sábado, 30 de junho de 2012


"DOSSIÊ MEGAEVENTOS" (VI) - Dra. Lúcia Capanema
______________

2.5. Remoções realizadas ou em andamento Neste item estão alguns dos casos mais alarmantes, já que trata da atividade-fi m, quando o Poder Público já não mais negocia, apenas mostra sua força diante do cidadão. São aplicadas estratégias de guerra e perseguição, como a marcação de casas a tinta sem esclarecimentos, a invasão de domicílios sem mandados judiciais, a apropriação indevida e destruição de bens móveis, a terceirização da violência verbal contra os moradores, as ameaças à integridade física e aos direitos fundamentais das famílias, o corte dos serviços públicos ou a demolição e o abandono dos escombros de uma em cada três casas subseqüentes, para que toda e qualquer família tenha como vizinho o cenário de terror.

Este relato está focado em 21 casos de vilas e favelas nas cidades de Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo e tem como pano de fundo comum o propósito da higienização, da ‘faxina social’, para o uso futuro de terras de alto valor imobiliário ou onde o Estado deseja repassar a mais-valia decorrente de seus vultosos investimentos à iniciativa privada. A estratégia inclui ainda a periferização das comunidades expulsas para longe de suas redes de inserção econômica, social e cultural, via de regra em locais carentes de serviços públicos, o que causa total transtorno ou impossibilidade de assimilação, por exemplo, nos postos de saúde e escolas. São grandes obras viárias, em sua maior parte relacionadas pelo Poder Público aos estádios da Copa ou a projetos de mobilidade que incluem ligações a instalações aeroportuárias, sempre abrindo novas frentes imobiliárias em suas margens ou em seus destinos.

Em alguns casos, dá-se também a simples manobra da desapropriação ou da reintegração de posse de terrenos públicos, alegando situações de risco ou a necessidade de preservação ambiental, violando o direito constitucional à usucapião urbana, a Resolução CONAMA 369/2006 (que permite a ocupação de Áreas de Preservação Permanente em áreas urbanizadas, comprovada a existência de comunidades em risco social), a Lei 11.124/2005 e a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia.

Entre os projetos de mobilidade está o caso emblemático de São Paulo, com seu Parque Linear Várzeas do Tietê. Dividida em três etapas, a obra prevê a construção de uma avenida, “Via Parque”, para “valorizar a região [...] que fi ca às margens da rodovia Ayrton Senna, entre o Aeroporto Internacional de Guarulhos e o futuro estádio do Corinthians, provável sede paulista na Copa do Mundo, em Itaquera”.(17) Mais de 4.000 famílias já foram removidas do local sem serem consultadas sobre a implantação do parque e sem saber para onde iriam. Outras 6.000 famílias aguardam, sem saber seu destino. “Pegaram nós de surpresa. Com um projeto de tamanha proporção, a comunidade no mínimo tinha que ser consultada. [...] As famílias foram morar ali há mais de 40 anos, quando ainda não era Área de Proteção Ambiental”, diz o líder comunitário Oswaldo Ribeiro.

Os moradores da Chácara Três Meninas, em área contígua ao Parque, acusam policiais militares de ação truculenta e abuso de poder durante retirada sem aviso prévio. Seis famílias foram retiradas e tiveram suas casas demolidas em uma ação policial que contou com a Polícia Militar, Guarda Civil Metropolitana, Polícia Ambiental, agentes da subprefeitura de São Miguel e empresas terceirizadas que realizam a demolição das casas. Um carro particular foi apreendido e duas pessoas foram detidas, sob acusação de desacato à autoridade – nestes contextos, qualquer ato de protesto é considerado um crime! “As pessoas estavam dormindo quando foram surpreendidas pela polícia”, descreve Maria Zélia Andrade, do Movimento Terra Livre.

O estudante de Geografi a da USP João Vitor Oliveira relata que “Policiais imobilizaram um homem e depois que ele já estava com as mãos para trás, apertavam a garganta.

Por fi m, empurraram em direção a uma parede [...] Se há três casas e moradores das extremidades decidem deixar as casas, [agentes terceirizados] vão e destroem a residência que estava no meio também”. Ainda na Zona Leste da cidade, 2.000 moradores da comunidade do Jardim São Francisco, terceira maior favela da capital, estão sendo despejados sem nenhum atendimento habitacional da Prefeitura, que mobiliza uma força armada integrada pela guarda ambiental (que ironia!), a guarda civil metropolitana, seguranças privados contratados – como o já conhecido agente Evandro (box abaixo) – e funcionários municipais.

A população reclama que não há mandado judicial, que não foram incluídos em programas habitacionais e que têm direito à Concessão de Uso Especial para fins de Moradia.

A expulsão dos moradores da comunidade está ligada ao projeto de urbanização batizado de São Francisco Global, que tem previsão de conclusão em 2020. De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação, além do São Francisco Global, a favela se beneficiará de outros projetos previstos para seu entorno. Exemplo disso seria a Operação Urbana Rio Verde-Jacu, que prevê uma série de melhorias visando a Copa do Mundo de 2014, entre elas o Complexo Viário Jacu-Pêssego (que corta o São Francisco), ligando o aeroporto de Cumbica ao Porto de Santos, que receberá uma alça de ligação com a Radial Leste.


Situações e processos similares se repetem em todas as outras cidades. Na Vila Recanto UFMG, em área de projeto para alça de acesso ao Mineirão, 65 famílias, moradores desde os anos 1990 de um lote privado abandonado, têm sido alvo de várias tentativas de expulsão. A proximidade da Copa do Mundo ofereceu o pretexto para a remoção da maioria destas família, mediante uma irrisória indenização pelas edifi cações realizadas.

Estas famílias foram empurradas para áreas periféricas da Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde conseguem arcar com os custos da nova moradia, mas defrontam-se com a precariedade dos serviços urbanos, já saturados. Assim também em Fortaleza, onde a Avenida Dedé Brasil deverá receber um sistema BRT e túneis próximos ao estádio do Castelão, o que acarretará a retirada de 22 famílias que reclamam da baixíssima indenização.

Por seu lado, o BRT Castelão-BR 116 projeto desalojar 200 famílias na Comunidade do Barroso, já sob pressão de agentes infi ltrados.

O caso da Doca das Frutas, Porto Alegre, chama a atenção pela inversão de direitos estabelecida: 20 famílias expulsas de terreno público sem indenização são instadas a utilizar a magra verba do Programa Bolsa-família para realizar os pagamentos de prestações do Programa Minha Casa Minha Vida.

Francisco Evandro Ferreira Figueiredo é funcionário da BST Transportadora contratado pela Prefeitura de São Paulo para “fazer a faxina”, termo que utiliza quando se refere à remoção de moradores das comunidades pobres nas periferias de São Paulo. Evandro – como é mais conhecido – já foi visto em pelo menos dois despejos truculentos, sem mandado judicial. Na Favela do Sapo, zona oeste da capital, os moradores denunciaram que Evandro se apresentava armado, dizia ser funcionário da Prefeitura e intimava-os a deixarem suas casas. Em fevereiro deste ano, sob seu comando, funcionários do poder público municipal derrubaram 17 casas na comunidade, com o
acompanhamento da Polícia Militar e da Guarda Civil Municipal, sem apresentar mandado judicial de reintegração de posse ou qualquer documento que legitimasse a ação.

PROTESTO DE MORADORES EM CASA AMEAÇADA NO LARGO
DO CAMPINHO, RIO DE JANEIRO. FOTO: RENATO COSENTINO.

Espantosa, e mesmo escandalosa, é também a inversão de prioridades no caso da Comunidade Metrô Mangueira, no Rio de Janeiro. Há aproximadamente 40 anos no local, uma comunidade de cerca de 700 famílias foi dividida em diferentes grupos: alguns foram reparados com novas moradias nas proximidades, a outros foram atribuídas unidades a 50 km. do local e. finalmente, aos remanescentes, que permanecem vivendo entre escombros,
se oferecem infi ltrações, insalubridade e ameaças.. As alegações para a remoção da comunidade variaram entre o risco, a necessidade de alargar a via, a implantação de um estacionamento e a necessidade de se construir um parque, ao que retrucou a moradora: “Parque para quem se vamos ter que sair daqui?”. Embora qualquer remoção residencial deva, pela lei, estabelecer um prazo mínimo para a desocupação de um imóvel, nesta comunidade alguns receberam da Prefeitura aviso de que teriam um “prazo máximo de 0 dia(s)” (em documento ofi cial). A região integra o projeto Complexo Maracanã para a Copa 2014, quando deverá ser utilizada para estacionamento, conforme exigências da FIFA.

Embora o pretexto para a maioria das remoções seja a construção de projetos viários, é inegável sua associação direta a grandes negócios imobiliários. Mais uma vez, o caso do Rio de Janeiro é exemplar: as comunidades da Restinga, Vila Harmonia e Vila Recreio II, estavam localizadas no Recreio dos Bandeirantes, última reserva ambiental e fronteira de expansão da especulação imobiliária do município e alvo da cobiça privada. Suas 500 casas foram marcadas e removidas através das formas mais variadas de pressão, recebendo
os moradores indenizações irrisórias, que não consideraram os usos comerciais. Muitas famílias ainda não receberam nada e a Prefeitura está tentando reaver o dinheiro das indenizações já depositado por ordem judicial. Graças a algumas liminares ainda de pé, não mais que dez residências permanecem nestas áreas, porém as comunidades se transformaram em locais inabitáveis, pois as casas derrubadas deixaram uma enorme quantidade de entulho que não foi retirado pela Prefeitura, favorecendo as zoonoses. A situação daqueles que já foram removidos não foi tratada pelo Poder Público. Os ex-moradores relatam que seus filhos não estão mais indo à escola, pois não há vagas nas novas localidades. Muitos perderam seus empregos, por estarem morando muito longe do local de trabalho anterior.

Michel, ex-morador da Restinga, tinha uma unidade mista, ou seja, casa e comércio que foi marcada apenas como estabelecimento comercial pela Prefeitura, logo não teve direito a nenhuma compensação pela demolição. Michel desabafa:

“Me sinto um otário, porque quando o Brasil ganhou esta porcaria de Olimpíada eu estava na Linha Amarela com meu carro, fi quei buzinando igual um bobão. Agora estou pagando por isso. Isso que é Copa do Mundo? Isso que é espírito olímpico?”

Francisca, moradora também da Restinga possuía uma marcenaria no local; ao todo cinco famílias dependiam de seu comércio e, por conta do despejo, perderam trabalho e renda, além da moradia. Nestes últimos meses, conseguiu sobreviver com a doação de cestas básicas, material para obra e algum dinheiro para a manutenção.

Baixas indenizações, queda na qualidade de vida e sequelas emocionais são o legado social.

O Corredor Transoeste, obra estruturante no projeto global para a região, fará a ligação entra a Zona Sul e a Barra da Tijuca, onde se concentra a maioria das instalações Olímpicas.

A área onde se encontravam as comunidades removidas é de baixa ocupação, o que permitia uma gama de traçados para o polêmico corredor, desde os de menor impacto até o escolhido, que justifica a “faxina” em terras futuramente nobres para o mercado imobiliário.

Já a Transcarioca, seguindo os mesmos parâmetros projetuais, é o corredor de ligação do Aeroporto Internacional Tom Jobim à região da Barra da Tijuca suprida por BRT, e envolve a retirada de dezenas de famílias da comunidade do Campinho.

Em Belo Horizonte, última reserva de área verde da capital mineira, teve 24 casas demolidas sem ordem judicial e realocação das famílias em outubro de 2011, pois ali se pretende a mudança do uso do solo, contrariando o Código Florestal, para que a gleba de 10 km2 receba 75.000 unidades habitacionais, incluindo-se uma vila olímpica temporária, shoppings e equipamentos urbanos em Operação Urbana Consorciada.

Não é substancialmente diverso o caso do Poço da Draga, em Fortaleza, onde, a fim de viabilizar a construção do que anunciam como o maior aquário da América Latina, vêm sendo removidos moradores de uma área ocupada há mais de cem anos na Praia de Iracema, declarada ZEIS pelo Plano Diretor. Ou ainda a situação enfrentada pela Comunidade do Bairro Cristal, em Porto Alegre, cujos moradores moradores para bairros periféricos, a 30 km de distância, ou o caso da Estradinha, situada no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

A área da Estradinha começou a ser ocupada na década de 1950, e diferentemente de muitos dos casos de comunidades ameaçadas por remoção, foi se desenvolvendo, em parte, com a ajuda do Poder Público. No final da década de 1980, a Prefeitura deu início a processos de assentamento na área e avaliou a viabilidade geológica do local, constatando que não haveria risco aos moradores. Na década seguinte, a Prefeitura implementou ali o programa Favela Bairro, realizando trabalhos de contenção de encostas e urbanização,
sem porém terminar as obras. Entre agosto de 2009 e maio de 2010, laudo geotécnico da Prefeitura lançou dúvidas quanto aos riscos existentes, enquanto outro, elaborado por apoiadores da comunidade, mostrava que o risco se resumia a uma pequena parte da comunidade e que poderia ser sanado através de obras de contenção. A partir deste momento, em virtude da pressão exercida por agentes públicos, muitos moradores aceitaram sair da comunidade e suas casas foram demolidas. A Prefeitura, como vinha agindo em outras comunidades, não retirou os entulhos deixados pelas demolições. Em agosto de 2010, o NUTH (Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro), que devido a seu papel combativo já sofreu várias investidas, ajuizou ação contra a Prefeitura, requerendo a retirada dos entulhos. Em setembro do mesmo ano a Justiça ordena a retirada dos entulhos sob pena de multa, mas a Prefeitura se mostra renitente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário