ONDE CANTAM OS LÍRIOS - POR LÚCIA HELENA PEREIRA.
PEDRO SIMÕES NETO
LÍRIOS
LÍRIOS E LÍRIOS
PEDRINHO SIMÕES
ONDE CANTAM OS LÍRIOS
Lúcia Helena Pereira
Anos se passaram, distanciando-nos, esquecendo-nos um do outro, por longo tempo. Caminhos separados, vidas tão diversas!
Eu tinha quase sete anos quando deixei o meu vale encantado. E deixava nele a minha página de amor, lembranças amenas, o trem “Buá” apitando a cada amanhecer. Piô e Maroca, contadoras de estórias, Quincas e Lebre (empregados da casa, ingênuos, brigando e resmungando, logo cedo, por uma janela, das cinco ou seis do casarão dos meus pais, só para assistirem o trem passar)..., dona Biluca, rendeira de almofadas de bilro, o rio Água Azul (feiticeiro), os olheiros do vale, a paisagem mística e mítica de um vale encantado.
Uma manhã, num descuido de Babá, saí sem destino. Passei pela Estação de Trem e subi a rua que leva aos engenhos. Queria ficar sobre a pequena ponte e pescar tilápias. Esse o mundo adormecido na legenda romântica dos cantores líricos.
Em minha casa, um verdadeiro rebuliço, até o “compadre” Joaquim Gomes, tocador de rabeca, que morava num lugarejo perto de Ceará-Mirim, ouviu a notícia e comentava de instante a instante, se engasgando e fungando: “corrí pra cá, mode vê o qui tá acontecendo na casa da minina Luça”...
Todo esse rebuliço teve origem por julgarem que eu havia desaparecido.
Regressei ao meu lar, cheia de felicidade, após umas 3 horas, creio, e vinha contente , trazendo na cestinha, quatro tilápias pequeninas. Nas mãos um buquê de lírios que colhi, derramados do muro da casa de minha amiguinha: Dindinha Dedé (uma velinha simpática), que tinha um beija-flor chamado Rico.
Ao chegar na calçada da minha casa avistei Pedrinho e seus pais: dona Esmeralda e o Dr. Percílio Alves de Oliveira e dona Esmeralda, e muita gente, solidária à minha família. Dr. Percílio resplendia no olhar toda a sua imensa bondade e expectativa. Pedrinho sorriu, piscou o olho num gesto simples de cumplicidade infantil. Lembro-me da roupa que usava: calção tipo bermuda, camisa listrada e alpargatas de couro. Passou por mim e disse: “dona Áurea está aperreada demais”...
Vivíamos num lugar lindo e verde. Tínhamos dois belos despertadores: o apito do trem às seis da manhã e o dobre dos sinos da Matriz, tocando concomitantemente. Esse som, provindo das entranhas do tempo, até hoje soa e ressoa, como canção eterna.
Pedrinho era um menino bonito. Arrancava suspiros das meninas, inclusive uma prima minha que só o chamava de Pedrão, quando o via, revirava os olhos. Éramos tão crianças... Mas ele “tirava de letra” esses arroubos da infância, esses eflúvios que a idade permite, num tempo feliz e despreocupado, na infância inocente e bela. Por outro lado ele só tinha olhos para uma certa guria dos cabelos de ouro.
Aquele era um tempo de felicidade.
Um dia, estávamos na Matriz de N.Sra. da conceição, para a Primeira Comunhão de uma conterrânea, filha de amigos dos nossos pais. Na hora da comunhão, Pedrinho e eu fomos comungar sob os olhares severos dos nossos pais. Ora, fizemos um jeitinho e o Pároco colocou a hóstia em nossos lábios. Corremos para sentarmo-nos, onde estavam nossos familiares que apavorados pediam que colocássemos a hóstia em suas mãos. Que nada, mastigamos e engolimos e lembro-me de Pedrinho dizer: “Tem gosto de cavaco chinês”...
De outra feita, anos depois, naquela rua onde morou dona Dulce Wanderley, em Natal (rua lateral do cinema Nordeste) creio, onde ficava o escritório do então advogado Pedro Simões Neto, e ele vinha no seu carro e me viu passando na calçada. Franziu o cenho e pensou alto: “será Lucinha”? Não parei, ia correndo para o cinema Nordeste, para assistir um filme daqueles que jamais esquecemos: “A ponte de Waterloo”.
O tempo passou, em 2010 reencontramo-nos numa reunião no Instituto Histórico e Geográfico do RN. O meu querido Enélio Petrovich ao me ver, exclamou: “chegou a nossa poetisa do Ceará-Mirim”. Pedrinho virou-se e ao me ver levantou-se e disse: “Lucinha? Lucinha do sr. Abel e dona Áurea? Mas, olha, como você está bem”... Santo Deus, uma surpresa às dez da manhã. Não consegui dizer nada, estava impactada ao rever o menino que ficou no vale, cumprindo o resto de sua infância, enquanto eu partia... trocando os meus brinquedos e o meu mundo lobateano, por um novo mundo.
Pedrinho significou, acima de tudo, na minha nomenclatura, uma raiz de lírio que o vento trouxe para o vale verde e o vale, sem egoísmo, deixou que se expandisse mundo afora. Afinal, ele morou em muitos lugares, era um cidadão do mundo, um homem dotado de inteligência invulgar e cultura geral. Escritor notável, de estilo belo e raro, marcou a “ Escola Literária” de Ceará-Mirim, de Natal e de outros lugares, onde a sua pena d`oiro realçou as letras. Seus escritos eram como lírios desabrochando num jardim tropical. O lirismo era a sua tônica criadora, a cor essencial da vida, sempre pronta a desabrochar e transpor outras dimensões, onde o escritor se encontrava, pela sua alma luminosa, com todos os anjos.
Tenho certeza de que a sombra luminosa dos seus passos, todas as noites aclara o vale! E o canavial faz a sua dança romântica ao soprar do vento noturno, como um ritual de louvação ao filho pródigo.
Pedro Simões Neto era uma alma sensível. Imaginação criativa e memória infalível. Um homem sábio, virtuoso. Tornou-se, em pouco tempo, inspirador de muitos dos meus pobres escritos. Ele sabia, como poucos, sentir a força do coração no sentimento de cada hora e lugar. Ele era a palmeira do deserto, onde cantam os lírios na florada da sua alma.
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