quarta-feira, 15 de maio de 2024
Vivendo a distopia
Padre João Medeiros Filho
No Brasil atual, de um lado verifica-se um clima de arrogância, vaidade e
opressão; de outro, apatia, temor e pessimismo. Em meados do século XX, alimentavase a utopia ou o sonho de mudar os costumes e a nossa sociedade. Corria nas veias da
juventude o sangue de ufanismo com seus ideais e valores. Imaginava-se um futuro
próspero. O Brasil focalizava tudo no adjetivo: “novo”. Cinema novo, bossa nova etc.
Hoje, vivem-se momentos de distopia, em que predominam descrédito, desânimo, malestar, depressão individual e social. O autor do Eclesiastes padeceu desse sentimento:
“Todas essas coisas são difíceis de explicar. Mas, a vista não se cansa de ver, nem o
ouvido se farta de ouvir” (Ecl 1, 8). A Pátria amarga a omissão, leviandade e incúria,
advindas de alguns filhos. Está pobre de espiritualidade e carente de Deus.
O egocentrismo domina. Cresce o isolamento das pessoas. No reino animal,
os humanos talvez sejam as criaturas mais sedentas de companhia. Sua natureza
requer solidariedade, por isso aproximam-se dos semelhantes. Porém, o medo e a
insegurança levam ao distanciamento. Muitos manifestam desagrado e indignação
diante de certas realidades e sentem-se impotentes. Raramente, é possível propor
algo factível. Percebe-se um desalento, oriundo da distopia, que desencadeia
radicalismo e polarização. Não raro, importam mais os sofismas e narrativas com o
objetivo de desviar a atenção dos sérios e urgentes problemas nacionais.
O mundo atravessa uma crise civilizatória, dominado por ódio, sede de poder,
soberba e violência. Indivíduos e grupos demonstram mais força que governantes e poderes
constituídos. Será que tudo é pensado em função do acúmulo de riquezas e dominação? A
natureza é massacrada. Considera-se sua preservação entrave ao progresso ou objeto de
discursos demagógicos. Inverteu-se a axiologia. O homem existe em função dos planos de
poucos. Não falta quem queira impor suas ideias e vontades aos demais. Isso é anticristão.
Jesus não impunha, propunha. “Se alguém quiser me seguir...” (Mt 16, 21). Fala-se tanto
em democracia, todavia muitos a golpeiam e tentam destruí-la. A honestidade intelectual
agoniza. Felizmente, a espiritualidade sobrevive, sendo da essência da vida, altar de
incontáveis valores. Contudo, busca-se um sustentáculo para o egocentrismo, a volúpia do
poder e exaltação dos interesses grupais e partidários. Hoje, segmentos e projetos
ideológicos têm mais importância que a Pátria. Priorizam-se esquemas partidários em
detrimento de autênticas políticas públicas. Mas, há os que dão exemplo de altruísmo e
fraternidade. Como não lembrar Padre João Maria, Irmã Lúcia Vieira, Irmã Dulce e tantos
outros? Suas opções originaram-se da força transcendental da fé, impulsionando a caridade.
Assiste-se à mercantilização dos bens da vida, das relações sociais. Observa-se a
política desprovida de sensibilidade e preocupações comunitárias. Surgem posturas
maniqueístas. Declina-se do irrenunciável dever de encontrar as causas e soluções dos males.
Os simplistas afirmam a necessidade de resignar-se à vontade divina e orar por um milagre.
Tem-se a sensação de um Brasil em derrocada. Predomina o sentimento de incredulidade e
negativismo. É a distopia, minando a estima. Muitos cristãos carecem da esperança, uma
virtude teologal. Revoltam os gastos excessivos e o desperdício do dinheiro público diante da
fome e da precária assistência na saúde, educação e segurança. Causa asco o cinismo dos
infratores, acrescido da demagogia e politicagem com interesses espúrios. O povo fica
perplexo e apoplético. Resta-lhe apenas calar-se diante da liberdade sufocada, da insegurança
reinante. Presencia-se a queda dos princípios pelas conveniências, do Bem pelos bens.
A Bíblia contém vários exemplos de desalento, como o que se vive hoje. A saída não
depende deste ou daquele partido. E sim da consciência e união de todo o povo, embasadas
numa maneira digna e autêntica de pensar e agir, inspiradas em postulados éticos. Cristo não
teve pressa em instaurarseu Reino. Adotou uma atitude que possibilita e efetiva a perseverança.
Reuniu discípulos e plantou sementes de uma filosofia de vida. Esta se alicerça no amor,
respeito ao outro, compaixão, solidariedade e partilha. Não se pode esquecer a verdade do
salmista: “Senhor, todos os que esperam em Ti não serão confundidos” (Sl 25/24, 3). Cristo
assegura-nos: “Estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28, 20).
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