terça-feira, 26 de junho de 2012

"DOSSIÊ MEGAEVENTOS" - Dra. Lúcia Capanema (II)
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CIDADE DE EXCEÇÃO


“O totalitarismo moderno pode ser defi nido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”

(Giorgio Agambem; Estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 13)

Conhecida como “Ato Olímpico”, a Lei n. 12.035/20091 é a primeira de uma longa lista de medidas legais e normativas que instauram as bases de uma institucionalidade que não pode ser compreendida senão como uma infração ao estado de direito vigente. Nesta lei, entre outras coisas, são asseguradas condições excepcionais e privilégios para a obtenção de vistos, exercício profi ssional de pessoal credenciado pelo COI e empresas que o patrocinam, cessão de patrimônio público imobiliário, proteção de marcas e símbolos relacionados aos jogos, concessão de exclusividade para o uso (e venda) de espaços publicitários e prestação de serviços vários sem qualquer custo para o Comitê Organizador. Ademais, num capitalismo do qual o risco teria sido totalmente banido, a lei autoriza genericamente “destinação de recursos para cobrir eventuais défi cit operacionais do Comitê Organizador dos Jogos Rio 2016”.

Segue-se, a partir daí, nos níveis federal, estadual e municipal, uma interminável lista de leis, medidas provisórias, decretos, resoluções, portarias e atos administrativos de vários tipos que instauram o que vem sendo chamado de “cidade de exceção”. Todas as isenções fi scais e tributárias são oferecidas às entidades organizadoras, mas também a uma infi nidade de “cidadãos mais iguais” que não precisam pagar impostos, tributos territoriais e taxas alfandegárias. Planos diretores e outros diplomas, muitos resultantes de longos e ricos debates na sociedade, caducam em ritmo vertiginoso diante do apetite de empreiteiras, especuladores imobiliários, capitais do setor hoteleiro e turístico e, evidentemente, patrocinadores dos megaeventos.

Ao mesmo tempo, enormes extensões de bem localizadas terras públicas são entregues a grandes empresas, quase de mão-beijada, quando a Lei Federal n. 11.124/2005, determina claramente a “utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse social”. Em aberta violação à legislação, são aprovadas doações, concessões e operações urbanas que nada têm a ver com o interesse público ou com prioridades sociais. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Decreto Municipal n. 30.379/2009, estabelece que o Poder Executivo “envidará todos os esforços necessários no sentido de possibilitar a utilização de bens pertencentes à administração pública municipal, ainda que ocupados por terceiros, indispensáveis à realização dos Jogos Rio 2016”. Assim, vê-se o poder publico mobilizado para “limpar” terras públicas de habitação popular e entregar estas áreas à especulação imobiliária, em nome da viabilização dos eventos.

1 O Ato Olímpico é seguido pela Lei n. 12.396/2011, que instituiu a Autoridade Pública Olímpica, responsável por coordenar e planejar todas as intervenções governamentais para a realização dos jogos na cidade do Rio de Janeiro.

Em triste evocação do que foram os tempos cinzentos da ditadura militar, o poder público cria um aparato de segurança especial (Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, Decreto n. 7.536/2011). Para completar o cenário de exceção, uma nova tipifi cação penal e juizados especiais são previstos na Lei Geral da Copa.

Para um país que há menos de 30 anos estava submetido à ditadura, a violação sistemática de nossa legalidade e a implantação da cidade de exceção constituem legados inaceitáveis.

Garantias Governamentais para uma Copa Privada

O ano de 2007 é um importante marco nesse processo, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado de onze ministros e do Advogado-Geral da União, assina o Documento de Garantias Governamentais2, contrato particular de adesão estabelecido com a Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), através do qual o Brasil se comprometeria a atender incondicionalmente a todas as exigências da entidade, numa relação de grave subserviência política. Tais “garantias” concretizam, na prática, o clamor de empresas, consórcios e instituições fi nanceiras envolvidas por maior segurança jurídica em suas transações e investimentos. Numa análise técnica, esses compromissos podem ser considerados inválidos, uma vez jamais foram ofi cialmente publicizados e que desconsideram o procedimento regulamentado pelo art. 49, I, da Constituição Federal3. É importante lembrar também que todas as cidades-sede assumiram obrigações similares por meio dos chamados Host City Agreements.

O principal desdobramento disso, na esfera federal, foi a aprovação, em maio de 2012, da Lei Geral da Copa. Durante os nove meses de tramitação do Projeto no Congresso Nacional, sua redação original sofreu diversas alterações, em grande medida fruto da mobilização e incidência política da sociedade civil em repúdio à fl exibilização, suspensão e desconstituição de direitos sociais e fundamentais que signifi cam um considerável retrocesso político. Houve veto presidencial a apenas quatro itens, nem todos positivos. Entre eles a questão dos “ingressos populares” e o procedimento especial de visto para estrangeiros. Além de liberar a utilização de “trabalho voluntário” pela FIFA nos jogos, a presidente Dilma também rechaçou as suspensões de normas locais de benefícios ao consumir. Apesar disso, não houve oportunidade de discussão ampliada sobre os aspectos críticos da Lei ou participação formal dos principais grupos afetados pelas novas regras, resultando num diploma eivado de contradições e inconstitucionalidades, as quais podem ser sintetizadas em sete eixos de destaque. (ver imagem).

A Lei Geral da Copa, contudo, não é tão “geral” assim. Em primeiro lugar, porque, longe de proteger o interesse público, ela tem por base compromissos comerciais, ou seja, interesses privados muito específi cos. E ademais, não é a primeira e pode não ser a última das leis editadas sobre o assunto. Inúmeras formas de isenção fi scal, por exemplo, têm sido disciplinadas em diplomas como o Decreto n. 7.578/2011, ao lado de alterações nos limites de endividamento dos municípios para ações relacionadas à Copa do Mundo e Olimpíadas (Lei n. 12.348/2010).

Igualmente central na engenharia jurídica dos megaeventos é a Lei n. 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), um verdadeiro atalho à Lei de Licitações pelo qual vultosas somas de recursos públicos podem ser transferidos à iniciativa privada e que, não por acaso, efetivou-se através de Medida Provisória.

No horizonte futuro, é possível divisar ao menos outros dois Projetos de Lei de iniciativa do Senado Federal portadores de ameaças da mesma natureza. Enquanto o PLS n. 394/2009 propõe que símbolos, expressões e apelidos como “Seleção Brasileira de Futebol” e “Seleção Canarinho” sejam utilizadas somente pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o PLS n. 728/2011 restringe o direito à greve a partir de três meses antes do início da Copa do Mundo, abre a possibilidade de proibição administrativa de ingresso de torcedores em estádios por até 120 dias, instaura uma série de novos crimes – entre eles, o tipo penal de “terrorismo”, hoje inexistente no Brasil, com pena de até 30 anos de reclusão – e prevê tanto justiças especiais quanto procedimentos de urgência para julgá-los.

Alardeados como transitórios, esses instrumentos não deixam de apresentar o risco de serem incorporados defi nitivamente no ordenamento brasileiro, depois de experimentados no laboratório jurídico dos megaeventos. A amplitude, gravidade e celeridade dessas transformações é o que permite confi gurá-las como um quadro de exceção, “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”, nas palavras do fi lósofo Giorgio Agambem.

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