sexta-feira, 24 de outubro de 2014


            N Ó S   E  A   D E M O C R A C I A
Por: Gileno Guanabara, escritor

O fascismo começou a ser vencido na Itália durante o verão de 1943, com o desembarque aliado na Sicília. Vittorio Emanuele III, que convivera numa boa com os camisas negras desde a marcha sobre Roma (1922), liderou um golpe de estado, prendeu Mussolini, pondo em seu lugar Pietro Badoglio. Durante 45 dias de seu governo, Badoclio foi forçado a assinar o armistício com os aliados, provocando a invasão das tropas germânicas que libertaram Mussolini e deram apoio a Constituição da República Social Italiana. O rei e Badoclio fugiram para Blandisi, enquanto em Roma, sitiada pelos nazistas, foi fundado o Comitê de Libertação Nacional-CLN, para a resistência e unir acionistas, liberais, católicos, comunistas, socialistas, numa coalizão contra o nazi-fascismo.

            Apesar de lideranças regionais dos comunistas, em Roma, mais radical, e as de Milão, havia entre elas a visão política de unidade antifascista, ou, mais das vezes, a dúvida de oposição ao rei e ao governo Badoclio. Nesta última proposta se admitia compromissos com Badoclio, aproximando as posições de Luigi Longo e as de Togliati. Nesse ponto, as posições de Longo agregavam socialistas e acionistas e, em parte, até as do filósofo conservador Benedito Croce.

            O desenrolar da resistência deu caráter específico ao grau de participação e de unidade às forças da resistência. Ocorreram a greve dos trabalhadores da Fiat de Mirafiori (1943) e a greve geral do triângulo industrial (Turim, Milão e Gênova), que atingiu mais de 500 mil operários.

            Os últimos meses do ano de 1943 e início de 1944 foram decisivos para a libertação da Itália. Havia um desencontro de posições entre as forças insurgentes, em participar ou não, do governo Badóclio, e a proposta de ser criado um governo de frente nacional antifascista. Por influência do Congresso do CLN, em Bari, Togliati escreveu o texto Sobre os deveres dos comunistas italianos. Nele admite a participação dos comunistas sem obrigatoriamente exigir a abdicação do rei, elegendo a expulsão dos alemães do território italiano e a posterior convocação de uma Assembleia Constituinte, com o final da guerra e a decisão sobre a monarquia e o futuro regime do país. A fiança desse posicionamento deve-se a URSS que reconheceu a legitimidade do governo Badoclio, tese aprovada no Conselho Nacional do PCd’I, em Nápoles. Eis a senha para que o Sr. Ercoli Ercole assumisse o seu nome verdadeiro: Palmiro Togliatti.

            Com a nova realidade política resultante da postura de unidade das forças da resistência teve-se a formulação dos postulados do futuro Estado democrático italiano, onde estão inseridas as forças que compunham aquele arco de alianças. Em que pesem as pequenas divergências dos acionistas (Partido d’Acione), mesmo assim nasceu um novo governo de Badoclio, com a inserção do campo democrático. A consequência desse avanço, foi exatamente a formulação do Pacto de Roma, subscrito pelos sindicalistas católicos, socialistas e comunistas, e a fundação da Confederazione Generale Italiana del Lavoro.

            A resistência que se intensificou pela região de Toscana, quando do verão, possibilitou a libertação da cidade de Florença, seguindo-se as demais cidades do norte libertadas pelas forças partigianas, até o ano de 1945. Nessa compreensão ativa da luta política, consagrou-se o valor da exata compreensão do momento e dos valorosa formulação da Resistência. Consolidou-se o modelo de Estado de forças múltiplas, não excludentes, de concepções adversas, atuantes nos limites respeitosos do campo político democrático.

            Uma Democracia progressiva que prestigie as forças reagentes a qualquer tentativa de assaltos ao regime, que não vulnere as liberdades públicas, mesmo que não se surpreenda com a inovação das demandas populares renovadas. Na realidade italiana, durante a resistência ao nazi-fascismo, a intensidade na formulação dos debates, a postura límpida das teses postas em julgamento, consagrou a temperança de seus propósitos finais e a intenção de seus atores.

            Um jovem comunista, redator de L’Unitá, ainda clandestina, que foi metralhado pelos fascistas em 1945, escreveu seu entendimento sobre Democracia progressiva, dizendo: seria uma democracia nova e forte diferente, de uma parte, tanto em termos formais como de conteúdo, da “ditadura do proletariado” (que na situação italiana de então não passaria de uma imposição despótica dos comunistas), e, de outra parte, da “democracia débil e conservadora” dominante na Itália pré-fascista, sendo também naturalmente contrária a “todo resíduo das instituições e do pessoal fascista”.  Finalizou o redator lembrando a exigência de participação maior das massas populares, em especial da classe operária, a quem refere a condição de “classe nacional”.

            O debate eleitoral que ora é travado no Brasil é facilitado pelos meios tecnológicos de comunicação disponíveis. Não há intempérie econômico/política que se anteponha ao debate posto, nem perigos ocorrentes, como quando de uma Itália sob a Segunda Grande Guerra. No entanto, no nosso caso, mesmo em os líderes partidários não revelarem graves deformações ideológicas, nem programáticas divergentes, a ponto de os destacar, os poderes da República se comportam na condição de alcaides regionais a decantarem seus feitos, com liminares, datas e ocorrências de nascimento próprios de uma luta provinciana.

            O que se reserva ao Brasil mulato e distinto, de cores e tambores que tingem e rufam desde o olodum ao samba carioca, o Brasil de cafuzos e malandros, de traquinagens e Macunaíma tupiniquins, sobra muito pouco. Que república desejamos? Que caminhos prosseguir? Que debate desejamos ouvir?  Sobre isso, nada. A democracia tem um lastro oponível, desde muito antes até a solução de suas crises. É possível ter a melhor compreensão, comungar e externar os fatos, para a superação.

            Não há como atribuir culpa puerperal depois dos equívocos. Compete aos líderes, por mais respeito aos desvalidos, contribuir para que as forças sejam tendenciadas à coerência política, à superação da crise. Nada é melhor do que nós.

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