E quando só o amargo salva?
Luciano Ramos - Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do RN“Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta.
Esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu permaneço atento. Na arquibancada para, a qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa.
De muito gorda a porca já não anda, de muito usada a faca já não corta. Como é difícil, pai, abrir a porta. Essa palavra presa na garganta. Esse pileque homérico no mundo. De que adianta ter boa vontade. Mesmo calado o peito, resta a cuca dos bêbados do centro da cidade.
Pai, afasta de mim esse cálice...
(Cálice, Chico Buarque)
A maioria de nós, se olhar bem fundo na memória da primeira infância, recordará a sensação de tomar um remédio amargo. Pode ser um xarope especial - aqueles que só vó sabe fazer, uma injeção dolorida ou até mesmo as gotinhas da vacina que nos salvaram da paralisia infantil.
Lembramos a dor, o amargo, a língua travada, mas dificilmente fica o registro do bem que eles nos fizeram, diluído em meio a tantos outros acontecimentos.
Em qualquer contexto, cortar gastos de pessoal na Administração Pública é um dissabor mil vezes mais amargo do que o pior dos remédios, ainda que os valores pagos sejam incompatíveis com a razoabilidade e que se beire a incapacidade de honrar com as despesas.
Se o problema vem sendo rolado há anos, então, a perspectiva de que o tempo fechará a conta sem maior esforço torna a bebida intragável para uns e extremamente custosa para aqueles a quem compete decidir tomar e distribuir entre seus convivas.
É preciso ter muito senso de responsabilidade para adotar estas medidas impopulares. Mas, também é neste momento que as lideranças justificam a sua própria existência – se nunca adotássemos as medidas necessárias que desagradam a maioria numérica (muitas vezes nem isso, apenas falam mais alto), não precisaríamos de representação.
Neste momento, dois Poderes do Estado do Rio Grande do Norte se veem diante desta encruzilhada, que bate à porta do Poder Executivo e do Poder Judiciário – embora esta realidade não esteja muito distante do Poder Legislativo, que andou flertando com o limite prudencial da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2014. Em cada um deles, apresentam-se dificuldades próprias para que se faça aquilo que a realidade posta impõe.
No Executivo, o custo político das medidas impopulares dá o tom da resistência de aproximar a mão deste cálice, mas não tarda a chegar o momento em que as opções serão tomar o remédio de vez ou tomá-lo todos os dias pelo resto da vida – se nada for feito agora, os atrasos retornarão no segundo semestre de 2015, sem que haja outro fundo para raspar as reservas.
No Judiciário, onde não deveria haver custo político, a dificuldade está no planejamento de despesas que passa por decisão colegiada, sobretudo pela sensação humana de que não somos diretamente responsáveis por aquilo que decidimos em grupo, como se fosse uma entidade alheia aos indivíduos que o compõem – ainda que este sentir não corresponda com a realidade, pois, em decisões administrativas colegiadas que envolvam despesas públicas, todos são ordenadores de despesa e se responsabilizam pelas consequências de suas decisões.
Somados todos os desafios, para que não vejamos emergir um monstro da lagoa, é preciso que aqueles que decidirão os destinos das despesas públicas nestes primeiros meses de 2015 não se concentrem só em pensar que o sabor é amargo, pois os efeitos da paralisia de soluções serão muito piores para todos.
Enfim, se a faca não cortar o excesso, chegará o dia em que a porca não mais andará!
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