Um passeio pelas ruas e praças de Natal há de revelar, até ao transeunte mais distraído ou indiferente à paisagem, a presença de um espírito zombeteiro que escarnece de ícones e da estética aos inspirar aos governantes locais a produção de monumentos que expressam a pequenez do intelecto e a insuficiência de gosto.
Natal ostenta alguns dos mais execráveis e ridículos monumentos, como o “soldado-aleitador” chantado diante do Quartel da Polícia Militar, no bairro do Tirol; a liliputiana herma do valoroso angicano José da Penha, na Ribeira; a “mão-molenga” na qual depuseram estátua de Cascudo, na Cidade Alta; e, para não tornar extensa a lista, as raquíticas estátuas dos ex-governadores Dinarte Mariz, nas cabeceiras da Via Costeira, e a de José Augusto Bezerra de Medeiros, na esquina das ruas da Conceição e Ulisses Caldas: homenagens que constituem em deboche e desomenagem, pois à primeira vista, em vez de admiração, costumam suscitar no apreciador do belo frouxos de riso, diante de obras tão canhestras, toscas e desprovidas de grandeza.
Parecem-nos, aos observadores mais atentos, “obras de carregação”, feitas sem o arcabouço de projeto e sem nenhum estudo prévio, obras enfim contratadas às pressas por gestores destituídos de cultura e sem distinção intelectual, geralmente mal assessorados por comissionados insensíveis aos simbolismos história e à magia mesma da arte; gestores incapazes de recorrer a consultores especializados e ao planejamento de obras feitas para o desfrute público.
Uma verdadeira destonia entre o desejo e a realização que resulta sempre capenga e sem carismas de que é exemplo, no gênero, a Cidade da Criança, parque a que faltou o dedo de um arquiteto sonhador. O resultado aí está para ser visto por todos: um corolário de caixotes coloridos que não saíram baratos aos contribuintes; uma obra superfaturada que se arrastou penosamente durante uma década até a caiação final.
Sob a nascente República a cidade conheceu um surto de bom gosto que se refletiu, também, nas obras públicas. Nossos primeiros oligarcas, talvez inspirados pela Belle Époque, doaram-nos o que há de mais distinto em nossas praças e logradouros, obras realizadas segundo um nível de exigência que tem faltado a todos aqueles que os sucederam em cargos tão estratégicos.
Em anos relativamente mais recentes, a exceção ficaria com o impressionante conjunto escultórico erguido, por iniciativa do povo do Ceará-Mirim, na cidade de Mossoró, em memória do ex-governador Dix-sept Rosado, morto tragicamente como um herói popular, diferencial implícito na concepção desse monumento funerário que se equipara e ultrapassa, em suntuosidade, o monumento que os natalenses ergueram para maior glória de Pedro Velho, na praça homônima, uma obra que faz a República curvar-se diante do fundador da nossa primeira e mais ostentosa oligarquia, a dos “pantagruélicos Maranhões” - na célebre verrina do Capitão José da Penha.
Como o próprio Pedro Velho, em Petrópolis, na praça a que empresta o seu nome -, em Mossoró Dix-sept ergue-se, ma Praça Vigário Antonio Joaquim, acima do solo, em proporção colossal, simbolicamente aclamado pelo povo do Rio Grande do Norte, como Pedro Velho o foi pela República.Percebe-se claramente, nessas duas obras, a intenção de exaltar e enobrecer com a sugestão de vidas profícuas, talvez marcadas pelo destino, desses dois protagonistas da História norte-rio-grandense. Estão, assim, no centro de uma alegoria que os introduz no Panteão potiguar.
Em tudo o “oposto” das “homenagens” prestadas a dois outros ex-governadores, Dinarte Mariz, enquistado na rotatória da Avenida Roberto Freire com Via Costeira, na Zona Sul da cidade que costuma tratar mal seus maiores; e o acanhado ”boneco” de cimento pintado de dourado, representando José Augusto de Medeiros, assustadoramente entronizado, sem maiores cuidados, numa esquina da Assembléia Legislativa. Ambos, acanhados e sem expressão, como estatuária, e, no caso de José Augusto, raquítico e tosco como um boneco de feira.
A mesquinhez e a incapacidade de traduzir simbolicamente em uma imagem volumétrica o legado de cada um desses infelizes homenageados ou vitimas da pressa e do açodamento leviano de gestores sem sombra de distinção intelectual, quando não mal assessorados por pessoas talvez bem intencionadas, mas incultas e sem o discernimento estético necessário à concepção de obra pública carente de subjetivismos. Pior, ainda, o descaso com que tais obras são tratadas depois, ou destratadas – dá no mesmo – pela incúria de sucessivos governantes e gestores, entre os quais os que defraudaram um monumento natural dos natalenses, a Lagoa de Manuel Felipe, invadida pelo Hospital da Policia Militar em uma de suas ampliações. Um crime de lesa-meio ambiente que passou despercebido dos órgãos de defesa ambiental.
Não chegam, porém, a constituir tais monumentos o feio artístico, isto é, intencionalmente formal, mas o resultado da inépcia de seus idealizadores, da falta de concepção e da desproporcionalidade.Delatam, ainda, a falta de idealismo, a inexistência de utopias e o desfavor do mérito, subestimado em ações que resultam de entusiasmos frívolos que põem em xeque a capacidade de uma elite, paradoxalmente, de indigentes endinheirados que gastam sem critério o dinheiro de nossos suados impostos com a fatura de obras burlescas que surpreendem aos transeuntes.
Não admira que Kip Chinian, ao deparar-se com a estátua do escritor Luis da Câmara Cascudo trepado sobre uma mão disforme, em frente ao seu memorial, não tenha controlado o riso e perguntado, a mim e a Jota Medeiros, que mal aquele cidadão teria feito à cidade para merecer de seu povo tão ridícula homenagem. Lembrei-lhe que, na época em que era forjado o monumento, coloquei-me em confronto com os seus idealizadores, por considerar a homenagem apressada e falha em sua concepção estética.
Nos últimos anos, apesar de uma maior conscientização do fenômeno artístico, a cidade tem sido acossada por uma horda de pseudo-escultores que em sua ofensiva desovam suas pedras e espantalhos de alumínio pintados de zarcão como sentinelas de edifícios e condomínios, cujos incorporadores e arquitetos responsáveis pela ambientação apreciam o espírito cômico – quando não a tolice espaventosa – que se reflete no trivial e no acidental dessas obras toscas que enfeiam Natal e borram a sua arquitetura multifuncional.
.Fragmentos do livro Natal insólita
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