quarta-feira, 14 de julho de 2021

 

 



Leitura teológica do Auto da Compadecida
 
Padre João Medeiros Filho

Entende-se por auto uma composição teatral, que remonta à Idade Média. Transita do profano ao sagrado, geralmente de cunho moralizante. 

Na língua portuguesa, o seu representante mais renomado é Gil Vicente, cuja obra situa-se entre os séculos XV e XVI. 

No Brasil, o Padre Anchieta introduziu os Autos Indianistas, considerados precursores do teatro brasileiro. 

Na década de 1950, o monge beneditino e acadêmico Dom Marcos Barbosa procurou divulgar este tipo de dramaturgia, com destaque em “A noite será como o dia – autos de Natal”. 

Em 1955, foi publicado “Morte e Vida Severina – auto de Natal pernambucano”, de João Cabral de Melo Neto.

 No mesmo ano, Ariano Suassuna lançou “O Auto da Compadecida”. Segundo os mais próximos, o escritor paraibano, por influência de sua esposa Zélia, abraçou o catolicismo, nutrindo especial devoção à Virgem Maria.

Os personagens da Compadecida são pessoas de moral e ética questionáveis. Verificam-se posturas luxuriosas, avarentas, violentas, soberbas, gulosas, mentirosas e preguiçosas. Trata-se de comportamentos compatíveis com os pecados capitais do cristianismo. 

Não nos cabe analisar a crítica social do autor. 

Nossa pretensão é tão somente abordar aspectos religiosos. 

A peça teatral culmina com o veredicto, após a morte dos participantes do drama. Reveste-se de elementos da escatologia cristã. 

Os envolvidos encontram-se no Além, recepcionados por Satanás, desejoso de enviá-los para “os quintos dos infernos”. 

Temeroso de ir para o Lugar de Castigo, João Grilo, representando os demais, apela para Cristo, que atua como juiz nesse pós-morte. O tribunal foi instaurado. 

O Demônio apresenta seus argumentos. Emanuel (Jesus) ouve as considerações. João Grilo recorre a Nossa Senhora, advogada de defesa dos indiciados.

Tudo acontece em sintonia com o imaginário religioso e o devocionário de nossa gente, formados a partir de matrizes catequéticas da colonização cristã-católica europeia. 

O Diabo acusa. Maria Santíssima vem em socorro dos culpados. Jesus, representante de Deus Pai, é o responsável pela sentença. Conforme a narrativa, nenhum dos personagens possuía um passado limpo e incontestável. 

Do relato, infere-se que, no juízo final, todos serão transparentes quanto às suas condutas. Estas deveriam ter contribuído para as pessoas serem mais honestas e justas em relação ao próximo. Ariano revela no texto a fragilidade humana, que sensibiliza a Virgem Maria. Esta é a Compadecida, invocada como “Refúgio dos Pecadores” e “Consoladora dos Aflitos”, títulos marianos da Ladainha. 

A obra literária descreve o cumprimento do julgamento definitivo, inserido na lei da própria vida. 

A maldade e o pecado são marcas de nosso destino sobre a terra. Isto é um fato – explicável pela religião – que iguala todos os humanos num rebanho de pecadores. 

Verifica-se neste aspecto a face da doutrina cristã do pecado original.

Ninguém escapa da morte, mas a misericórdia infinita de Deus resgata o destino de cada um na outra vida. Todos carregam seus erros e serão julgados pelo que fizeram de suas existências. 

A morte é o umbral pelo qual ter-se-á uma consciência mais nítida do que se fez, enquanto peregrino neste mundo. A perspectiva literária desenvolvida é suficiente para afirmar que a obra pode ser lida sob um enfoque teológico. 

No desfecho do julgamento, o autor esboça traços de Mariologia, especialmente de Nossa Senhora Medianeira. Após a intercessão da Mãe Celestial em favor dos acusados, Jesus os libera da condenação infernal. Para Ariano Suassuna “Maria Santíssima é a esperança dos desvalidos e a revelação da ternura divina”.

Por fim, Jesus trava um breve diálogo com sua Mãe: “Se você continuar intercedendo desse jeito por todos, o inferno vai terminar virando uma repartição pública: existe, mas não funciona”. Nesse ponto, Ariano aproxima-se do teólogo jesuíta Teilhard de Chardin, em “Le Milieu Divin”: “O inferno é uma verdade teológica, mas não creio que seja muito habitado, pois a misericórdia divina é infinita”. 

O teatrólogo revela um Cristo indulgente, compassivo e sensível. 

Ele se enternece diante dos sofrimentos e dores dos irmãos porque um dia experimentou a maldade e a fraqueza humanas, que condicionam a existência terrena. 

O saudoso Oswaldo Lamartine, certa feita, confessou-nos: “Vigário, se eu tivesse o amor e a fé de Ariano pela Compadecida, teria muito mais paz interior”.

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