Texto do Prof. Márcio de Lima Dantas
Carlos Gomes: um naïf registra e exulta uma pintura lúdica
O homem benigno faz bem à sua própria alma, mas o cruel perturba a sua própria carne. Provérbios, 11, 17 1. Carlos Gomes (Natal, 10.09.1939) é professor aposentado do curso de Direito da UFRN, sendo professor emérito. Após a perda da esposa, para se evadir da saudade e da solidão, bem como de um trabalho de luto comprido demais, que se instalara no seu espírito, começa a pintar. Consabido é que o tempo do nojo ou do luto tem uma expectativa de duração, não há consenso, mas quando passa mais de um tempo de se erguer e opta por prosseguir pela vida, sujeita a outras atribulações, instala-se uma quietude interior, porém domada pelos barbantes da razão, pela sabedoria, pela conversa com outros que passaram pela mesma situação, assim como perdoar a pessoa querida que se foi, mas também se perdoar com relação a ela (foi melhor assim? estava sofrendo em demasia? O lídimo amor libera o enfermo para que descanse na eternidade).
Creio que foi esse fenômeno que o fez se interessar pela pintura. É perceptível um elemento narrativo nas telas, fazendo parte do que houvera como cotidiano ou buscando, nos ícones da Igreja Católica, guarida para uma alma apunhalada pela vida, chegando sem nenhum aguardo. A vida é traiçoeira. Tânatos, a morte, parece insaciável na sua ânsia de ceifar a seara humana. A morte é autossuficiente, não precisa de trabalhadores para a sega do humano, fazendo valer seu baralho de quem é o próximo a partir para onde não sabemos onde (provavelmente para lugar nenhum, pois ergue sua morada nos corações de quem amava a pessoa que se foi). Carlos Gomes chegou a lançar um livro sobre sua experiência de vida: Eu, pintor? Durante o lançamento do livro, houve uma grande exposição individual no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
Seu estilo caracteriza-se como naïf ou ingênuo. Sucede que ocorre uma diferença entre ele e seus pares de tradição. Completamente autodidata, seu desenho se inscreve primitivo, no sentido da não preocupação com o desenho acadêmico ou com o que combina ou não na paleta de cores. É uma pintura liberta dos paradigmas perpetrados pela tradição.
2. Remete mesmo à escola a que se filia, a naïf. Esse estilo de pintura sempre seguiu em paralelo às chamadas Belas Artes, caracterizando-se por refratar os paradigmas dos estilos históricos chantados pelo Renascimento. Consolidou-se somente no início do século XX, com a aceitação de Henry Rousseau, revelando-se a admiração por sua obra, carimbada de legitimidade por pintores das vanguardas, sendo estes considerados dignos de participar dos salões que eram muito comuns na época. Podemos arrolar um dos grandes pintores desses tempos: Gauguin foi um dos primeiros a reconhecer Henry Rosseau como legítimo, em nada diferente dos demais, com seus títulos da plêiade das Belas Artes. Ele é o mito fundante que fez reconhecer o naÏf e tornar esse estilo com o mesmo status dos conhecidos na época.
Por exercer uma pintura que não manuseava os cânones da tradição, com vários estilos históricos, — consoante o Ar do tempo —, até as vanguardas, houve recusa do público e da crítica. Causou estranheza misturar esse artista com os dos salões, que estava mais para o primitivo (Faço saber que todo bom livro de História da Arte registra o papel de Henry Rousseau e sua incorporação no seio das artes como compreendemos hoje. O naïf tem seu lugar e seu valor).
Talvez a principal caraterística da obra de Carlos Gomes seja um elemento que faz reconhecer uma tela como naïf: a ausência de perspectiva. Existe tão somente comprimento e largura. Quase todos seguem essa regra geral.
Com efeito, em Carlos Gomes, é possível contemplar uma espécie de “grau zero da perspectiva”. Mesmo os naïfs mais “raiz”, digamos assim, resguardam algum resquício de profundidade, que se soma ao comprimento e à largura. Vou dizer o que se segue apenas para efeito didático: talvez, como cânone obrigatório demandado pela religião, a representação nos túmulos dos egípcios, pintando as classes dominantes, o cotidiano e as guerras, não apresentava a perspectiva de jeito qualidade, mesmo por que a geometria, como reconhecemos hoje, ainda não tinha aparecido nos desenhos das artes até o Renascimento (apareceu nos primórdios do século XV, fruto de pesquisas de alguns pintores e matemáticos).
3. Uma grande parte do que produziu caracteriza-se como arte sacra, haja vista a quantidade de retratos de santos ou mesmo de igrejas, ressaltando a beleza da arquitetura, tais como: Matriz de N. Sra. de Santana, Igreja de N. Sra. do Rosário e Matriz de Pau dos Ferros. Com relação à retratação de santos, podemos observar: N. Sra. das Graças, N. Sra. do Líbano, São Pedro, São João, Petrus (Pedro pescador), São João com um cordeiro, três telas retratando São Francisco. Há outra retratando dois jesuítas, ambos estão serenos, sem a pérfida malícia inerente a alguns humanos. Há uma aura de quietude interior; parece que buscam apresentar-se e não converter alguém. A simplicidade dos dois exulta uma ingenuidade sem afetações nem artifícios, buscando cambiar com os semelhantes a beleza da vida e seus momentos nos quais a alma apascentada queda-se em um torpor de ausência de atribulações interiores contra si mesma (isso é mais comum do que se pensa: a autossabotagem).
A maneira como retratou esses diversos santos recusa o hieratismo na figuração dos santos e seus respectivos atributos. Pelo contrário, há uma contemplação plácida no olhar e na posição em que se encontra. É suficiente comprovar essa assertiva nos olhos e no vinco gracioso da boca. Podemos observar os retratos de São Francisco para perceber esse semblante genuíno, que a nada nem a ninguém ameaça, apenas se compraz, apenas parece buscar como funciona a essência que o cerca.
Como podemos constatar, ele retrata uma Igreja Católica não dotada de punição, nem de tornar a noção de pecado como um dos principais dogmas, talvez seja o que mais busca enfatizar entre os ritos e obrigações, opondo-se a um Deus implacável, que busca e vigia o seu rebanho. Há todo um cabedal de intercorrências a receber o devido castigo, a punição e a paga por não ter se comportado de determinada maneira na enciclopédia dos pecados. Curioso que isso não vale para a classes dominantes. Considerando tudo o que há de gente, na verdade, isso não passa de Ideologia, quer dizer, a etiqueta social com seus maneirismos e afetações presentes no comportamento das classes dominantes.
A Ideologia faz crer que o ser e o estar dos dominantes, a maneira como propalam seus valores e supostamente se comportam, em um manual abstrato, apenas deixa implícito como deve ser e, caso se rompa, segue a punição. Bem claro que é um monte de filigranas, ou seja, o que foi historicamente construído faz crer que isso tudo é natural. O problema é que a maioria da população acredita nessa falácia. Contudo, um país cheio de escândalos traz uma Brasília com fôlego enorme para toda uma sorte de pilhagem ao patrimônio público. Há também, como última moda, o baticum dos neopentecostais, migrados da Igreja Católica e fazendo uma espécie de ensaio de escola de samba. Quem viver verá (sempre pode ser ainda pior).
4. Com relação a Jesus Cristo, pontuou algumas das estações da Via Dolorosa bem como eventos da sua vida: Assunção; Ressurreição; Retirado da cruz, nos braços de sua mãe, Maria; Nascimento em Belém com os três Reis Magos; também retratou a trindade no céu (Jesus, Pomba do Espírito Santo, Deus e Maria ajoelhada embaixo).
Tudo o que vem a ser sacro na pintura de Carlos Gosmes há de se pensar muito mais em desenhos e pinturas, cores, nomes, evocação de um mito com mais de dois mil anos. Trata-se de arte, nunca de religiosidade, assim como sua forma de apresentar tais lendas, quase sempre sem afetação nem exagero. O que o mito necessita para se fazer assumir e perpetuar seus arquétipos é ser executado, ritualizado e repetido, por exemplo, a liturgia (missa) da Igreja Católica. É sempre a mesma coisa, e é assim como o mito opera, para escorrer em direção à História, e não o contrário, como se convencionou acontecer. Esse parece ser o vero cortejo de signos, símbolos, imagens: a História encontrando personagens para serem encenados seus autos e dramas no palco da vida e das comunidades. É possível constatar histórias subliminares nos acontecimentos maiores da polis; os papéis são distribuídos anonimamente e o palco da vida trata de encenar histórias do arco da velha.
5. Consultando um dicionário, encontrei uma bela definição da palavra lúdico: “que faz alguma coisa simplesmente pelo prazer de a fazer”. Não precisa ter noção do que é pintura e suas técnicas, suficiente permanecer algum tempo diante da tela e aguardar uma energia que assoma vinda de dentro da gente. Há de se observar as partes: textura da tinta, paleta de cores, o referente que está retratado. Depois, junte tudo e organize em uma peça só, para que o sentido não somente apareça mas também possa ser tateado o seu espírito, a fim de observar que sentimento ou emoção foram libertos das nossas entranhas.
Quero dizer com tudo isso, trazendo para a pintura de Carlos Gomes, que suas pinturas reverberam esse prazer de ter elaborado suas pinturas. É inegável que o conjunto da sua obra não apenas ocupou o tempo com algo construtivo mas também aplacou certas feridas que nunca saram. É até bom dizer que algumas pessoas não colocam fármaco algum para que cicatrize, optam por conduzir até seu fim o amor que depositavam na pessoa que se foi. Mas cada um é um.
Para encerrar este escrito, podemos, à guisa de análise e interpretação, nos deter sobre as telas que sugerem sua vida biográfica e sentimental. Há uma tela muito simples, uma casa no campo, que era conhecida como o casarão da localidade Estevão, em Açu. Isolada de tudo e de todos, amanha uma quietude interior. Há outra tela com o lugar onde funcionava a antiga faculdade de Direito, provavelmente onde se formou.
Mas a mais bonita e rica dos melhores sentimentos é uma mulher saindo de uma casa para ir em direção à casa da frente, que havia comprado. É a esposa do nosso pintor, preparando-se para a inauguração de uma nova casa, quer dizer, um contentamento interior pleno de alvíssaras. A casa estava contraposta, com seu jardim, aos edifícios e seus apartamentos, feitos como uma colmeia, na frieza e indiferença, sem socialidade, sem vizinhos para conversar. A casa, quase sempre, tem uma narrativa a contar: nos móveis, quadros nas paredes dos ancestrais, no pomar e no jardim. Outrossim, a casa resguarda a sombra de um morto ou mais que um. Quem já viu velório em apartamento? A casa é longeva, é uma herdade ainda habitada pelo seu patriarca, rodeada por casas pertencentes aos filhos, na Rua Coronel João Gomes, 555.
O texto do Professor Márcio de Lima Dantas retrata, como uma pintura (literalmente), a bela e maravilhosa arte do Dr. Carlos Gomes!
ResponderExcluirParabéns ao Prof. Márcio de Lima Dantas por esse texto que vai além de uma análise artística, mas uma síntese biográfica fiel às virtudes e sentimentos que inspiram a produção artística do Dr. Carlos Gomes.
ResponderExcluirÀ essa análise tão sensível e fiel da obra do autor nos cabe louvar o seu amor e apreço pela literatura e artes plásticas como símbolos da sua obra intelectual.