Desnego!
Pouquíssima gente conhece um tal François-Marie Arouet (1694-1778). Mas muitos já ouviram falar de Voltaire. Eles são a mesma pessoa. O historiador e filósofo iluminista que impulsionou as Revoluções Francesa e Americana. O aristocrata liberal, conselheiro de reis, mas também preso e exilado de seu país. O polemista refinado que atacou o Cristianismo (em especial a Igreja Católica) e seus dogmas, que bradou contra a intolerância reinante e que defendeu a separação entre a Igreja e o Estado e a liberdade de crença e de expressão. O homem a quem foi atribuída a frase: “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. O escritor prolífico, mestre em todos os estilos: teatro, poesia, romances, cartas, panfletos e ensaios variados. Muitos títulos nos vêm à cabeça, como os ensaios “Lettres philosophiques” (1734), “Dictionnaire philosophique” (1752) e “Traité sur la tolérance” (1763), os romances/contos filosóficos “Micromégas” (1752), “Zadig, ou La Destinée” (1748) e “Candide, ou l'Optimisme” (1759) e as peças “Mahomet” (1741) e “Tancrède” (1760). Foi best-seller internacional. Viveu na Suíça, na minúscula Ferney. Já idoso, voltou a Paris. Morreu em glória e se acha sepultado no Panteão dos franceses.
Da imensa obra de Voltaire, um título, em especial, hoje me interessa: “Cândido, ou O Otimismo”. Trata-se da saga de um jovem, o tal Cândido, que, em princípio, vive protegido dos males do mundo num castelo idílico. Cândido é doutrinado pelo seu professor Pangloss, por sua vez um seguidor do “otimismo” do filósofo e polímata Leibniz (1646-1716). “O nosso universo é o melhor dos mundos possíveis que Deus poderia ter criado”, dizia o grande pensador alemão. Tudo muda quando Cândido é descoberto em “enxerimentos” com a filha do senhor da casa, a amada Cunégonde. E começa sua jornada errática pelos sofrimentos da terra redonda. Naufrágios, terremotos (o de Lisboa, de 1755), guerras (a dos 7 anos), fanatismo e escravidão, correndo mundo afora, indo bater até no nosso Paraguai. Não vou contar o final, claro. Mas registro que, embora em tom picaresco, “Cândido” é aquilo que os alemães consagraram como romance de formação, o “Bildungsroman”. É a obra-prima de Voltaire, diz-se.
Como lembra Jean-Claude Berton, em “50 romans clés de la littérature française” (Hatier, 1993), “Cândido” é uma viagem filosófica através de uma porção de temas: o problema do mal, a injustiça, a piedade, o papel da religião, a moralidade em si. Mas o que se destaca nessa obra, a meu ver, é a ironia. Voltaire ridiculariza quase tudo: os governos e os seus exércitos, a religião e os seus teólogos, filosofias e os seus filósofos, até o grande Leibniz. Afinal, “tudo vai bem, porque tudo poderia ser pior”.
“Cândido” desgostou muitos. Como registram Danièle Nony e Alain André, em “Littérature française: histoire et anthologie” (Hatier, 1987), “editada em Genebra sob um nome falso, a obra foi distribuída clandestinamente até ser descoberta, condenada e queimada”. A ironia é um troço danado. Destrói mitos. Diz muitas verdades. E, como li outro dia, não devemos achar que as pessoas vão gostar da gente pelas nossas opiniões, quando mais mordazes.
Hoje, vivemos algo que tangencia o otimismo de “Cândido”. Só que mais perigoso. É o “negacionismo”. Que se dá por medo ou por cretinice mesmo. Nega-se a pandemia da Covid-19. Nega-se a existência do vírus. Nega-se sua transmissão por contato entre pessoas. Negam-se as vacinas. Negam-se as máscaras. Negam-se os números. Nega-se a Ciência. Nega-se até a morte.
Bom, embora não seja um Voltaire, eu faço minha parte. Todas as semanas, todos os dias, todas as horas, séria ou ironicamente, eu desnego!
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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