sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

 

Minhas Cartas de Cotovelo – verão de 2021-52

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

 

    Esta é a derradeira Carta de Cotovelo do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2021. Nada a pedir. Tudo a agradecer.

    A solidão é amiga da velhice, ampliada pela saudade da eterna namorada, que partiu para perto do Criador.

    Tudo que faço, tudo o que crio e tudo o que vivo é para honrar a memória de THEREZINHA ROSSO GOMES, a quem dediquei 71 anos de convivência.

    A leitura tem trazido pronunciamento de muitos, inclusive de imortais, de que devemos viver tantos amores quantos sejam precisos. Discordo, quando se ama de verdade não há necessidade de busca de outros relacionamentos.

    Não existe verdade absoluta para esses assuntos. Cada pessoa tem o seu sentimento, constrói o seu Castelo. O meu não desmoronou. Continua firme como foi construído. Resta a sua conservação até o fim dos tempos.

    A ausência, que me faz sofrer, não merece consideração no campo da racionalidade, pois tenho a certeza que ela está em boa companhia. Mas que dói, não posso desconhecer. Aí somente a solidão do meu quarto, da minha vida, agora traduzida nas telas que me foram inspiradas pelos grandes momentos da vida - uns alegres, outros nem tanto.

    Vou voltar para o meu exílio consentido de Cotovelo. Lá sou amigo da rainha Natureza, estou mais perto de Deus, convivendo da simplicidade do lugar e recordando os muitos anos que desfrutei passeando com ela nas areias brancas daquela maravilhosa praia, momentos lúdicos de um verdadeiro amor que o tempo não ousou arrefecer. Fomos amantes até o último verão de 2018/2019.

    O físico se foi, mas o emocional ficou para nunca sair, apesar do sofrimento da ausência. Lamento não ser poeta para cantar em verso e prosa a figura da minha doce amada.

    Senhor, não procuro a razão de que me tirastes a minha musa, certamente cumpriu a sua missão nesta dimensão da existência e está recebendo uma missão na altitude estelar.

    Desculpem meus amigos leitores, hoje é dia para cultuar esperanças para o ano que começará logo mais e não para assistir a proclamação do martírio de um amante solitário. 

    Tenham todos um feliz Ano Novo e recebam essa minha lamúria como exemplo de que devem sempre olhar para quem com vocês repartem a vida e a felicidade.

    Termino com o grande Fernando Pessoa, afirmando que, em mim, a dor ainda dói:

Saudade

 

·         LUZES QUE SE APAGAM

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Apagaram-se as luzes dos natais de antigamente? A avenida Rio Branco era um corredor resplandecente do Baldo à Ribeira. Abraços, cantos e risos povoavam as calçadas: Boas Festas! Feliz Ano Novo! Era um planeta diferente. Foi pensando e revivendo os velhos natais que ressurgiu na memória o antigo comércio da avenida Rio Branco com suas lojas, magazines, armazéns que constituíam a força do capital da classe produtora potiguar. 

Era o chamado comerciante da cidade, inscrito na Associação Comercial do Rio Grande do Norte, movido a Banco do Brasil de Otávio Ribeiro Dantas, lá da avenida Duque de Caxias, na Ribeira. Da calçada do Cinema Rex, onde Luís de Barros tocava a cigarra mandando começar o filme, contemplei, olhar acima, olhar abaixo, o mundo desaparecido de estabelecimentos comerciais fundados por natalenses e hoje substituídos por lojas de Pernambuco, Paraíba e Ceará.

De frente, onde me achava, me lembrei da Casa Costa que servia o mais saboroso sorvete; Omar Medeiros e Cia., Lojas Setas; os “estrangeiros”: o Novo Continente, CêBarros, Quatro e Quatrocentos e Lojas Paulistas; J. Resende e a Casa Régio dominavam o mercado de eletrodomésticos; Casa Hollywood e Casa Garcia além do Cine-Foto Jaecy que depois foi para a João Pessoa; a resistente e desfraldada Livraria Universitária, vizinhas a Casa Duas Américas e a Formosa Syria; a Casa Tic-Tac e a Casa Rubi sem esquecer a Nova Paris; quase de frente a Casa Rio que ainda sobrevive (Rio Center), em outros locais da cidade, pluralizada e redimensionada; Ótica Brasil, a Farmácia Barbosa e juntinho o bar Granada; a casa Letière, o Armazém Natal e antes do Banco do Brasil, a lembrança mais dolorosa do velho e trágico mercado público da cidade do Natal. Tudo sumiu. As vitrines desse tempo se apagaram e com elas um grupo de comerciantes que desapareceram, permanecendo, apenas, uma foto intacta suspensa no ar e as imagens dos natais de quarenta e cinquenta anos passados. 

Ao contemplar a Rio Branco sem luz e sem alma da festa natalina, resolvi homenageá-los. Natal não pode esquecer jamais os pastores da noite que fizeram feliz o Natal de tanta gente. Chegam-me alguns que a memória reteve: Fuad Salha, Zé Garcia, Chafic Abou Chacra, Reginaldo Teófilo, Habib Challita, Zé Resende, Walter Pereira, Quim-quim da Farmácia Barbosa, Nagib Assad Salha, seu José e Abess da Formosa Syria, Raimundo Chaves, Heider Mesquita, Jaecy Emerenciano Galvão e Nemésio Moquecho, Quincola (Scope) Luís de Barros, Nivaldo Feitoza Bonifácio, Alcides Araújo e uma lembrança terna da Rádio Trairi do major Theodorico Bezerra que funcionava no alto do Novo Continente. Relembro os locutores: Gutemberg Marinho, Edmilson Andrade e Vanildo Nunes, em nome dos quais homenageio a todos.

A cidade de Natal deve um preito de reconhecimento a todos aqueles que diretamente, através do seu ofício, se conscientizaram do seu papel, se fortaleceram e daí surgiram a Federação do Comércio, o Sindicato do Comércio Varejista e o próprio CDL. Ninguém pode contestar o pioneirismo dessas conquistas aos comerciantes da avenida Rio Branco. É preciso reacender as luzes dessa avenida para a história passar.

No Grande Ponto, o olhar triste e reminiscente. A procissão de relembranças das melhores figuras de Natal, espiritualizadas no eterno bate-papo, dia e noite, como se, para mim, ali, naquele instante, tudo tivesse se reencarnado. Olhei para o chão sagrado daqueles vultos e deu-me náuseas as calçadas sujas, encardidas pela desfiguração e os pés da modernidade. Mataram o Grande Ponto pletórico e no âmbito do seu quadrilátero, rasgaram a sua história em pedaços e foram transformados os seus habitantes. Daquelas calçadas, com sol matinal batido e quente desse verão sobe as narinas um odor de sebo bovino e inhaca pestilencial. Será que o IPTU não poderia lavar aquelas calçadas onde tanta gente boa pisou antigamente? Djalma Maranhão, Alvamar Furtado, Luís Tavares, José Augusto Varela, Antonio Soares Filho, Luiz Carlos Guimarães, Newton Navarro, Veríssimo de Melo, Ticiano Duarte, Américo de Oliveira Costa, Zé Areia, Gilberto Avelino e tantos outros mortos dignos de lavarmos os pés, sem precisar nem falar nos vivos?

 

(*) Escritor

domingo, 26 de dezembro de 2021

 


Minhas Cartas de Cotovelo – verão de 2021-51

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

    Em pleno clima natalino, adquiri uma bactéria que me levou ao hospital, com medicação rigorosa e alimentação ainda mais seletiva.

    Claro que perdi inteiramente a vontade de participar da Festa de Recepção ao Salvador através do tradicional jantar das famílias cristãs, pois vivi a tortura de comer migalhas ao redor de pratos primorosos confeccionados pelos familiares.

    Nada disso, porém, foi capaz de tirar a minha convicção cristã da importância da renovação da chegada do Redentor e procurei abrigo em duas missas – uma pomposa em rituais celebrada pelo Papa Francisco, com coros e cantores da melhor categoria; a outra na singela capela de Santa Luzia, do Distrito de Pium, em formação humilde, mas com a mesma mensagem de fé e esperança com a chegada do menino Jesus.

    Meditei e concluí que a fé é o sentimento verdadeiro para a aceitação do fenômeno do Renascimento e dos augúrios positivos para o ano que se aproxima, após um longo período de pandemia e de separação forçada dos parentes e dos amigos impossibilitando-os do abraço fraterno tão importante para a satisfação do nosso espírito.

Mesmo me ausentado circunstancialmente da minha pasárgada de Cotovelo, encontro forças para desejar a todos os integrantes das comunidades Pium-Cotovelo, os votos de um Natal de Paz e um esperançoso ano de 2022, sem mais pandemia e com a recuperação econômica das Instituições  e Entidades, públicas e privadas que dão suporte às ações sociais em favor dos menos favorecidos pela sorte.

 Aguardo o sinal dos médicos para retornar à minha vida comum na Comunidade que escolhi para viver o tempo que me resta nesta dimensão da existência.

Menino Jesus, olhai por nós. Amém.

 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

 

 


A presença do Filho de Deus

Padre João Medeiros Filho

Regalos, mimos e lembrancinhas foram comprados, adornando as árvores natalinas. Serão abertos na noite santa. As crianças tornam-se ansiosas e felizes. Pais e avós ficam emocionados, ao ver a alegria ingênua de seus filhos e netos. Talvez, lembrem-se de sua infância e imaginam, como o poeta Guilhermino César: “Quem me dera voltar a ser criança outra vez!” Procura-se ornamentar a cidade, mesmo persistindo a pandemia. Brilham luzes coloridas. Parecem dias de encantamento, envolvendo todos. Afloram sentimentos positivos naqueles que creem e até nos incrédulos. Por alguns dias, a bondade e a solidariedade pairam no ar. Trocam-se mensagens de paz e felicidade, braços abertos para o encontro. Serve-se a ceia de natal com fartura de alimentos, nessa noite. Alguns ignoram seus reais motivos e simbolismo.

Difícil encontrar quem não goste do Natal, um período marcado de esperança e alegria. Mas, passa rápido. O que se celebra mesmo nesse dia? Parece relegar-se a um segundo plano o verdadeiro sentido do nascimento de Jesus, o qual deu origem ao cristianismo. Ocorreu há mais de dois mil anos, na Judéia, quando o Império Romano dominava aqueles povos. E, por ser quem Ele é, não se festeja apenas um aniversário, mas comemora-se o evento mais importante da história da humanidade. Na Criança, nascida da Virgem Maria, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio à terra. “O Verbo divino se fez carne e habitou entre nós.” (Jo 1, 14). O Eterno entra no tempo. O Infinito faz-se finito. O Todo-Poderoso quis ser pequeno e frágil. Nele contemplamos o rosto humano de Deus e a face divina do homem. Cristo é solidário. Assume nossa pequenez para nos comunicar uma dignidade sublime. Chama-se “Emmanuel”: Deus conosco, Salvador e Redentor da humanidade. Eis o que os cristãos afirmam e acreditam a respeito Dele. Assim, devemos festejar a sua vinda!

Talvez alguém diga: impossível, inconcebível um Deus se tornar humano, sem deixar de ser divino! Isso não faz o menor sentido, dizem alguns! A própria Mãe de Jesus quis saber como seria tal realidade. “Como se dará isto”? (Lc 1, 34) E muitos, depois dela, duvidaram e continuam a dizer: “Não é possível; não pode ser!” É preciso entender as palavras do anjo: “É obra divina, não do homem. Não tenhas medo, Maria. Para Deus, nada é impossível” (Lc 1, 37). A beleza do Natal convida-nos também a esquecer as divergências, sobretudo as agressões e polêmicas ideológicas, oriundas de um radicalismo reinante no Brasil hodierno. Infelizmente, as convicções político-partidárias importam mais que o bem-estar do povo. Natal é um apelo para afastar tudo aquilo que causa divisões, contendas, contradições e hipocrisias na vida social e pública. Urge encontrar Aquele que será capaz de unir, disseminar a paz, nutrir o diálogo e espírito de concórdia, advindos do Verbo encarnado. A reconciliação e o perdão serão consequências da presença de Cristo entre nós.

Vale lembrar o Livro da Sabedoria, que profetizava o nascimento de Jesus: Palavra divina e Luz infinita. A Ternura celeste quis armar a sua tenda entre nós. “Quando a noite ia ao meio do seu curso e um silêncio profundo envolvia o universo, a tua palavra doce, serena, mansa e todo-poderosa desceu do seu trono real para a terra” (Sab 18, 14- 15). O Natal comemora a clemência divina, que se inclina para o homem. O Altíssimo fez-se criança, no meio de nós, para enriquecer-nos com sua grandeza. O homem não pode chegar sozinho a Deus. Mas, não é impensável para o Onipotente aproximar-se do ser humano. Por que Ele deveria ficar atrelado a nossos limites e critérios? Não podemos impor restrições ao amor infinito de nosso Criador. Jesus encarnou-se para que pudéssemos conhecer a magnitude da graça, da misericórdia e do perdão. “Ó surpresa celestial, maravilha divina e inefável. Alvíssaras para o homem!” Assim, exclamou Santo Agostinho. Nada perde o Criador, ao unir-se à criatura, a qual ganha tudo, deixando-se envolver pelo amor surpreendente e inefável de Deus! Feliz Natal para todos e que Cristo habite no coração de cada um!

 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

 


Juristas balzaquianos
Fiquem calmos: não vou relatar confidências de advogadas e advogados de mais de 30 anos. Embora adore essas fofocas (quem não gosta?), a conversa hoje é mais séria. Sou literal, digamos. Refiro-me aos profissionais do direito na obra de Honoré de Balzac (1799-1850).
“A Comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas.
Juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances.
E juristas imaginados pelo autor. Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996), teria contado mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da Comédia. Já em “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (Editorial Jusbaires, 2015), os organizadores Antoine Garapon e Denis Salas lembram: “Ali encontramos figuras de sujeitos de direito como os herdeiros de Ursule Mirouët, o ausente em O coronel Chabert, a falência em César Birotteau. O espelho que essa obra apresenta nos remete aos esplendores dos novos status da sociedade burguesa, como às suas sombras. O romance balzaquiano desvela um mundo de interesses e de crimes. (…). É o mundo de Esplendores e Misérias das Cortesãs, que celebra a mitologia romântica dos fora da lei”. Por outro lado, Balzac muitas vezes abre “um espaço positivo para a lei”, como no procurador-geral Granville, que encarna a nobreza da profissão do direito. Balzac crê nas instituições. Para ele, o juiz é um centro da sociedade, esta cheia de contradições, é vero. E se temos o juiz Popinot de “A interdição”, “pleno de modéstia e grandeza, homem justo e humilhado”, também encontramos o “flexível Camusot”, o juiz de instrução “destinado a uma carreira brilhante”.
São personagens tiradas ou postas – depende de olharmos pelo ângulo da inspiração ou da criação – de/em fiéis “cenas da vida jurídica” (inclusive citando decisões reais de cortes francesas). Desses personagens e cenas, tomemos o caso do juiz Popinot, de “A interdição” (1839), talvez o mais “investigado” dos juristas balzaquianos. “A interdição” é um texto seminal. Um romance curto e denso, em que o autor retrata as realidades do quotidiano e do foro. Várias de suas personagens são achadas em outros romances da Comédia, como de estilo no “mundo” de Balzac. A trama gira em torno da busca da Marquesa d’Espard para interditar o seu marido, de quem vive separada há anos. Seria o Marquês um louco pródigo, que impede uma mãe de ver os filhos e desperdiça a fortuna? Ou seria a Marquesa uma mulher inescrupulosa, disposta a qualquer coisa? É para decidir isso que são encarregados o “íntegro” juiz Popinot e o “flexível” juiz Camusot. E, sem crise de consciência, digo mais nada.
Balzac teve o seu modelo de magistrado no juiz Popinot, que José Antônio Aguirre, em “Escritores y procesos: casos reales y ficcionales del proceso penal” (Ediciones Didot, 2012), poeticamente define como “a ficção de um juiz real”. O autor retratou “este magistrado como um homem de altíssimos valores, severo, equânime, fiel à sua função judicial e de uma decência inquebrantável”. Mas, embora possuidor de numerosas virtudes, o juiz Popinot tem também defeitos (quem não tem?). O principal, embora não venal, é a sua ingenuidade. E a intromissão desse defeito nas suas qualidades faz desse juiz “uma personagem real, verossímil e crível”.
É verdade que Balzac se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade, personagens e por aí vai. Mas também nos deu muito de volta. Basta lembrar a sua contribuição para a preservação de uma história contada do direito, que procuramos inutilmente nos códigos, como lembrou Henri Lévy-Bruhl em “Sociologie du Droit” (PUF, 1981). Ou para a fixação de um vocabulário da nossa ciência. E há, claro, o exemplo do juiz Popinot. Assim, acredito ser “A comédia humana” um monumento da “ficção jurídica”, sem que dois séculos de mudanças prejudiquem a relevância das suas questões de direito. E parafraseio uma advertência constante de “Balzac, romancier du droit” (direção de Nicolas Dissaux, LexisNexis, 2012): “Todo jurista deveria ler Balzac”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL