UM PROVÁVEL MANOEL ONOFRE JÚNIOR
Afaste-se a escuridão que eu estou chegando com a aurora
Tenho para mim que um homem se constrói com migalhas de si mesmo, fragmentos de espelhos auto-reflexos, fotos amarelecidas, cheiros, sons, cores, mas, sobretudo, alicerçado pelo conjunto de sua obra, seja ela qual for.
O perfil que é agora revelado, trata de uma personalidade hermética, que aparentemente é identificada como um espécime fora do comum, porque não é possível catalogá-lo entre aqueles reconhecidos como padrões. Em tal circunstância, os parâmetros de avaliação tendem a não alcançá-lo e, diante de tal circunstância, o analisado ficaria à mercê do humor e do juízo do analista.
Por isso, prefiro tratá-lo como personagem, construí-lo, qual Stanislawski, pelo menos nos traços marcantes da sua personalidade, conduzindo com liberdade os meus registros, muito próximos da verdade, verossímeis.
ECCE HOMO
Eu o via passar pelos corredores do Atheneu dos anos sessenta. A sua figura, grave, taciturna e um tanto solene me chamava atenção. Caminhava pesado, como se tivesse dificuldade em se deslocar. Depois observei que o andar fazia parte de um sistema unitário interdependente que o articulava na sua vida de relações.
Sempre busquei estereótipos literários para os seres humanos que destaco como singulares. Então, o pus entre Judas, o obscuro, um figurativamente Quixote aculturado, e um personagem Machadiano ainda inédito, mas com o molde, o caráter e a roupagem típica do universo literário do escritor carioca.
Sua fisionomia lembrava-me a de um totem pré-colombiano – madeira recortada a golpes rudes, o nariz arqueado, a cabeça entre o redondo do “cocoruto” e o oval pronunciado pelo queixo, bem talhado, retangular, sugerindo firmeza. O olhar distante, a boca grande com os lábios separados por uma nesga decotada muito estreita.
Os cabelos encaracolados resistiam ao pente. Os óculos pesados potencializavam a expressão míope. Às vezes transparecia os lábios crispados. Talvez o sal preso da palavra lhe amargasse tanto e, malgrado o incômodo, não ousasse cuspi-lo.
Estava sempre bem vestido, roupas conservadoras bem assentadas, a camisa por fora das calças e vez por outra concedia-se a um desfrute comum à nossa geração: os sapatos sem meias.
O conjunto me transmitia seriedade, compostura, reserva, integridade e timidez. Percebia nele um ser humano naturalmente honesto, sem a afetação dos que acreditam que esse predicado é uma virtude pouco encontradiça e que, portanto, merece um tratamento reverencial. Mas intui, também, uma criatura contida, disciplinada, submetida a auto-controle. Conclui que se essa criatura não buscasse a própria censura, se não se reprimisse, daria vazão a algumas verdades incômodas, e por isso mesmo impróprias de serem ditas porque politicamente incorretas. Daí o sal preso e o ricto da boca crispada.
Verifiquei, depois de algum tempo, que o meu personagem não era intolerante ou preconceituoso, sequer poderia enquadrá-lo na categoria de donatário de verdades absolutas, mas alguém inconformado com o desvio das condutas franqueadas pelo senso comum por outras, transgressoras, em prejuízo de direitos de terceiros ou da harmonia social.
Devia sentir-se como estrangeiro em seu próprio país, submetido, convenientemente, à lei da mordaça. Eis porque a armadura da timidez, autêntica, todavia estrategicamente utilizada como disfarce, dissimulando a firmeza de princípios, a inteireza de caráter, represando a vontade afirmativamente inconveniente. (Lembrei-me, bem a propósito, de Pessoa: O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, dor que deveras sente)
Como num jogo de sombras chinesas, ou no enigma de Pirandello, assim é, se lhes parece.
Ele sabia-se, mas deixava que os “outros” se valessem da metáfora da poeta Cecília das Gerais buscando as suas imagens num espelho que tudo reflete menos a verdade. Um jogo de esconde-esconde. Um personagem à procura de um autor.
Alguns anos depois, nos tornamos colegas e estudamos juntos durante cinco anos na velha Faculdade de Direito da Ribeira.
Logo depois que nos relacionamos, adquiri uma sua composição a aquarela, dentre outras que ele levou à exposição: a cena de um enterro interiorano em que o defunto era conduzido numa rede. Agradou-me a escolha do tema, o colorismo, o molde popular, mas sobretudo a fidelidade aos arquétipos regionais, opção pouco usual na elite intelectual de então.
EM CARNE E OSSO
Estou esboçando, em traços rápidos e econômicos, o perfil do meu amigo Manoel Onofre de Souza Júnior, Desembargador aposentado, Escritor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, da União Brasileira de Escritores, diplomado como personalidade cultural pela União Brasileira de Escritores, ganhador do Prêmio Câmara Cascudo, em 1975, com o livro “Estudos Norte-rio-grandenses” e autor de mais de vinte livros que depõem sobre o seu amor à sua terra e à terra dos nossos mais remotos ancestrais.
Foi jornalista da Tribuna do Norte, Professor de História do Brasil, na Escola Alberto Maranhão e no Colégio Winston Churchill, e de História Política e Administrativa do Brasil, na então Faculdade de Sociologia e Política de Natal.
Ingressou na magistratura em 1970, sendo Juiz de Direito das comarcas de São Bento do Norte, Taipu, Pau dos Ferros, Martins, Mossoró e Natal. Dezenove anos depois, foi promovido, por merecimento, ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado, e, nesta condição, exerceu as funções de Corregedor da Justiça e membro do Conselho da Magistratura, aposentando-se em 1992.
Desde então, tem-se dedicado todas as horas do dia, ao seu verdadeiro ofício e vocação de escritor
Entretanto, não é dos seus belos livros que quero tratar agora , mas do próprio autor, que se revela riquissimo personagem, pela singularidade da sua personalidade e pelo conjunto de sua obra existencial e literária. Ora é revelado pela arte que imita a vida, ora pela vida que imita a arte.
O meu nobre amigo é filho e neto de juízes. O avô, Desembargador João Vicente da Costa, foi nosso professor de Teoria Geral do Estado, no primeiro ano de direito. Senhor de uma notória erudição e quase litúrgica devoção ao direito, no entanto, a idade já avançada nos sonegou os benefícios da sua sapiência. Falava com um fio de voz, quase imperceptível para a maioria da turma. Usava chapéu de massa, paletó e gravata e a impertinente calvície era acentuada por uns poucos fios de cabelo rebeldes e longos. Os olhos, no entanto, eram vivos e penetrantes, denunciando uma energia subjacente inimaginada.
Descende de duas ilustres famílias – Onofre e Costa – cujas origens se perdem nos confins da Ibéria e se encontram nos registros da história do nosso estado.
Mas, creio nele quando se confessa “beiradeiro”. É de fato um menino crescido no interior, um serrano de Martins, terra que carrega para onde vai, como confessa em “O Caçador de Jandaíras”.
Talvez a alma serrana/beiradeira se some à sua timidez, ou seja parte dela, fazendo-o como é. Mas, permito-me discordar dele, quando, comentando declaração do sergipano Gilberto Amado, segundo a qual teria pena de quem não foi menino de engenho, afirmou que substituiria o “menino de engenho” pelo “menino serrano”. Eu substituiria o “menino serrano” por “menino do interior” – o menino beiradeiro.
A OBRA
Onofre, no entanto, é denunciado na sua obra, exposto, abordável, claro, preciso, lógico, simples, direto. Os seus textos são de uma clareza Natalense, abrem-se como girassóis, oferecem-se como pequenos guias informais dos sítios turísticos, à cumplicidade da aventura da descoberta.
São, sobretudo, telas, aquarelas que não retratam a profundeza humana, nem se comprometem com transfigurações do real, antes, são relatos, observações, composições que não distorcem o cenário, acentuam-no, apenas. Econômico, como os americanos John dos Passos, John O´Hara e, uma certa fase de Hemingway, sobremodo na incrível proposta reducionista de “O homem e o mar”. Muito próximo do nosso Graciliano, seco, duro, mas não impermeável à emoção que não produz gratuitamente, mas ressalta do próprio cenário, emerge da temática. Mais tendente ao jornalístico, ao histórico e ao memorial que à ficção, embora “A Primeira feira de José” denuncie o grande contista que ele é.
É, sem dúvida, um colecionador de tipos, um “causeur”, que não precisa esforçar-se para criar, porque, parafraseando Van Gogh, todas as coisas estão ali, ao alcance da memória. A arte imitaria a vida.
O meu amigo, contrariando o lendário e o mítico, é solar. Habituado aos altiplanos, não sente a vertigem dos que habitam as planícies, quando expostos às grandes altitudes. Por isso não sofre do mal das alturas. Porque permanece no “Chão dos Simples”, fiel às suas origens, mesmo em Macchu Pichu, na Cordilheira dos Andes ou nos Alpes.
Não resisto ao clichê: é um Quixote de chapéu de couro, gibão e um cajado de jurema. Subindo e descendo a serra de Martins no lombo de um burro, em feliz algazarra, que nem os passarinhos acanalhados de Inácio Magalhães Sena em “Agora Lábios Meus Dizei e Anunciai”. Aqui e ali se abastece de frutinhas do mato, escuta um que outro passarinho cantador, rouba o mel das jandaíras, banha-se num riacho atrevido que pensa que é rio, deita-se à sombra de uma mangueira frondosa e bota olho gordo nos cajus vizinhos, vermelhas e grossas vírgulas ou cedilhas invertidas, aspira o cheiro das açucenas e das ervas embriagadas pela umidade
Enfim, mesmo de calças compridas e o cenho franzido e grave do adulto, carrega no ventre da memória nunca parido, o menino de Martins, desembestado nas abas da serra em direção ao sítio da tia Mariquinha. Mesmo que adote Portugal, Oropa, França e Bahia, é Martins que é embalada na mais alva e mais bem trançada rede armada no alpendre do seu afeto.
DEPOIMENTOS
Exercia o cargo de Secretário da Segurança Pública, nos idos de 1987, quando um agente de polícia, supostamente envolvido com o tráfico e consumo de drogas e respondendo a inquérito administrativo, entrou armado com metralhadora no prédio da Secretaria, submeteu um dos meus seguranças e ameaçou avançar sobre o meu gabinete.
O fato foi objeto de representação apresentada ao Tribunal de Justiça pelo então Procurador Geral da Justiça Edson Lucena, e distribuído a Manoel Onofre para relataório.
Certo dia, recebo uma ligação telefônica do meu amigo desembargador-relator.
Fez uma rápida introdução em que se confessava meu amigo e protestava pela fidelidade à amizade e foi direto ao assunto:
“Não aceitei a representação porque não está bem caracterizado o tipo (tentativa de homicídio). Infelizmente, tenho de decidir em conformidade com a lei, por mais que me tenha causado indignação o fato delituoso”.
É assim, o meu colega – não transige em questões de princípios.
De outra feita, apreciando um dos meus livros, disse que tinha boa qualidade literária, abro aspas “mas não era uma obra prima”. No prefácio da “Quinta dos Pirilampos” (ainda inédito) cita Rachel de Queiroz para concordar que “todo prefácio é uma excrescência”.
Fomos, ambos, candidatos a vice-presidente do Diretório Acadêmico Amaro Cavalcanti, da Faculdade de Direito. Ele, na chapa de Sílvio Procópio; eu, na de Jansen Leiros.
Jansen perdeu, mas eu fui eleito com o candidato a presidente adversário, Silvio Procópio.
Comentário de Onofre sobre a minha performance e singularíssima eleição: “Não é tanto que ele seja bom de urna, eu é que sou péssimo”.
É assim, espontâneo e verdadeiro esse querido amigo. Íntegro. Sólido. Autêntico. Coerente. Leal. Honesto. Poderia alguém aspirar mais? Tenho muito orgulho em tê-lo como amigo e colega.
Pensei até mesmo que todos os seus amigos poderiam incluir como referência curricular de louvor, dentre os títulos e honrarias que possuisse, a máxima chancela, uma espécie de comenda que predispusesse o agraciado à credibilidade pública: “Amigo de Manuel Onofre Júnior”. O título seria como um salvo conduto, um passaporte de tanta idoneidade que valesse até mesmo na portaria do céu, com a aquiescência de São Pedro.
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Pedro Simões Neto – Advogado. Professor de Direito aposentado. Escritor. “Amigo de Manoel Onofre Júnior”
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