sábado, 15 de abril de 2023

 Galo-das-Trevas 

Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN 

Em junho de 1983, deixei a direção do Centro de Ciências da Saúde da UFRN, após quatro anos na gestão dessa importante área. Ao me despedir, fui alvo de uma homenagem sincera e emocionante por parte de grande parcela de quantos fizeram parte daquela missão acadêmica, e, na ocasião, recebi um presente de um livro, no qual constavam cerca de 70 assinaturas. Tratava-se do livro Galo-das-Trevas, do médico e escritor Pedro Nava. Já conhecia a fama de Nava, mas ainda não tinha lido as suas obras memorialísticas. Esse presente que recebi dos diletos amigos do CCS teve o condão de me induzir à leitura do notável Pedro Nava, e conhecer um dos melhores autores em língua portuguesa. O livro Galo-das-Trevas (1981) abrange, na primeira parte, as reminiscências de Pedro Nava sobre o Rio de Janeiro, a cidade na qual por mais tempo viveu e a que mais amou. O autor também faz bela descrição do bairro da Glória, bem como do local onde residiu por dezenas de anos: Rua da Glória, 190, apartamento 702. Eis alguns trechos dessas páginas iniciais do livro: “Esse chafariz é como brasão da rua da Glória e mostra sua antiguidade colonial. Servia para aguada das embarcações quando a orla marítima era no nosso logradouro”. Mais adiante, fala da sua morada: “Aqui passei quase metade da minha vida. Aqui envelheci. Aqui caminho no escuro, como um cego sabendo onde estão as quinas hostis das paredes e os pontos contundentes dos móveis.” E continua a descrever cada rua, prédio antigo – os poucos que restaram –, inclusive os guardados na memória, cada mobília, retratos de ancestrais, lembranças do passado, o relógio “que bate as horas para minha gente há mais de cem anos”. Na segunda parte do livro, Pedro Nava deu ênfase ao seu alter ego, personagem que ele criou e chamou de José Egon Barros da Cunha, seu primo, amigo, suposto colega de turma no Colégio Pedro Segundo e na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Na figura de Egon, Nava relata sua experiência médica no começo da carreira, em Juiz de Fora, nominada de Desterro, e, posteriormente, em Belo Horizonte. A figura do alter ego confere à narrativa o tom de ficção, o que só fez valorizar a memorialística do famoso escritor. Em outro livro, Nava relata um amor fortuito com uma bela mulher chamada Biluca, de um bordel de Belo Horizonte, rua Niquelina, no seu tempo de aluno do curso médico, 1921 a 1926. Biluca tinha “olhos muitos pretos, cabelos dum louro quente, admiravelmente torneada, verdadeiro milagre anatômico”. Voltemos ao livro Galo-das- Trevas, o autor, médico da Santa Casa de BH, em 1929, vai examinar uma paciente grave, fase final de tuberculose pulmonar e, surpreso, exclama: “Biluca ...” E a paciente: “Eu num queria que tu me visse assim”. “Agora eu já vi meu bem. Cê tá linda, como sempre”. Com grande emoção, seguiu o exame clínico, quando, então, a freira da sala falou: “Qué? isso gente! A doente e o médico chorando!”


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