sexta-feira, 5 de novembro de 2010



DE POEMA E DE SOMBRAS
Ciro José Tavares*


Há 50 anos, no Recife, ouvi e anotei um poema de oito versos, sem título e autor desconhecido.
“Estou doente, doente de tudo,
Dos olhos, da boca, dos nervos até.
Dos olhos que viram mulheres perfeitas,
Da boca que disse poemas de brasa,
Dos nervos manchados de fumo e café.
Estive doente, estou de repouso, não posso escrever.
Eu quero um punhado de estrelas maduras,
Eu quero a doçura do verbo viver.”
Não posso garantir que a forma do texto seja essa. Assim escrevi, escutando atento, palavra por palavra, até repetindo para ver se estava correto. Contou-me o interlocutor tratar-se de um texto encontrado entre velhos papeis de um médico psiquiatra, já falecido, que durante muito tempo trabalhara numa casa de saúde para doentes mentais. Desconfiado, guardei a história e muitas vezes li e reli a poesia para encontrar nas entrelinhas o caminho que afastasse as espessas sombras, confirmando a veracidade da informação. Refletindo cheguei às primeiras conclusões. Se psiquiatra fosse, tomara o cuidado ético de não revelar o nome do seu paciente e demonstrara sua grandeza moral não se apropriando daquilo que não escrevera.
Quem seria esse desconhecido poeta? Existiu e continuou escrevendo? O poema, é assim que sinto, ronda o universo das explosões líricas que não se renovam diuturnamente. Doente, tudo faz crer que sim, porque confessa e revela sem receios a extensão do quadro clínico. Paradoxal é o espírito de renúncia colidindo com a impossibilidade de ser possuidor de estrelas. E preocupante o desejo final, como se reconhecesse, dolorosamente, inalcançável.
O último verso é o desejo ardente de buscar o desconhecido, quando o indivíduo parece estar num labirinto sem saída. São inúmeros os exemplos na literatura. Rotineiros na tragédia grega de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo, no teatro de William Shakespeare, na poesia de Hölderlin:
“E ouvir com sorriso da vossa boca a insípida canção:
Se tem de ser, esquece o teu bem, e adormece sem ruído.”
Em, pelo menos, dois contos de Oscar Wilde, O rouxinol e a Rosa e O Aniversário da Princesa Infanta.
Contudo, o marcante, o que me mais lembra esse melancólico menestrel sem rosto e nome, é o personagem Eugênio MarchBanks, da peça Cândida,de Bernard Shaw. Provavelmente porque ambos podem ter tido idênticos finais, dramáticos e solitários. MarchBanks, também poeta,que confunde os sentimentos filiais de Cândida l, com outra espécie de amor que lhe devora o espírito,abandona a casa da amada confessando: ” Eu tenho um segredo melhor no meu coração. Deixe-me partir. A noite, lá fora, avança impaciente.”
Sobre o poema que abre essas reflexões paira outra hipótese que não deve ser descartada: a do mistério. O autor concluiu o texto e, intencionalmente, omitiu nome e título, permitindo que rolasse pelas mãos alheias até parar na escrivaninha do psiquiatra, se verdadeira a informação inicial. O jogo de enigmas culturais já foi visto muitas vezes. Na Inglaterra do século XVII ficou famosa a história da descoberta dos Poemas de Rowley, escritos por Thomas Chatterton num estilo poético antigo, imitando a poesia medieval.Thomas Rowley, monge do século XV, inventado por Chatterton, teve seu manuscrito encontrado em Bristol, coincidentemente a cidade onde nascera esse gênio da poesia inglesa , que se suicidou aos 18 anos.
Tudo faz acreditar que magia, lendas e os mais nebulosos segredos dão vida às obras de arte. No Louvre, ficamos estáticos diante do quadro da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci. Quem seria aquela bela mulher, de expressão introspectiva, tímida, sorriso restrito e sedutor? Não é verdade que guardamos na memória a Camelot do rei Arthur, a távola redonda e seus cavaleiros bravos e gentis? O romance proibido da rainha Guenevere e Lancelot Du Lac?
Igualmente na música, o incognoscível é fortemente alimentado. Na ópera Turandot, de Giacomo Puccini, o segredo é o tema central que o príncipe Calaf revela na belíssima Nessun Dorma. Richard Wagner mergulhou no mito nórdico para escrever e compor seus dramas musicais. O anel dos Nibelungos, nas quatro óperas, as cenas parecem estar pemanentemente invadidas por densa neblina noturna. E Tannhäuser, à semelhança do poeta objeto das minhas perguntas sem respostas, desaparece, ao final, por não ter sido pedoado dos pecados pelo Papa.
Como se observa, o assunto obriga-nos a gastar muitas horas de pesquisa ou, usando divertida expressão, queimar neurônios nos caminhos do descobrimento. Jesus Cristo, para anunciar o seu reino e sua nova aliança, fez habitual uso de parábolas na tentativa de clarificar seus elevados ensinamentos.E ainda assim jamais acendeu a mais esmaecida luz para revelar onde esteve durante 28 anos de sua vida.Finalmnte, basta repetir como Goethe na sem precedentes Elegia de Marienbad:

“Amigos fiéis, deixai-me aqui a sós,
Em meio às fragas, entre musgo e lodo!
Tomai um rumo! O mundo se abre a vós,
A terra é vasta, o ceu sublime todo;
Sondai, juntai as partes com critério,
Sempre a estudar o natural mistério.”


* Advogado e escritor

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