sábado, 7 de julho de 2018



A FAMIGERADA LEI DA FUGA

Valério Mesquita*                                                                                                       

Chegou Abílio Frota. Veio passar os festejos juninos em Macaíba e visitar o seu irmão Pierre. Achou o “mano” mas não viu São João.  Ué, cadê a animação?”, perguntou-me curioso, com acentuado sotaque mineiro. Abílio saiu de Macaíba em 1971, vitima da sua própria ingenuidade. O mundo cão lhe foi cruel. E ele, uma ovelhinha da manhã, confiou demais nos códigos, nas leis e nos ditos cartoriais. 
Era casado com Adelaide, mulher bonita, beleza brejeira que descobrira em Crato e trouxe para a sua cidade. Mal desconfiava que Adelaide iria despertar nos homens, paixões descontroladas. Macaíba, perto de Natal, nunca foi tão provinciana como imaginavam ou ainda imaginam alguns.
Abílio trabalhou um tempo no Fórum local e aprendeu certos palavreados jurídicos, sentenças, que acreditava como se fossem um dogma, uma norma de ser e agir na vida. “O assassino fugiu ao flagrante do crime para depois respondê-lo em liberdade”, foi uma das aberrações jurídicas que captou e que foi a ruína do seu casamento. Acreditava piamente na faculdade da lei que privilegiava os bons antecedentes do criminoso como status para usufruto da liberdade condicional. Era o máximo: “Que avanço da legislação penal brasileira!”, gostava de elogiar.
Passados alguns meses, tomou conhecimento que sua mulher o enganava. Após algumas reflexões, decidiu usar os dispositivos da decantada lei para punir a esposa infiel e o “ricardão” malfeitor. Partiu para o flagrante. Conhecendo quem era e os antecedentes, estaria a vontade para indigitar à justiça os prevaricadores. Armou algumas armadilhas mas não deram certo. Sempre o “pé de lã” fugia ao flagrante auxiliado pela esperteza da mulher.  Você prova, você viu Abílio?”. “Não”, respondia desconsolado. E os sussurros na cidade já contabilizavam seis amantes alternativos e rotativos. Abílio enlouquecia.
 Certa vez, avisou a Adelaide que viajaria a Macau e sumiu. Nas caladas da noite foi dormir no telhado de sua casa para lavrar o jurídico flagrante e nada aconteceu. A partir daí passou a crer na inocência de Adelaide apesar dos consistentes rumores. Numa manha de quinta-feira, o juiz de Direito seu amigo, penalizado com o sofrimento e a ingenuidade do seu servidor resolveu abrir o jogo: “Abílio, transfira-se de Macaíba. O clima aqui está muito pesado. Esses boatos estão lhe destruindo”. “Estão não doutor”, respondeu Abílio com convicção. “Adelaide é honesta. Pela lei nunca a peguei em flagrante e acima de tudo tem ótimos antecedentes. Inclusive, doutor, posso culpar os acusados que nunca flagrei?  Até a polícia me forneceu todos os atestados de bom antecedentes”, concluiu com extrema benevolência.
A injusta lei do flagrante havia causado mais uma injustiça. Num sábado de 1971, Abílio e esposa partiram. No recente reencontro, arrisquei perguntar por Adelaide. “Ela me deixou. Mulher admirável. Nunca pude lhe aplicar a lei do flagrante”.

(*) Escritor

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