O verbo de Deus criança
E eis-nos novamente aqui, como todo ano, esperando por uma criança que vai nascer. Algo tão usual, tão ocorrente e recorrente. Pelas ruas, as mulheresandam, caminham e passeiam com suas barrigas cheias de vida que pulsa; cheias de um embrião que cresce e vai adquirindo a forma humana, com os olhos claros da mãe, a testa larga do pai, o temperamento forte da família... Nas maternidades, hospitais ou nas casas, o tempo vem a termo e das barrigas, antes grávidas, nasce a criança que todos esperavam. E há choro, lágrimas, gritos de dor e de alegria.
E, no entanto, aqui estamos nós, arrumando presépios, preparando ritos, distribuindo votos e presentes... como se fosse a coisa mais extraordinária do mundo. Uma criança que nasce... tão ordinário e, ao mesmo tempo, tão extraordinário... parece que tudo começa de novo... recomeça... volta ao começo, àquele começo que no final do século I da nossa era um evangelista descreveu assim: “No Princípio era o Verbo...”
Ora, o que tem algo tão corriqueiro e usual como o nascimento de uma criança a ver com essa sofisticada redação? Parece-me, ao contrário, que tem tudo a ver. Porque o evangelista continua: “E o Verbo estava junto de Deus. E o Verbo era Deus.” E, não satisfeito, diz mais adiante: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.”
Parece que o assombro cresce e a questão se complica. Pois Aquele que era desde o princípio, que estava junto de Deus e era Deus...como entra no tempo e se faz carne? Como? Da maneira como todos nós entramos no mundo: no ventre de uma mulher, a semente divina cresceu, desenvolveu-se e quando se consumaram os dias de sua gestação, a mãe deu à luz seu filho.
Assim entrou Deus na história: criança, bebê, rompendo caminho pelo corpo da mãe afora, vindo à luz, chorando para abrir os pulmões, mamando para alimentar-se. Uma criança... uma simples criança. Aos reis magos que perguntaram como reconheceriam o sinal de Deus de que o Messias havia chegado, foi-lhes dito apenas este fato tão banal: encontrareis uma criança... encontrareis um menino envolto em faixas e deitado em uma manjedoura.
Um bebê que não sabe alimentar-se sozinho... não sabe valer-se sozinho... precisa dos outros para tudo... E, sobretudo, que não sabe falar. Apenas chorar. Mas como? O Verbo de Deus não sabe falar? A Palavra que foi pronunciada sobre o caos e criou o mundo não fala? Por quê? Por que não pode? Por que não sabe? Sim, não pode, não sabe, pois se entrou na carne humana, segue todo o caminho que esta carne segue para seu crescimento e desenvolvimento. E, assim, o Verbo que foi pronunciado sobre tudo... não sabe falar... ainda.
Mais tarde aprenderá a falar. Será poeta de parabolas, que ensinarão muitos a viver. Todo o povo permanecerá suspenso do que sai de seus lábios. Falará, pregará, dirá palavras de alegria, de esperança, de alívio, de consolo para tantos e tantas... Mas, no momento, não fala. Alimenta-se, chora, dorme... vive a rotina de um recém-nascido, que deve ser introduzido na vida pela mãe que o gerou, pelo pai que o acompanha, pelos outros que cruzarão seu caminho.
Por isso, esperamos com tanto ardor por essa criança. Ela é semelhante a todas, porque não quer diferenciar nem destacar-se em nada. Quer justamente assumir a condição humana e aprender a ser humano. Por isso, aprenderá a falar... a andar... a mover-se... a amar... a sofrer... a viver enfim. E crescerá e se tornará adulto... e entenderá sua missão... e se entregará a ela até o fim.
A festa do Natal tem em seu centro uma criança... impotente, indefesa, pobre, frágil, vulnerável. Diante dela nos inclinamos, atentos, humildes, reverentes... pois nela pulsa o mistério maior que é o mistério da vida. E, no caso desta criança, da vida que nos salvará da morte e nos levará ao país da alegria pura e sem término. Nesta criança é Deus mesmo que aprende a ser humano.
Enquanto isso, contemplamos as mulheres que passam com suas barriguinhas redondas e cheias de vida; e as crianças que choram, mamam, dormem e vivem intensamente; e as crianças que não puderam nascer; ou as que nasceram e não puderam viver; e as crianças que nascerão e a todos nos dirão palavras de vida. Em toda criança, já nascida ou esboçada no ventre da mãe, o Natal acontece. O Verbo de Deus se faz criança. E em seu silêncio bendito... fala.
Que possamos acolhê-lo em nosso colo, em nosso lar, em nossa vida. Que seu mistério de graça e pobreza nos conquiste o coração. Que aceitemos que quem nos salva não é um poderoso e violento chefe militar, ou um rei coroado e cheio de poder, mas uma criança indefesa, que ainda não sabe falar, mas cuja pureza nos ensina o que é o amor.
FELIZ NATAL!
* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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