A festa da democracia tem preço?
Luciano RamosPresidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público de Contas (CNPGC)
“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Apenas sei de diversas harmonias bonitas. Possíveis sem juízo final...
Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem Mundial...” (Fora de ordem, Caetano Veloso).
Às vezes, saímos às ruas e algo parece fora do lugar. Não sabemos bem ao certo, mas não é crível que sigamos vendo os problemas se avolumando, o monstro a se criar, e nada possa ser feito para estancar a sangria, como se estivéssemos dentro do livro “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Marquez.
Há uma semana, aproximadamente 130 milhões de brasileiros estavam aptos a votar. Destas, 100 milhões de pessoas deslocaram-se até o local do cumprimento de seu dever cívico.
Felizmente, afora algumas esperas pouco convidativas de até 2h, tudo transcorreu em uma paz democrática quase sem percalços, com a celebração de um feito raro na nossa história, representado pelos 30 anos de democracia ininterrupta a serem completados em 2015.
Porém, pairava no ar um desalinho intrigante, uma insistente água sempre a estragar o chope desta festa. O problema estava lá, disponível para quem tem olhos para ver. Mesmo que enxerguemos apenas uma pálida sombra, ele flutuava sobre os locais de votação em profusão igual ao dos santinhos espalhados pelo chão - e mais além.
Enquanto ia para o espaço a mim reservado nesta festa, indagava-me como é possível à sociedade brasileira gastar dezenas de bilhões de reais a cada dois anos com campanhas políticas, com uma cachoeira de dinheiro mais volumosa e extensa do que qualquer outro país - até mesmo os Estados Unidos, maior economia do planeta. E isso tomando como base só os gastos contabilizados.
Terminantemente, algo está fora de ordem. Não se pode sugar tantos recursos para uma finalidade apenas, por mais nobre que seja, repetidas vezes e crescendo descontroladamente, sem afetar nossa capacidade de desenvolvimento - isto enquanto não alcancemos o ponto de ruptura.
Mas, apenas aceitamos a vida como ela é, dando ares de normalidade ao absurdo. Não raro, ouvimos o raciocínio matemático: fulano teve tantos votos, logo gastou tais e quais cifras em sua campanha. Como se a aceitação de ideias e o convencimento do eleitor - que é o que em teoria deveria tratar uma eleição -, compusesse uma equação em que estes resultados estão diretamente relacionados com o quanto gasto. A normalidade fática deste raciocínio embute em si um absurdo jurídico e uma armadilha econômica.
Do ponto de vista da Constituição Federal, a soberania do voto deveria ser a estrela da eleição, mas ela vem sendo peneirada pelo poder econômico, notadamente com a ilimitada possibilidade de doação de campanha por empresas, inclusive as que têm contratos com o Poder Público.
E o imbróglio econômico vem do fato de que não há perspectiva de este voraz buraco negro de recursos diminuir o seu apetite, com multiplicações desordenadas há anos, em detrimento de tantas outras áreas essenciais que requerem investimentos da sociedade, mas que são indefinidamente adiados.
E eis que estes 30 anos de democracia nos colocam em uma encruzilhada, sobretudo para que ela seja sustentável por anos a fio, pois a alternativa a ela seria infinitamente pior. Simplesmente, não há mais como convivermos com a irracionalidade dos gastos de campanha, comprometendo diversos setores da economia.
Felizmente, a proximidade do ponto de ruptura também é força bastante para quebrar inércias alimentadas pelo medo. Oxalá, caminharemos além da mera sensação de que a conta hoje já não fecha, para atitudes mais profundas como a vedação de doação de empresas para as campanhas – já em análise pelo Supremo Tribunal Federal por provocação da OAB –, bem como a reforma política ganhar efetivamente a ordem do dia.
Por enquanto, nossa festa da soberania popular continuará sendo pela metade. Por mais saborosa que seja esta metade!
“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Apenas sei de diversas harmonias bonitas. Possíveis sem juízo final...
Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem Mundial...” (Fora de ordem, Caetano Veloso).
Às vezes, saímos às ruas e algo parece fora do lugar. Não sabemos bem ao certo, mas não é crível que sigamos vendo os problemas se avolumando, o monstro a se criar, e nada possa ser feito para estancar a sangria, como se estivéssemos dentro do livro “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Marquez.
Há uma semana, aproximadamente 130 milhões de brasileiros estavam aptos a votar. Destas, 100 milhões de pessoas deslocaram-se até o local do cumprimento de seu dever cívico.
Felizmente, afora algumas esperas pouco convidativas de até 2h, tudo transcorreu em uma paz democrática quase sem percalços, com a celebração de um feito raro na nossa história, representado pelos 30 anos de democracia ininterrupta a serem completados em 2015.
Porém, pairava no ar um desalinho intrigante, uma insistente água sempre a estragar o chope desta festa. O problema estava lá, disponível para quem tem olhos para ver. Mesmo que enxerguemos apenas uma pálida sombra, ele flutuava sobre os locais de votação em profusão igual ao dos santinhos espalhados pelo chão - e mais além.
Enquanto ia para o espaço a mim reservado nesta festa, indagava-me como é possível à sociedade brasileira gastar dezenas de bilhões de reais a cada dois anos com campanhas políticas, com uma cachoeira de dinheiro mais volumosa e extensa do que qualquer outro país - até mesmo os Estados Unidos, maior economia do planeta. E isso tomando como base só os gastos contabilizados.
Terminantemente, algo está fora de ordem. Não se pode sugar tantos recursos para uma finalidade apenas, por mais nobre que seja, repetidas vezes e crescendo descontroladamente, sem afetar nossa capacidade de desenvolvimento - isto enquanto não alcancemos o ponto de ruptura.
Mas, apenas aceitamos a vida como ela é, dando ares de normalidade ao absurdo. Não raro, ouvimos o raciocínio matemático: fulano teve tantos votos, logo gastou tais e quais cifras em sua campanha. Como se a aceitação de ideias e o convencimento do eleitor - que é o que em teoria deveria tratar uma eleição -, compusesse uma equação em que estes resultados estão diretamente relacionados com o quanto gasto. A normalidade fática deste raciocínio embute em si um absurdo jurídico e uma armadilha econômica.
Do ponto de vista da Constituição Federal, a soberania do voto deveria ser a estrela da eleição, mas ela vem sendo peneirada pelo poder econômico, notadamente com a ilimitada possibilidade de doação de campanha por empresas, inclusive as que têm contratos com o Poder Público.
E o imbróglio econômico vem do fato de que não há perspectiva de este voraz buraco negro de recursos diminuir o seu apetite, com multiplicações desordenadas há anos, em detrimento de tantas outras áreas essenciais que requerem investimentos da sociedade, mas que são indefinidamente adiados.
E eis que estes 30 anos de democracia nos colocam em uma encruzilhada, sobretudo para que ela seja sustentável por anos a fio, pois a alternativa a ela seria infinitamente pior. Simplesmente, não há mais como convivermos com a irracionalidade dos gastos de campanha, comprometendo diversos setores da economia.
Felizmente, a proximidade do ponto de ruptura também é força bastante para quebrar inércias alimentadas pelo medo. Oxalá, caminharemos além da mera sensação de que a conta hoje já não fecha, para atitudes mais profundas como a vedação de doação de empresas para as campanhas – já em análise pelo Supremo Tribunal Federal por provocação da OAB –, bem como a reforma política ganhar efetivamente a ordem do dia.
Por enquanto, nossa festa da soberania popular continuará sendo pela metade. Por mais saborosa que seja esta metade!
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