O MATUTO COMBOIEIRO E O BISTURI DO DR. RAUL FERNANDES.
Jair Eloi de Souza
Ásperos tempos, início das eras de quarenta, os rosários bentos por
Padre Cícero ainda eram adereços sacros obrigatórios, atados ao pescoço
do sertanejo para as rezas dos que professavam a fé católica. A medicina
nos grotões do Seridó era exercida pelas rezadoras de ramo e nos
limites do consumo de meizinhas ou chás caseiros.
Um velho comboieiro é acometido de “doença da cabeça”. sinusite
crônica, localizava-se na parte posterior do ouvido direito e não só na
região paranasal. Exaurido o uso da flora medicinal sertaneja, como os
chás de cabacinha, raiz de vassourinha de baixio e entrecasca de
quixabeira da caatinga, tornaram-se insuportáveis as dores, o que
reclamava um procedimento cirúrgico de médico especialista.
Tomando informação nas terras do Caicó, soubera aquele, que no
Hospital da Base de Parnamirim, havia um médico do ofício, de nome Raul
Fernandes. Matuto comboieiro, acostumado às grandes travessias no coice
da burrarada desde a adolescência, portanto estradeiro, “botou os bois
n’água” e toma os caminhos de Natal.
Viagem longa e sem recurso, não havia montaria. Perdera o pai no ano
de mil novecentos e seis, e conhecia a crueza da vida desde tenra
idade, o que lhe fez conhecedor das veredas do sertão, pois, vez por
outra, partindo da Ribeira do Rio Piranhas, tomava os caminhos do Crato
no Ceará a buscar farinha e rapadura ou do Brejo Paraibano no carrego de
peixe escalado e salpreso, o que lhe dava uma idéia da viagem que se
proponha, embora não tivesse uma similar da burra melada”, que Juvenal
Lamartine sempre utilizava no percurso de Serra Negra a Natal nos idos
tempos e de quem se lembrava e pedia informação quando exilado estava,
nas cercanias de Paris.
Assim tomou a empreitada, muringa de couro curtido, pequena provisão
de rapadura e farinha seca, para as eventualidades. No primeiro
percurso imaginava ser conhecedor, pois, tinha em mente pernoitar nos
pontos de arranchação no Seridó nascente, passando pela Serra da Rajada,
Boqueirão de Carnaúba dos Dantas e tomar rumo esquerdo em Picuí, para
alcançar Melão na grota na Serra do Cuité. Logo em seguida pelo Trairy
aportar nas terras agresteiras vizinhas ao litoral.
O rojão era cadenciado, além da moléstia da cabeça, sofria de
avançado reumatismo, saldo das idas ao Crato, além do mais, já era um
homem de idade meã, pois, nascera duas primaveras antes do alvorecer do
século vinte. Fato é... que aportou em Parnamirim, trazia no badaneco de
couro, uma carta de apresentação do Velho Marinheiro Saldanha, de quem
nas travessias das grandes secas, era seu tangerino-mor.
Ao chegar àquela pequena cidade litorânea, tomou informação da
existência desse médico, sempre precedendo de sua história e da
necessidade de fazer a cirurgia. Até que certo dia dera com o Dr. Raul
Fernandes e lhe entrega a missiva, que de logo é lida pelo operador, de
quem ouvira fazer o possível para o atendimento, não podia faltar ao
velho Marinheiro Saldanha, pois, tinha este, boas relações comerciais
com seu pai Rodolfo Fernandes.
Havia um pequeno problema, a unidade hospitalar não possuía
estrutura para internamento a contento, o que lhe foi cientificado pelo
referido médico, e não representou tal situação, obstáculo para o
sertanejo lograr êxito no seu intento de ser cirurgiado. Na quinta do
hospital, havia grandes árvores que lhe eram desconhecidas, mas com o
olhar de experiente comboieiro, quando escolhia galhas de ganchos nas
caatigueiras de era, para armar sua rede nos peadores no velho sertão,
vislumbrou dois pés de pau-ferro taludos, e foi nesse lugar que fez seu
descanso e a espera do atendimento hospitalar.
A tenda rupestre estava montada, pequeno anteparo feito de lona
surrada, que albergou durante toda a viagem sua velha tipóia de dormir.
Seus teréns compreendiam uma quenga de coloração tosca, uma quicé de
picotar o fumo de rolo, colher e uma tabaqueira, que o seu uso lhe
servia para espirrar e expulsar as mazelas dos sinos nasais. Esse era o
cênico da choça campônia do matuto Eloi de Souza, meu ancestral em
segundo grau, bem alí nas biqueiras do hospital de parnamirim, em plena
beligerância mundial.
Exímio prosador das noites sertanejas, em seu estado vesperal da
cirurgia aprazada, sempre levava quando raro entrava naquela velha casa
de saúde, uma anedota jocosa aos enfermos, daí não demorara a construção
de uma récua de admiradores, o que consolidara, quando finalmente é
cirurgiado e lhes extirpam o abcesso ósseo, pois, ganha o direito de
tecer paleio durante horas com os internados.
O procedimento cirúrgico foi um sucesso, cura repentina, pois,
embora portasse um dreno craniano, as dores desapareceram, era um baita
refrigério para quem estava desenganado, naquele longínquo grotão nos
confins do Seridó. Passaram-se sete meses, quando, um certo dia, já
livre do dreno e fechada a cavidade, peita o Dr. Raul e diz-lhe está com
saudade das terras do sertão, deixara a mulher Ana Vicência, filhos, os
velhos compadres Quinca Salvino, os primos amansadores de podros,
Ananias Gonçalves , Juvenal Barão e o gracejoso Ciço Gago, em fim os
amigos sitiantes do Piranhas.
O Médico não obstaculou sua saída do hospital, porém perguntou-lhe, e
o dinheiro para a viagem já arrumou? Respondeu o seridoense: “recebi
alguns adjutórios dos amigos que fiz nesta casa, dar para começar a
empreitada”. Insistente perguntara ainda, qual o rumo da volta? No que
respondeu o ansioso sertanejo: o rumo esta traçado, vou de trem até
Angicos, depois tomo o azimute da ribanceira do Rio Piranhas, em
chegando aí, tomo o norte contrário às águas descentes, até topar na
minha terra, esse é meu intento.
Muita ousadia para transpor os sertões do Cabují e a agresteza dos
taboleiros de Angicos. Havia muita saudade acumulada, e a desinformação
do paradeiro do velho matuto, já levava a família a acreditar na morte
deste. Chegara a hora, a “alta” estava dada, os últimos instantes em
Parnamirim foram permeados de agradecimentos ao Dr. Raul Fernandes, o
autor do milagre da cura, e despedidas dos que ficavam.
Manhã dezembrina de terça-feira, o saco estava arrumado, toma
transporte até natal, uma velha sopa improvisada e aporta na estação da
Ribeira. Coração partido, pela gratidão recebida e o banzo de está há
tantos meses fora de casa. O sibilo em forma de eco chamativo é
detonado, era a partida do velho trem, começa a travessia, não sem saber
de que a chegada à última estação, era o início de longa e penosa
caminhada em terras desconhecidas e de culturas diferentes, eis a grande
interrogação. Como enfrentar as distâncias carrascais? Flora
desconhecida, choradouros incertos, gente sofrida, quase à semelhança
dos mais pobres do seu torrão o Seridó, até chegar a sua terra natal.
A tarde já agonizava, quando chegara a Angicos. Em passos trôpegos,
alma acabronhada, procura as últimas choças da periferia do lugarejo, e
tira pequenas informações quando ao trajeto a percorrer entre Angicos e o
Piranhas-assu, mais no objetivo imediato de encontrar alguém que lhe
desse uma dormida, para no “quebrar da barra”, iniciar a travessia e
romper a distância carrascal a fim de atingir o barranco do velho
Piranhas.
Imaginava aquele que ali havia água, a batata doce plantada no
pós-chuvoso estava maturada. E sendo feito na arte de assar este
tubérculo em bafo de areia quente, não encontraria obstáculo quanto a
sua alimentação. E assim se fez, no segundo dia de viagem a pé, alcança
as ingazeiras ribeirinhas daquele vale. As canafístulas d`água em meia
deitada, balançavam-se indicando o azimute do vento do norte que
soprava, enquanto isso os regatos do alvéolo ainda marejavam em direção
ao oceano distante, entrecortados de poços rasos em cujo interior podia
ver pequenos cardumes de curimatãs, piranhas beba e preta, corrós e
piaus pardo e lavrado.
Landuazeiro na pesca de traíras nos açudes do sertão se sentia
impotente, pois, não conduzia qualquer instrumento de pesca, o que
obstaculava-o uma pescaria eventual, e poder comer algo que fazia tempo
não degustava, peixe assado também no bafo de areia quente, a exemplo do
que fazia com a batata doce. A viagem ribeirinha embora longa, foi um
refrigério, aqui, acolá dava com moradas de pequenos criadores, gente
das bandas de São Rafael velha, que lhe ofertava refeição, após terem
certeza de que não se tratava de gente remanescente do cangaço ou
delinqüente comum em travessia por aquelas paragens.
A viagem iniciava dia a dia, logo após o quebrar da barra, quando o
anfitrião tirava o leite da primeira vaca, e lhe dava ainda quente
colhido na ordenha manual. O sol escaldante permitia andar até onze
horas da manhã, quando o velho mal do reumatismo lhe atacava de forma
inclemente, era hora de arranchação ou em sombra de juazeiro ou quando, e
era comum encontrava gente já com “ar” de sertanejo. Assim, se consumia
todos os dias a peleja para chegar a sua terra. Cruzando o Município de
Jucurutu, olhando a direita, podia ver as empenas da Serra de João do
Vale, bate a velha lembrança de quando ainda moço, como tangerino ter
freqüentado aquele rincão trazendo as retiradas de Marinheiro Saldanha
para refrigério alimentar, nas grandes secas de quinze e dezenove.
Assim, aportara em Jardim, sua terra, após sete meses e alguns dias,
derrotando a caetana*, que lhe batera a porta algumas vezes. Salvo
graças às mãos divinas de Dr. Raul Fernandes.
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