quarta-feira, 14 de março de 2018


MEU GRITO

Valério Mesquita*


            De anotações feitas à hora do crepúsculo em livros idos e vividos, pincei uma frase que me remete ao delírio das coisas de querer ter sido e não fui: “eu que tantos homens fui, não fui aquele em cujos braços desfalecia Matilde Ubach”. Pensamentos fluidos, na verdade, de reencarnações em lugares e tempos, sonhos e fugas do real ou transposições de corpo e espírito para lugares onde nunca naveguei, muito além da ponte de Igapó.
            Ter sido, por exemplo, acompanhante do Cristo nas peregrinações e presenciado seus milagres para não me dividir hoje, nos conflitos das igrejas do mundo; gostaria de ter sido expectador do teatro shakespeareano e tê-lo conhecido de perto e acompanhado todos os seus porres nas tabernas escuras da Londres elizabetana; como amaria a passagem pelos estúdios de cinema dos anos trinta e quarenta só para ver Charles Chaplin, Stan Laurel e Oliver Hardy; ter aspirado o odor do charuto de Getúlio Vargas e escutado em dó maior a gargalhada prazenteira; ou como figurante dos filmes de John Ford, viajado nas diligencias do tempo pelas pradarias do oeste; de Juscelino a companhia e as conversas dele com o que havia de melhor no PSD naquela época: Israel Pinheiro, Amaral Peixoto, José Maria Alkamim, Benedito Valadares, Tancredo Neves; ou de um polo para outro, muito me ufanaria haver morado no Rio de Janeiro só para ouvir os discursos do bruxo Carlos Lacerda e acompanhar as suas ações como governador com “m” maiúsculo do Estado da Guanabara; eu, que tantos homens fui, não fui aquele que conviveu mais tempo com Câmara Cascudo, pois considero privilegiados os que receberam essa oblação; quantas vezes não me vi nos shows dos Beatles e como “macaco de auditório”, no começo do yê-yê-yê, no programa Jovem Guarda das tardes de domingo; e quanto fascínio não exercem sobre mim as cidades interioranas da Paraíba, Pernambuco, Ceará, Minas, Bahia, das moças namoradeiras, das praças, dos olhares furtivos como se eu quisesse, de repente, paquerá-las todas ou me compensar, ao menos, em contemplá-las lindas e infinitas, renascidas de minhas ilusões de adolescente.
            Ah! Como esse mundo de hoje dói. Não há mais ídolos. A violência urbana e a guerra mataram os sonhos e as ilusões castas dos nossos pensamentos. É um mundo de aparências, de vaidades e iniquidades. “Olhe, aquele ali é Machado de Assis e com ele Eça de Queiroz!”.
            Faltou-me alguém que apontasse, naquele tempo, essa visão dos dois monstros insuperáveis da literatura luso-brasileira; e se o sonho triunfar sobre a verdade, posso dizer nesse final que assisti Padre João Maria sarar os enfermos; preguei com Frei Damião na noite litúrgica e estrelada de Macaíba; que vi subir o balão de Augusto Severo e que assisti o último suspiro de Auta de Souza.
            E se o leitor me acreditar, conheci Lincoln na guerra da Secessão; vi Roosevelt, Getúlio Vargas, Tyronne e Evita na Ribeira de guerra. Se todas essas reflexões são febris ou inverossímeis, é preferível crê-las e esquecer as bestas do apocalipse: Donald Trump, Kim Jong-un  da Coreia do Norte, Bashar Al-Assad da Síria, cujas imagens na televisão sujam de sangue as nossas esperanças por um mundo de paz.
            As águas do rio da reminiscência atingem novas margens e aprofundam o porão da memória. O Cine Teatro Independência de Macaíba dos filmes do Gordo e o Magro, dos Três Patetas, de Abott e Castelo além dos faroestes que não se repetem mais; a praça Antônio de Melo Siqueira dos primeiros alumbramentos, dos passeios, do banco do namoro, do coreto, tudo como qualquer lembrança de homem comum do interior; a rua do Vintém, do Cajueiro, as Cinco Bocas, a praça da Matriz, o cais de pedra do rio Jundiaí, as jabuticabeiras da Lagoa das Pedras, o Pernambuquinho; o Gango (o baixo meretrício), de todas proibições à hora do crepúsculo; os antigos ônibus da linha Macaíba/Natal que me consumia diariamente a farda estudantil; enfim, o universo humano das figuras populares, coração e alma de Macaíba que não para nunca.
            Na noite de minha vida ainda assisto, com nitidez, à passagem do meu rio porque eu continuo a ser os meus personagens prediletos.

(*) Escritor. 

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