segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

JE SUIS CHARLIE



CHARLIE E O LIVRE PENSAR

Gileno Guanabara, do IHGRN

            Em 18 de setembro de 2001, escrevi acerca do atentado das torres do World Trade Center. Poderia fazê-lo de outras vezes, tantas foram as ocorrências que nesse tempo houve, tragédias que aconteceram provocadas por forças da natureza, sem previsibilidade e de consequências iguais ao ataque suicida em Nova York. Nos alfarrábios escritos, naquele ano, lamentava que Se o alvo buscado foi atingir os negócios financeiros de Wall Street e suas operadoras, um terrível equívoco: atingiu também milhares de vidas sacrificadas de forma hedionda, dadas a amplitude imprevisível do ato. Já ao final, o artigo reconhece que as torres atingidas representavam, contraditoriamente, de um lado, a síntese do expansionismo financeiro da civilização americana e, de outro, o que deixou de representar na vida comum dos americanos. No primeiro caso, não me infringe despeito algum o fato inexorável de a economia americana ter-se projetado pela aldeia global, com o seu consumismo e modos de vida. É naturalíssima a expansão histórica ocorrida entre os povos, ou entre si mesmo, desde as primeiras formas de vida em comunidade. No segundo caso, o fato de as torres gêmeas não representarem os interesses comuns dos americanos, compete ao povo americano a solução compatível com a sua superação, se esse for o caso.
            Coube ao povo americano, em épocas de sua história, encontrar solução para a Guerra de Secessão, com a vitória do Norte industrial; da crise da bolsa em 1929, com o intervencionismo kenesyanno; da crise diplomática de Pear Harbour e o envolvimento no conflito mundial da Segunda Grande Guerra, ao lado da aliança ocidental que, afinal, prevaleceu; da crise racista dos anos de 1960 e do assassinato do pastor Luther King, com leis de integração racial; do assassinato do presidente Kennedy e eleições presidenciais sucessivas; dos embargos contra Cuba e da derrota face o envolvimento na Guerra do Vietnam. Todas elas resultaram no sacrifício de vidas, sem que se renegasse que a crise política se estabelecera e a contradição interna os pusesse declaradamente em campos opostos, até o ponto de sua superação.
            Com relação ao episódio da França, à inconsequência do ato político irrefreado e o sofrimento repugnante que provocou, há semelhanças ao opróbio que em geral resulta, quando a política é praticada através da violência imprevisível contra um desafeto, desprevenido e em força desproporcional. Dentre as vítimas do terrorismo não se excluem pessoas inocentes ou passivas, quanto às questões sob fogo cerrado, submetidas involuntariamente às possíveis inconsequências. Como exemplo, logo depois do atentado do World Center, justificou-se a represália, serviu de pretexto, para a invasão truculenta do Iraque. A desgraça que se abateu sobre os iraquianos até hoje não arrefeceu, não recompôs o seu sistema político e nem se pode ter como vencedor o invasor em sua retaliação. Ninguém saiu vencedor. Sendo assim, a satisfação que se pretendeu dar à comunidade atingida pela dor provocada, não poderia corresponder ao instinto primário da Lei do Talião, sob pena de igualar-se na atitude desonrosa, inócua e terrorista.
            Numa premonição atualíssima, o artigo finaliza dizendo que o equilíbrio que se viu em manifestações públicas de solidariedade às vítimas do “11 de setembro” foi a melhor repulsa à prática desonrosa de se fazer política através da violência.
Como a reação dos EUA foi desmedida, de caráter militarista - o Iraque e seus vizinhos tornaram-se o “bode expiatório”, para o intervencionismo declarado -, na França, diferentemente, ainda perdura vivo o passado histórico burguês revolucionário, que contagiou o mundo há pelo menos duzentos anos, consagrando a liberdade e a fraternidade como pressupostos de vida e convivência civilizadas. A concepção excludente e conservadora dos partidos de direita, embora procurem locupletar-se do momento, não tem obtido êxito pelo voto da maioria dos franceses. Tão próximo ainda, podemos lembrar, durante a Segunda Grande Guerra, a resistência à invasão germanófila, revelando o sentimento dos gauleses, em oposição às forças escatológicas do império nazista e seus despautérios políticos. Esse é o povo francês.
            Na França, dia de domingo, assistimos ao vivo e em cores milhões de cidadãos pacíficos e seus governantes, no largo da Praça de La Repúblique, independentemente da postura ideológico/partidária de suas bandeiras, num pesar emblemático, protestando contra o assassinato dos cartunistas franceses, em respeito do livre pensar e da força de suas mensagens. E há milhões de manifestantes pelo mundo a fora que pensam assim. Por mais sacramentalizadas que sejam as razões religiosas invocadas, a intolerância que tenham abeberado nas fontes da intransigência, não justifica os autores praticarem tamanha barbárie. Em nada se explica a insanidade da vingança súbita e não anunciada. Ao contrário, contrapondo-se ao desvario de se atingir os autores do livre pensar, o clamor público de milhões de pessoas nas ruas renegou a brutalidade, revelando a contradição de quem não se achando totalitário, não se comove, justifica com a falácia de argumentos rotos da paixão a infâmia produzida.
            Durante as ditaduras militares, a condenação da tortura de presos indefesos, personalidades e instituições clamaram por liberdade, em respeito das vítimas da intolerância. A liberdade de opinião foi cantada e reconhecida como direito inerente ao ser humano. O perigo é o revanchismo político se igualar por baixo nos propósitos em confronto, tornando duvidosas as provocações e, por consequência, estimular a síntese intolerante. Na França, é possível que os imigrantes que lá se estabeleceram e têm suas famílias, não vejam a mesma motivação com que se embuste o ato de matar por força de divergência de pensamento. O desplante de tirar a vida de um ser humano não é a melhor forma de reverenciar a um Deus, ou de homenagear um mote ideológico improvável. Por mais incompreensível que pareça, o solo que acolhe enriquece o imigrante e a sua origem. Menos ainda como forma de angariar indulgências, ou de imaginar o fim da prática do livre pensar.  

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