decisão amplamente comemorada,
sem nenhum pudor, por parlamentares eufóricos. Que defendiam, e ainda defendem,
com boa dose de cinismo, “mais recursos para a Saúde Pública”. O retrato mais
evidente da ambiguidade que permeia os “apoiadores” do nosso Sistema de Saúde.
O êxito de um programa de saúde pública, sob liderança estatal e com forte
enraizamento popular, é algo a ser evitado como anátema. Os impasses do SUS,
seus avanços e recuos, decorrem em boa parte dessa concepção. Declara-se apoio
puramente retórico ao Sistema, ao mesmo tempo em que criam-se as amarras legais que, na prática, impedem o seu
funcionamento.
2) O SUS
visto por dentro
Dos
princípios que norteiam o SUS, dois deles resumem os seus nobres objetivos,
enquanto programa social: 1. UNIVERSALIDADE
da cobertura: TODOS os cidadãos
brasileiros passaram a ter direito de acesso à assistência à saúde; 2. INTEGRALIDADE das ações de Saúde: significando atuação em TODAS
as etapas do processo Saúde/Doença, a saber,
prevenção/diagnóstico/tratamento/reabilitação/cuidados paliativos. Ações
assumidas, constitucionalmente, como DEVER DO ESTADO.
Outro
importante aspecto, este de ordem estratégica, estabeleceu o MUNICÍPIO como núcleo responsável pelas ações de Saúde,
criando-se, em consequência, um processo irreversível de descentralização,
pulverizando as ações do Sistema Único em milhares de estruturas estanques. Sem
tempo para a criação de uma definição doutrinária precisa, cada município, boa
parte deles sem nenhuma tradição ou experiência prévia com as complexas
questões sanitárias, com o campo da saúde em permanente mudança, via-se
compelido a criar as condições para a organização e operacionalização de um
sistema de atenção à saúde, atuando, por imposição legal, em todos os níveis de
complexidade primário, secundário e terciário, conforme estipulavam as normas
administrativas vigentes. Nesse aspecto, a Federalização foi levada às últimas
consequências. As instâncias de
articulação ,criadas em decorrência do esvaziamento político e administrativo
das Secretarias de Saúde - comissões bi
e tripartites – não se mostraram eficazes em promover a harmonia funcional do
Sistema. Instâncias efetivas de permanente avaliação das ações foi o elemento que esteve de todo ausente, ou
não conseguiu mostrar sua indispensável atuação na regulação e controle do
Sistema. Gerando, muitas vezes, ineficácia, desperdício de recursos e
incapacidade operacional.
Como
exemplo desse descompasso do Sistema, após mais de duas décadas de
funcionamento, aproximadamente 800 (oitocentos) municípios brasileiros não
dispunham de médicos ou condições
mínimas de infraestrutura assistencial. O que gerava justas reclamações da
população desassistida e graves preocupações das prefeituras, legalmente
responsáveis por essa omissão. Importante lembrar que foi este fato que levou a
Associação Nacional de Prefeitos a criar o movimento “Cadê o Doutor?”, o qual
teve como pronta resposta do Ministério da Saúde a criação do programa “Mais Médicos”
em 2013, gerador de sérias polêmicas e conflitos com as entidades de
representação da classe médica.
O
acervo de realizações do SUS é um fato incontestável. O elevado número de
procedimentos médicos e cirúrgicos é contado em milhões. Sem o SUS, um imenso
contingente de renais crônicos ficaria sem assistência e com a sua sobrevida em
risco. E um número elevadíssimo de cardiopatas evoluiriam para situações
terminais da sua doença cardiovascular. São evidentes as modificações no perfil
epidemiológico do país, ocorridas nas
últimas décadas e que tiveram a participação direta ou indireta do SUS. Cabe
então a pergunta: por que o SUS não é percebido positivamente pela população
carente como um Sistema de efetiva
prestação de assistência integral à saúde? Por que 72% da população considera a
Saúde como um dos maiores problemas das políticas públicas do Brasil, como se
não levasse em conta a existência do SUS?
Quais
as medidas a serem adotadas no sentido de corrigir os rumos do Sistema? Talvez
seja correto apontar correções no âmbito externo, isto é, no aparato estatal e
na organização interna do próprio SUS, enquanto sistema prestador de serviços,
na complexa e desafiadora área da saúde. E focar todas essas medidas de
correção desde o ponto de vista do usuário, a razão da existência do Sistema
Único de Saúde.
(Caberia
uma indagação pertinente nesta análise: por que as instituições públicas
de saúde, de êxito inegável nas esferas assistencial, de ensino e
pesquisa “fogem” do modelo estatal ortodoxo de organização? Provavelmente
porque seriam submetidas, neste modelo,
a dificuldades intransponíveis, em função do controle draconiano de organismos
criados com o alegado intuito de defender a correta aplicação de recursos
públicos, mas que na prática inviabilizam o seu funcionamento. Várias
instituições de excelência podem ser citadas. Todas adotando modelos de
fundação, associação, parcerias público/privadas, entre outras modalidades). – FIM
DA 1ª PARTE –
3) QUEM SÃO OS “INIMIGOS” DO SISTEMA
PÚBLICO DE SAÚDE? (Parte II do
texto)
Pelas
considerações emitidas na primeira parte do presente artigo, os “inimigos” do
SUS poderiam ser classificados em 2
categorias: externos e internos. Se
essa análise corresponder à realidade, caberia, então, fazer as necessárias e
imprescindíveis mudanças: 1. no ambiente interno, aparentemente mais fácil de
ser realizada; e 2. no ambiente externo, por motivos óbvios de bem mais difícil alcance. Esses
adversários do Sistema poderiam ainda ser classificados em reais (mas
disfarçados) e aparentes.
A remoção dessas dificuldades ao
desenvolvimento do Sistema passa por um
complexo jogo político. Que, logicamente, começaria pelas mudanças no
âmbito interno. Corrigindo falhas estruturais e operacionais do Sistema. É
fácil perceber que o Sistema Único de Saúde representa, nos dias de hoje,
uma pesada máquina administrativa, tendo
incorporado, ao longo do tempo, vícios e virtudes. Pelas diferenças regionais,
com características culturais próprias de cada macro região, o Sistema Único,
naturalmente, adquiriu certas nuances na esfera administrativa e na forma de
prestação de serviços assistências. São fatores a serem levados em conta,
frente a eventuais mudanças no Sistema.
Para
alguns analistas e militantes da Saúde Pública o SUS precisa ser consolidado.
Para outros, mais exigentes, “reinventado”. Este um termo que causa algum tipo de justificada repulsa às lideranças tradicionais
do Sistema, que imaginam o SUS um produto perfeito e (bem) acabado,
necessitando, no máximo, de pequenas correções de rumo. É possível que tenha
chegado a hora de se criar um FÓRUM PERMANENTE DE AVALIAÇÃO DO SUS, ou uma
instância equivalente. Escrutinando o seu ambiente interno e também o ambiente
externo, nos quais, sabemos, residem uma série de obstáculos ao pleno
funcionamento do Sistema. Evitando avançar em possíveis sugestões na composição
deste fórum permanente, ficaria por enquanto, ressaltada a necessidade de constante ausculta da população usuária do SUS. Neste caso, o
melhor juiz da qualidade dos serviços.
A
serem avaliados, no ambiente externo, os
gargalos de ordem legal, plantados de forma aparentemente inocente no caminho
dos gestores públicos, sempre com os
mais altruístas propósitos de moralização. Na pauta prioritária para desimpedir
os caminhos da Saúde Pública, a necessária revisão da aplicação da Lei de
Licitações; do Concurso Público para Contratação de Pessoal e, por fim mas não
menos importante, a Lei de Responsabilidade Fiscal , a temida LRF. Ou a Saúde
obtém, finalmente, um status especial no Serviço Público ou pagará a condenação
perene à inoperância e à ineficiência. Ou continuará buscando formas escapatórias
(“gambiarras”), cada vez mais criativas. Há que se buscar métodos inovadoras e inteligentes de se prevenir, evitar
e punir atos de desonestidade com a chamada “coisa pública”, com outros e mais eficientes padrões de controle e
monitoramento. Reservando-se os atos punitivos para os que forem flagrados em
comprovados atos de prevaricação ou abuso
das normas administrativas vigentes. Evitando-se, dessa maneira, punir
os usuários que dependem, exclusivamente
dos serviços públicos. Esta, presume-se, uma proposta de difícil trânsito nas esferas legislativa e
judiciária. Mas perfeitamente possível de se tornar realidade. Desde que a
inteligência criativa vença o preconceito. É preciso deixar claro: a destinação
dos 10% do Orçamento da União para a Saúde resultará em parcos resultados, se
esta medida não vier acompanhada da possibilidade efetiva de gastos coerentes desses recursos.
aplicados na melhoria efetiva da prestação dos serviços de saúde. E não mais
ficaremos andando em círculos, com o velho e inútil dilema: “financiamento x
gestão”.
Finalmente,
o olhar crítico, severamente crítico, para o ambiente interno. É preciso fazer
mudanças na organização interna do sistema de prestação de serviços. A Atenção
Primária de Saúde/APS não ocupa o seu
devido - e estratégico - lugar no Sistema público de Saúde..
É essencial rever o discurso político e as
palavras de ordem da militância do SUS, em todos os níveis. Definidos os
“inimigos” do SUS, os reais mas, às vezes,
com o disfarce de aliados, que ao
longo do tempo criam todo tipo de dificuldades ao pleno desenvolvimento do
Sistema. E aqueles decorrentes de erros na concepção estratégica original do
SUS. Que vem gerando graves distorções na prestação de serviços, resultando em
ineficiência e desperdícios funcionais. De sérias consequências, considerando o
cenário mutável e desafiador da assistência à Saúde. Com mudanças bruscas de
conceitos e práticas diagnósticas e terapêuticas. Situação crítica, a reclamar
respostas criativas para problemas complexos. Soluções primárias ou simplórias
para desafios de tal envergadura resultam em sérios problemas operacionais para
o Sistema.
Nesse
sentido, torna-se urgente rever os conceitos e as bases operacionais da APS.
Sem exagero, a APS, tal como concebida e aplicada atualmente, pode ser assumida
como inexistente. Este fato torna o padrão assistencial falho e inoperante.
Sobrecarregando a estrutura hospitalar. Onerando profundamente toda a rede
assistencial. Sugere-se, como prioritário, o enfoque na APS. Tornando-o o
núcleo estratégico de toda a rede assistencial. Capaz de organizar a demanda, e através desta, organizar e harmonizar
a oferta de serviços. Focar as ações
na estrutura da Família, com o
atendimento de crianças, adolescentes, adultos e idosos. Valorizar, não somente
no discurso, o papel do agente
comunitário de saúde/ACS , peça fundamental de toda a engrenagem
assistencial. Rever, criticamente, as funções das Unidades de Pronto Atendimento/UPAs, como unidades integradoras
entre a assistência primária e o nível hospitalar. Reduzindo custos e tornando
o atendimento aos usuários ágil e eficiente.
O
desafio, portanto, é operacionalizar essas ideias. Atuar, simultaneamente, nas
esferas política (ambiente externo) e administrativa/operacional (ambiente
interno). Buscando, firmemente, a
consolidação do Sistema em bases sólidas. Passando da retórica à
prática. Harmonizando os irretocáveis fundamentos conceituais que deram origem
ao SUS, um dos maiores programas sociais do mundo, com o mais elevado nível
assistencial. Priorizando, sempre, o Usuário.
Este o desafio. Perfeitamente possível
de ser vencido. Desde que haja criatividade, competência técnica e decisão
política. UM OUTRO SUS É POSSÍVEL.
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