quinta-feira, 14 de maio de 2015


A vida é real e de viés!

Luciano Ramos
Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP

Onde voas bem alto, eu sou o chão.

E onde pisas o chão, minha alma salta e ganha liberdade na amplidão. Onde queres o sim e o não, talvez. E onde vês, eu não vislumbro razão! 

Ah! bruta flor do querer!

Eu queria querer-te amar o amor. Construir-nos dulcíssima prisão. Encontrar a mais justa adequação. Tudo métrica e rima e nunca dor, mas a vida é real e de viés!

(O Quereres, Caetano Veloso)

Encantam-me as contradições da vida. Queremos todos os prazeres que ela possa nos proporcionar, mas muitos rejeitam os custos que lhes são inerentes. Ficamos com as rosas, descartamos os espinhos.

Esse comportamento não difere da relação que temos com algumas normas jurídicas, principalmente com as insistentes na imposição de limites aos nossos desejos. Não gostamos de estar presos, independentemente da doçura desta prisão.

De todas, a Lei de Responsabilidade Fiscal - 15 anos recém-completados no último dia 04 de maio – é o melhor exemplo desta relação de amor, ódio, métrica, rima e dor.

Não conheço pessoa que rejeite, por negativos, os efeitos da estabilidade financeira e do equilíbrio entre receitas e despesas. Todos queremos a razoabilidade dos gastos do Poder Público, sem déficits sistemáticos, pois estes acabarão em mais recursos retirados de toda a sociedade.

Para isso, precisamos de limites, proibições, contenções. Somos hedonistas, como tais, buscaremos maximizar nossos prazeres até o ponto em que encontremos um obstáculo.

Felizmente, no Brasil, há uma barreira para desejos de gastos públicos tresloucados, denominada LRF – verdadeira tradução em direito financeiro da realidade da vida: em médio e longo prazo, gastar mais do que se tem significa ruína.

Em retrospectiva, muitos gregos gostariam de ter uma lei de responsabilidade fiscal quando se atiraram na farra de realizar as Olimpíadas de Atenas 2004, antessala da crise sem precedentes vivida até hoje no berço da civilização moderno.

Mas o quereres é contraditório. E o Brasil organizador de Copa do Mundo e Olimpíadas quer alargar os muros daquilo que para alguns seria uma prisão, sacando novas interpretações incompatíveis com o texto da LRF. Quando uma nova leitura do texto é insuficiente, saca-se outra norma para afrouxar os seus limites – como foi o caso da lei que ampliou o máximo de endividamento com parcerias público-privadas, encaixando com um martelo muitas das obras da Copa nos orçamentos estaduais.

Além disso, LRF no salário dos outros é refresco. Cada um quer uma interpretação que o livre do chão da realidade financeira, dando-lhe asas para ganhar liberdade na amplidão.

E a bruta flor do querer é criativa, vai das decisões judiciais que ordenam gastos de pessoal sem ser despesa com pessoal, até exclusões que se ampliam para contemplar gregos e troianos, quando falecimento e aposentadoria não são mais apenas falecimento e aposentadoria. Sem contar aumentos lineares do Judiciário e do Ministério Público, dispensados que foram destes pormenores representados pela disponibilidade financeira dos estados para pagá-los.

Não por acaso, alguns estados que foram sedes da Copa do Mundo encontram-se em meio a sérias dificuldades de pagamento da folha de servidores. Afinal de contas, haja adubo financeiro para alimentar tanta flor sem limites de crescimento.

Enfim, se não mudarmos o viés, não sei se nossa debutante chegará à vida adulta, sobretudo sua essência, que vem sendo devorada a garfadas de tempos em tempos. Sem ela, muitos dos desejos que ora buscamos com sofreguidão serão só desejos, pois o ventre da capacidade financeira será estéril.

Ou não (?!), que o diga Caetano!

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