segunda-feira, 22 de julho de 2024
ALUMBRAMENTOS
Valério Mesquita*
mesquita.valerio@gmail.com
Mantenho reações conservadoras diante dos fatores imanentes e
iminentes da vida. Sou devoto dos hábitos e da retórica provinciana do interior.
O costume secularizado da cadeira na calçada, da brisa sedutora do fim de
tarde, do grito heróico do vendedor de cuscuz e mugunzá ainda me
apascentam. São crenças básicas na simplicidade da vida como perpétuo e
inalienável direito de existir, misturado ao povo miúdo, posto ser melhor do
que o absolutismo dos donos do palanque e da burguesia consumista e
desfigurada pelo cinismo materialista. Mas fui tomado pelo fascínio de mesclar
o real e o imaginário. Não exercito artificial adesão ao modismo.
Nenhum vestígio que se possa recolher da minha travessia terrena
não passará da impressão de algo plástico, aéreo, estelar, humano e sobre-
humano, difuso mas cintilante, místico e mítico. No meu bairro sou donatário
da capitania não hereditária. Ou seu capataz dos mistérios circundantes como
Cláudio Emerenciano e Vicente Serejo, hoje em Morro Branco. Não renegam a
horizontabilidade urbana de onde extraem a alma e o sumo das verdadeiras
descobertas. A minha rua em Lagoa Nova é modesta. A iluminação pública
espalha no calçamento parnasiano a luz mortiça amarela, qual um abajour lilás.
No céu estrelado passeio a nostalgia que vem da herança telúrica de um tempo
que a memória ainda não desfez. O rio, a casa, a lua, a calçada, as aparições
noturnas.
Minha angustia factual e meu desespero tipicamente social estão
inseridos no contexto das doenças que as seguradoras de saúde não cobrem.
Componho o universo sensível, ferido, por vezes amargo e infeliz, que
abomina a marginalização dos pobres, dos velhos, das crianças, vítimas do
perverso sistema econômico-social. Por isso procuro a terra habitada pelo
silêncio e pela distância das coisas, porque o meu grito é cárcere concreto e
real e já não se faz mais ouvido. Conforta-me que as palavras não são fugazes
nem constituem perdas instantâneas. Meu canto é harmônico sem divagações
nem desvios, embora as tensões e os influxos se cruzem, se choquem mas não
se anulam.
Volto a minha ruazinha comum. Nela não residem poderosos.
Afinal, sozinho perscruto a tolice dos seus mistérios visíveis e invisíveis. Não
há muito que sonhar. Como mergulhador penetro nas ruínas da alegria de sua
pobreza, sem jardins, às vezes, sem chananas, refletores ou praças. Rua opaca,
empírica, apenas onomatopaica. Mas, é o território dos meus vãos e desvãos.
Nem fantasmas líricos e bufões aparecem. Somente vislumbro minhas relíquias
imemoriais da infância e da adolescência. Restos sagrados nos olhos de quem é
intimo da ilusão, eterno aprendiz de um mundo de contradições, mas também
repleto de lembranças antigas e serenas. Tudo torna minha rua como a quero
ver.
Mas, há quem não goste da época chuvosa e fria dos últimos dias.
Só não podem negar que o vento e o frio, elementos naturais de Deus, exercem
poderosa força proustiana em busca do tempo perdido em cada um de nós. São
como se fossem energias cósmicas renováveis provindas de antiquíssimas
mutações planetárias. Até porque elas são geradas na atmosfera terrestre.
Não quis ir tão alto. Prefiro a humanidade comum das coisas
simples de explicar. E, às vezes, o pior é que elas não são tão simples como
parecem. Por isso, volto à solidão do meu quarto, onde permaneço em
comunhão com a frialdade da madrugada incomum, mas hospitaleira. Sei que
mais tarde terei outra sinfonia. A dos pardais, logo nas primeiras horas da
matina, como se vaiassem o sol emergente. Diante de tudo, e apesar de tudo, a
quem foi concedido o direito de desconhecer tais coisas: o vento, o frio e a
chuva? Termino dizendo que elas estão, não somente fora de nós, mas,
principalmente, dentro de nós.
(*) Escritor.
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