terça-feira, 30 de dezembro de 2025

 

PERSONALIDADE

MULTIFACETADA

Marc de Groot: em busca de um tempo perdido

                                                                                                                                                                         27                      DE


10 Domingo                                                                                                         Jomal de Fato


MÁRCIO DE LIMA DANTAS

Especial

Triste de quem vive em casa Contente com o seu lar Sem que um sonho, no erguer de asa Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar!

Fernando Pessoa

Marc de Groot nasceu em Eindhoven, Holanda (1963). Reside hoje em Ponta Negra, Natal. Arquiteto paisagista, durante sua formação estagiou um ano naAlemanha e outro nos EUA. Aqui no Brasil, cursa o sexto período de Psicologia. Personalidade multifacetada, dedica-se a diversas atividades sempre relacionadas ao estético e suas adjacências. Fornece design de joias, quase sempre voltadas para a confecção de anéis.

Como todo e qualquer holandês, é conduzido pela pontualidade e pelo perfeccionismo, gostando de contratos sérios e levando em conta suas razões interiores. Por exemPIO, determina os materiais a serem usados nos anéis, preferindo ouro e prata legítimos. Sempre combina cores das pedras, justapondo opostos e acarretando um efeito estético de rara beleza e preciosidade. Entre as pedras que utiliza estão granada, ametista, topázio, turmalina e água-marinha.

Eis que temos a valia e o valor em uma boda de grata satisfação, para quem contempla ou adquire uma peça e deseja o melhor, pois o barato sempre sai mais caro. Mais adiante veremos como esse manuseio de cores antípodas reverbera de maneira insistente em sua pintura.

SÁBADO, 27 DE DEZEMBRO DE 2025

Quando tinha quatro anos, sua irmã mais velha, com doze, ensinou-lhe matemática e cálculo. Simultaneamente, sua pequena professora e cúmplice conseguiu compreender o funcionamento da gramática interna da psiqué de seu irmão. Logo percebeu que era alguém talhado para desenvolver coisas do espírito, pela sensibilidade e pela maneira como reagia aos afetos dos pais. Assim, incitou-o a desenvolver esse talento latente. Ora, já na caligrafia, fazia com primor o desenho das letras do alfabeto.

Logo matriculado no ensino formal, nada foi difícil ou incompreensível, pois sabia ler e escrever. O tempo que os colegas de classe dedicavam às noções básicas da língua e da matemática, elejá empregava no manuseio dos lápis, engendrando desenhos que o exultavam interiormente, aplacando anseios emanados de um menino.

Com efeito, as imagens que repousam no inconsciente, podendo se transmutar em palavras quedadas em espera de eclodir, não estão vinculadas à idade. Um olhar arguto contempla o modo de andar, o semblante, o timbre de voz. Desse modo, se fizer uma aposta consultando seu coração e seus oráculos interiores, dificilmente perderá o valor do que se apostou. E vero: tatear a maneira como funcionam os cinco sentidos não apenas dá prazer, mas também pode ser um elemento incentivador de um talento em esboço.


Vejamos suas esculturas: pedras de alabastro (uma forma de calcita branca, carbonato de cálcio, translúcida e macia para ser esculpida). Na Antiguidade, era usado para confeccionar vasos condutores de óleos e perfumes e, no Egito, para vasos canopos, portadores das vísceras retiradas do corpo do faraó a ser mumificado. São bem mais maleáveis para se trabalhar, vindos da Espanha, Itália e Portugal.

Marc de Groot limita a escultura aos torsos nus, como se quisesse afirmar domínio sobre a técnica de esculpir, talvez não valendo se estender por peças de corpo inteiro. Ocorrem ausências de rostos e semblantes, restritos ao tórax e às pernas, sempre permitindo entrever as partes mais voltadas para a sensualidade de um corpo nu que se expõe: peitos, ombros, genitália e nádegas.

Também trabalha com torsos de costas, sempre nus, dotados de sensualidade e de um silêncio que declara se encontrar pleno de si próprio, numa posição que remete a um sinal de aceitação do corpo, apesar dos defeitos e limites. E, se quisermos tatear as áreas relacionadas aos sentidos, inclusive a intuição, nada em seu corpo remete à autopunição ou a uma lascívia autopunitiva.


Portanto, é uma eloquência que só a cor branca, esculpida e polida no mármore, pode proclamar: o valor e a importância de elaborar coisas que acrescentem ao real algo provido de beleza, graça e gratuidade do harmônico, da tranquilidade. E tão belo como um sim / numa sala negativa (João Cabral de Melo Neto). Parece que a regra básica é deter-se sobre o torso, destituindo a peça da cabeça e cortando as pernas até a genitália, enfatizando a musculatura e um desenho cujo prisma objetiva ressaltar um corpo saudável e pleno de ânimo e gosto por estar vivo.

Sua trajetória no seio da pintura a óleo se encerrou aos 32 anos, devido ao fato de precisar estar sozinho para empreender os trabalhos relativos ao ato e costume de pintar. Casou-se, perdendo essa benfazeja solitude cultivada desde sempre. Parece existir uma incondicional escolha de se contentar consigo mesmo. Essa é uma tendência contemporânea, cujas declarações de pessoas com projeção social deixam transparecer essa busca por recolhimento.

Ao que parece, pelo físico longilíneo, magro, voz pausada e olhar natural dentro do olho do interlocutor, possivelmente possui um temperamento saturniano, buscando em terras de luto atenuado a solidão que tanto o gratifica, que tanto diz dele, que tanto necessita para ter ânimo e enfrentar com coragem e resiliência o dia bastante duradouro, já que desperta muito cedo e logo levanta, faz café e fuma algum cigarro.

Apesar desse hábito de quedar-

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se diante de si mesmo, não rejeita o convívio social, tanto na faculdade quanto recebendo amigos em seu flat. E uma pessoa extremamente acolhedora como anfitrião no local onde reside.

Após 30 anos sem a paleta e os pincéis, retornou ao seu pendor nunca apagado. Precisou apenas dominar as técnicas da tinta acrílica, abandonando o óleo. As brasas do talento estavam apenas quietas, até que, por uma determinação interior, logo o fogo assomou, límpido e claro, a iluminar regiões pelágicas do seu ser, no qual se depositam as imagens do humano. Trouxe primícias que a todos surpreenderam, por serem diferentes do que era sua dicção estética de outrora.

Até parece que nada é por acaso: a vida se aproxima de modo sutil, sem ser explícita no que demanda da gente. O fato de ter vindo morar no Brasil levou, quase naturalmente, a iniciar uma vita nuova, tanto em relação a cursar outra faculdade quanto à renovação da índole do artista que se encontrava adormecido.

Vejamos como se caracteriza sua dicção estética no que concerne à pintura. E necessário partir da paleta cromática, do manejo das cores, pois o uso de suas cores se encontra em adjacências mais dramáticas do que líricas. Como sucede com artistas que se dirigem às paisagens naturais, com o intuito de expressar uma busca por um ambiente bucólico.

Observemos como isso acontece em Marc de Groot. Podemos contemplar conjunções de cores mais fortes, tais como um azul escuro, um verde mais puro, um amarelo-fogo, um roxo fechado, um lilás esmaecido. Por meio do

SÁBADO, 27 DE DEZEMBRO DE 2025

manuseio dessas tintas antípodas, elabora conjunções de grande beleza plástica, sempre buscando imprimir um caráter dramático à retratação de paisagens da natureza.

Com efeito, poderia ser a busca de um locus amoenus, mas não vigora esse sentimento, tão querido pelos românticos. Há outra forma de os românticos representarem a realidade. Existe uma tradição da pintura romântica de paisagens naturais em ambientes fechados, sombrios, em que o humano se encontra só, contemplando a natureza de maneira extremamente melancólica.

Ora, quando os românticos se fizeram retratar em paisagens distantes do urbano, estavam felizes em balanços pendurados em árvores, faziam uma pausa na diversão, comiam alguma coisa sobre tapetes ou panos. Com certeza não é o caso dos nossos artistas, voltados, talvez, para uma projeção de seu estado atual.

Muito mais se percebe a sugestão de imagens voltadas a inventar composições nas quais o sombrio e o fechamento da ambiência estão presentes para conclamar o espectador. E perquirir, afinal de contas, quais as razões que o conduzem a se expressar dessa maneira. A morte ainda está bem próxima. O luto apenas deu início ao seu rosário de penas.

Com efeito, há que se deter sobre cada conta que forma o rosário, vindo às súplicas do nosso comportamento diante do morto. Na verdade, é uma elaboração por meio do bom senso, de entrega, de busca do que aquela pessoa que se foi nos deixou de sabedoria, de momentos bons, de um tempo duradouro, visando enfatizar o que as relações afetivas podem nos proporcionar de bem e de bom. Essa é a necessidade inexorável do trabalho de luto, deixando o outro estar como presença ausente. Essa postura nos diz do que se encontra no processo de compreender o comportamento de quem partiu tão cedo.

E preciso insistir nessa obstinação em plasmar em telas com acrílica, basicamente duas cores opostas: o amarelo-fogo e o azul-escuro, podendo aparecer o verde como elemento para separar as duas cores primaciais. Ocorre que essas marcas criadoras de uma atmosfera sombria e dramática hesitam, às vezes, entre o figurativo e o abstrato. Lembro aqui as marinas de Dorian Gray e Goreth Caldas, nas quais se atesta uma dúvida: se é uma paisagem marítima ou se é um exercício abstracionista.

Ainda as retratações do mesmo topos: paisagens naturais, com um foco invariante, persistente na maioria das telas, cuja presença é uma ou mais árvores. Repetem-se as cores já citadas, reverberando um ambiente em ausência de luz solar. Curioso é ser possível um traço assinalando quase todo o conjunto dos quadros nos quais as plantas estão presentes: há uma reclinação, como se tivessem crescido com o sopro de um vento mais forte.

O artista logra êxito ao plasmar com mais intensidade a árvore ocupando todo o centro da tela, manuseando a paleta com suas cores preferidas: o verde da árvore, o amarelo das terras desprovidas de vegetação rasteira, o azul intenso e o roxo, sempre funcionando como plano de fundo ou preenchendo toda a parte superior da tela.


Essa justaposição de cores não é recorrente na maioria dos pintores, haja vista o resultado: uma aparência lúgubre, escura, em que não há a iluminação do sol. E, quando ocorre a luz, esta vem da presença de um amarelo, quebrando um pouco a índole dramática de certas árvores solitárias, desprovidas da presença humana. Sobranceiras nuvens testemunham do alto a feição da organização de elementos restritos ou retirados dos caminhos ou das árvores.

Na verdade, menos que o referente (tema,assunto,topos), o que nos chega de sombrio vem por meio do uso das cores. Ao que parece, pressupõe um grande conhecimento da teoria das cores. Ou seja, não é espontâneo, mas uma deliberação da subjetividade desassossegada do pintor. Podese fazer o elogio das cores, mas longe de mim esquecer do domínio do artista sobre o desenho acadêmico.


Ocorre que essas marcas criadoras de uma atmosfera taciturna nos permitem indagar o que se passa no íntimo do artista — se é, quem sabe, reflexo de seu estado de alma, de uma realidade eivada de angústias. Esses dados biográficos não interessam muito, pois, como sabemos, arte é como se faz, não o que se faz. O contraste forte e vibrante de cores também nos causa empatia, também nos conduz a refletir acerca de uma singularidade representando o plural. Eis o que pode nos levar a pensar em um cunho de universalidade nas obras de Marc de Groot... Trata ele da condição humana, do que é inevitável, do que a Fortuna impõe com seus capriChos e suas regras, ante as criaturas impotentes.

Por fim, gostaria de extrair uma metáfora decalcada da forma como grande parte das árvores estão retratadas. Sim, estão derreadas, com uma inclinação voltada para o chão. Lembra-me um ditado, possivelmente japonês, que estabelece uma relação entre os bambus que se inclinam por causa da presença de um vento que sopra.

Assim, eles querem dizer da necessidade de se ter ânimo diante das atribulações, aceitar as vicissitudes e os limites impostos pela vida e pelo tempo. Ora, podemos até nos inclinar estrategicamente, mas não podemos deixar-nos abater, cair no chão. Melhor é vergar, aquiescer, banharse no rio da resiliência. Há que ser forte diante dos dissabores que a vida nos entrega sem que estejamos preparados para enfrentar. Há que perseverar, como Ulisses na Odisseia, com fulcro em suas navegações, dizendo sempre o mote: essa é mais uma para superar.

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