quarta-feira, 29 de outubro de 2025

 


 Núbia Lafayette: o canto como necessidade 
Texto de Márcio de Lima Dantas 

Para Ridam, descoberta 

Não pertence ao momento: vive 

um mundo imemorial que passou, 

que não terá chegado ou talvez 

nem chegue nunca, pois instável. 

Henriqueta Lisboa 

A norte-rio-grandense Idenilde de Araújo Alves da Costa, nascida a 21 de janeiro de 1937, cujo nome artístico, por sugestão de Adelino Moreira, ficou sendo Núbia Lafayette, é originária do vale do Açu. Hoje, o Saco, antigo distrito de Ipanguaçu, constitui parte do município de Itajá. Atualmente, reside no Rio de Janeiro. Embora tenha seu nome vinculado ao que se chama de “música de roedeira” ou “repertório de cabaré” - hoje sintetizado, pejorativamente, por certos grupos, no “cantora de churrascaria” - atino que outros elementos entornam sua presença no palco e sua maneira de se portar em cena e de interpretar. Malgrado esses signos depreciativos orbitando em torno da cantora, não podemos olvidar o fato do seu nome estar honradamente vinculado ao de grandes nomes da cena musical do país, como um Ataulfo Alves, bem como de ter participado dos tempos áureos do rádio. 

A cantora que tornou um clássico a música Casa e comida detém, na sua compleição facial, a angulosidade e o semblante saturniano, que, via de regra, são encontrados nos que sofrem os talhes do Destino, consubstanciados que estão por inumeráveis vicissitudes e açoites das permanentes forças da vida, as quais, com seu dedo em riste, seleciona alguns para cumprir a sina dos que transubstanciam a dor em letra, melodia, enfim canto. Falo daqueles necessitados de representar, por meio de arquétipos desde sempre presentes no Imaginário, o sofrimento em algo tangível, com signos pertencentes às vizinhanças da arte com seus inumeráveis círculos concêntricos inerentes ao que o humano carrega de trágico e forças indomáveis. 

Quem duvidaria da autenticidade dessa cantora? Com certeza ela não poderia ter abraçado outro oficio, pois recebeu o chamado para confundir arte com vida e, assim, ritualizar, com suas vivências pessoais, a encenação no palco do mito do amor inexoravelmente fadado ao fracasso. 

Tal componente antropológico – o de um indivíduo destacar-se cristalizando um sistema de pensamento ou um conjunto de representações, ou apreender e dramatizar por meio de uma expressão artística, certos sentimentos ou aspectos integrantes da vida social - é de natureza tão tenaz e tangível que, mesmo em condições sobremodo adversas, chega como necessidade de se cumprir, de se fadar, haja o que houver. 

Sem dúvida, a vida em sociedade produz indivíduos, ou certos grupos, responsáveis para colocar em cena o caráter trágico da condição humana; tais sujeitos sociais detêm na carne e no espírito um não-sei-quê de pendor ou força para atrair signos fortalecedores do paradigma mítico ao qual a pessoa está “naturalmente” vinculada. Em assim sendo, o núcleo do mito funciona como espécie de energia centrípeta, exercendo atração sobre imagens capazes de fomentar uma maior voltagem semântica acerca do que representa no seio da vida social, ou seja, ao mito interessa sua eficácia e sua lógica interna, sendo sua capacidade de produzir sentido e harmonia no âmbito das micro e das macrorrelações sociais sua função primacial. 

Como dizia, aquela que consagrou Fracasso detém em suas interpretações algo puxado a amargo, porque elas sugerem uma mescla de poesia somada a um forte componente de ordem pessoal. A mulher tece no fôlego o desencanto de quem parece ter vivenciado na pele o que é de ordem ficcional, estendendo para a platéia uma fronteira imprecisa que desperta o sentimento sito entre a piedade e uma identificação plena de temores e realizando o que Aristóteles chamava de catarse . 

Aquela que o povo consagrou como “voz de veludo” tem o pejo de um it encontrado na cantora egípcia Oum Kalsoum, na grega Maria Callas, nas brasileiras Nora Ney, Elizete Cardoso, Clementina de Jesus, Elis Regina, na caboverdiana Cesária Évora, na espanhola Niña de Los Peines ou na portuguesa Amália Rodrigues. Todas elas detentoras de um não sei quê capaz de sintetizar, na sua carreira de artista, as inquietudes de uma geração ou o espírito do tempo de um dado momento histórico, e até mesmo certos traços acentuados por uma etnia. Quero falar dos artistas que infundem respeito e um certo hieratismo de quem impõe a presença por meio de um discurso corporal, de uma fala ou de uma personalidade demandadores de reverência, obrigando o expectador a remexer suas áreas atávicas, numa busca de situar o personagem numa tradição da história da arte, fazendo crer que o encenado no palco é matéria para ser levada a sério, pois é o que o humano alcança de melhor, ao simbolizar o caráter trágico da existência através da arte, transubstanciando o factual, com suas arestas, em cristais duráveis e permanentemente dotados de capacidade para resplender em qualquer espaço ou tempo, pois certas estruturas antropológicas nos acompanham, vigilantes, desde sempre. 

E se quisermos estabelecer analogias com outras tradições do canto, podemos evocar as cantoras de blues ou de fados. As trajetórias de tantas delas acabam por confundir o representado no palco com momentos de suas vidas, dificultando a separação entre o vivido e o biográfico. A imprecisão é de tal monta que acaba tudo numa espécie de encenação. A vida e suas recorrentes eventualidades funcionam como pauta, de modo que mais se vive no cenário do que se produz arte, embaçando fronteiras, juntando o factual com o estético. Poesia, canto, dança (o que na Antiguidade grega chamavam de MUSIKÉ) concorrem para acentuar a dramatização de algo da ordem de experiências dolorosas, que estão veladas e implícitas, fazendo com que o expectador produza intimamente uma espécie de identificação. E eis que do corpo no palco reverbera em voz a condensação de uma espécie de matéria impossível de vir a ser linguagem, de organizar aquela contextura em palavra, contentando-se o espectador em silenciar, mesmo que seu íntimo esteja chafurdado, assanhando águas adormecidas. 

Podemos pensar que se trata da cristalização, em forma de cantar, de uma espécie de dor, quem sabe, tipicamente oriunda das classes populares, que se representa por meio de queixumes e lamentos capazes de dramatizar em imagens hiperbólicas o pranto advindo quase sempre de um fracasso amoroso. Com efeito, a experiência amorosa é a matéria da qual a cantora extrai as sombras lancinantes que envolvem a interpretação das letras. Interessante é que no seu modo de cantar há uma espécie de pressa da voz, coisa parecida com uma (des)impaciência, não sei explicar direito, mas é como se houvesse um descompasso entre a palavra cantada e a melodia que ela, a voz, tem a obrigação de sincronizar, para que haja a desejada afinação (dizem que os músicos de Elis Regina viam-se doidos, pois a cantora não respeitava os instrumentos; os músicos é que tinham de acompanhá-la). A pressa funciona como busca de articular a pungência das emoções, de verbalizar o que lacera, de fazer manar a necessidade que as entranhas ansiosamente teimam em fazer imagens, numa tentativa de aplacar o que punge. 

É engraçado como tudo acima dito só nos leva a pensar quanto o que conhecemos como “Amor” não passa de uma construção social, ou seja, ama-se de uma maneira porque fomos acostumados a isso vemos desde sempre tal comportamento em evidência, conseqüentemente há também uma específica maneira de sofrer quando nos arriscamos nas veredas das paixões e dos amores. Em assim sendo, não se trata de algo natural, mas introjetado nos sujeitos sociais quando do processo de socialização, vindo a impregnar o Imaginário coletivo ou integrar nosso esteio simbólico de ordem mais particular, digamos assim, estando-se este, eivado de sinais, mitos e obras de arte ritualizadores do amor romântico. 

Alguns países ou cidades mais cosmopolitas pouca importância ao feitio da forma com a qual fomos acostumados a amar. Só para se ter uma idéia: quando do final de um casamento, para alguns, no mundo de hoje, não há o sentido de fracasso, mas de uma experiência a mais que não logrou êxito. Já li que as gentes escandinavas pensam assim. Embora seja difícil falar do amor, não há como deixar de lado certas ilações ou constatações. O amor é faca de dois gumes: cinde o ser que, recalcitrante, repete a experiência do desejo de amar e ser amado, mesmo inconscientemente sabendo da impossibilidade e do inelutável quando o humano se intromete, ansiando deter nas mãos as rédeas das coisas relacionadas às emoções. 

Cultural ou não, o certo é que estamos fadados a elaborar algum tipo de variação opinativa acerca dos assuntos relacionados ao amor. Quem sabe o fato de Núbia Lafayette esculpir uma maneira de cantar, com feição visivelmente melancólica, tenha a ver com essa necessidade de expressar as circunstâncias presentes nos relacionamentos amorosos que, em grande parte, não passam de pura fantasia ou medo e ânsia de se negar a condição de estarmos fadados a sermos sozinhos, sobretudo porque a solidão integra e entrega o humano como matéria extremamente frágil e susceptível às intempéries de toda ordem. 

O pior disso tudo é saber que o outro não tem como nos aplacar, se permanecermos obstinados, escoiceando a lógica autônoma que rege os distritos do amor Só instalaremos uma guerra íntima, uma desavença interior, aumentado o sofrimento e turvando uma eventual possibilidade de instalarmos um distanciamento crítico capaz de deslocar parte da nossas afetividade para outros objetos ao nosso redor, conduzindo-nos a um relativo equilíbrio, lastreado na prudência e na capacidade de transferir o afeto de um objeto para outro. 

Até que tentaram afugentar um pouco os estigmas que rodeiam o nome da cantora; tanto é que se organizou um LP com músicas e compositores mais reconhecidos pela mídia e pelo público como de qualidade, tais como Gonzaguinha, porém é consabido o valor e o peso do campo simbólico no qual se lastreia um fenômeno. 

Assim sendo, a cantora permaneceu ocupando um espaço equivocado, face a seu estofo como cantora, ritualizando um modo em extinção de amar, um feitio do sofrimento que pouco condiz com o jeito de ser em uso na sociedade contemporânea. Basta ver o quanto sua interpretação e presença têm de índices evocadores de signos que remetem à decadência e ao fracasso. Presa a um tempo que cumpriu seu ciclo vital, a cantora Núbia Lafayette recolhe os resíduos espalhados nos corações dos remanescentes e dos saudosistas de uma época encerrada, pois as horas pingam seus turnos em ampulhetas acumuladas no imenso arquivo da História.

 Para refletir no Dia de Finados 

Padre João Medeiros Filho 

A morte necessita ser aceita, com menos dor e tristeza, mais resignação e resiliência. Tal realidade, passível de demora e sofrimento, depende da estrutura emocional e da crença de cada pessoa. Cabe-lhe o direito de escolher o caminho mais reconfortante, decorrente de sua fé ou espiritualidade. Para uns, quem morreu se reintegrou à mãe natureza. Segundo outros, reviverá nos filhos, netos etc. Muitos asseguram que cada ser humano fará parte de uma energia maior, penetrando noutra dimensão. O cristianismo ensina que a morte é o início da vida em plenitude, a porta de entrada no definitivo, “a aurora da eternidade”, na expressão de Dom Nivaldo Monte. Roberto Carlos, em sua fase mística, manifesta a sua crença: “Além da vida que se tem, existe outra vida além – e assim o renascer – morrer não é o fim.” A vida flui, realizando os ciclos da existência. Estes abrem-se e fecham, tal é o existir. Isso ajuda a pensar nas vezes em que alguém se mostra egoísta, desonesto, hipócrita e injusto. Mas, deve-se lembrar igualmente os momentos em que se pratica o Bem. As águas do fluir da vida não se interrompem, quando se dorme ou come, nos momentos de tédio, depressão e ansiedade, no choro copioso na solidão do quarto ou na escuridão da noite. “A morte é natural, pois faz parte da realidade biológica. Comer, beber, dormir, sonhar, procriar e morrer integram a natureza humana.” Palavras do meu saudoso médico Dr. Leônidas Côrtes, diretor geral da Casa de Saúde São José, situada no Bairro do Humaitá, Rio de Janeiro (RJ). O intervalo da vida e os instantes de seu fim são um duro e exigente aprendizado. E disto poucos cuidam. Não se pretende abordar aqui as tragédias em acidentes e assassinatos. Entretanto, é impossível esquecer que no Brasil morrem mais pessoas de violência do que em muitas guerras. Trata-se da banalização da morte e espantosa desvalorização da vida. É importante dizer que “A Moça Caetana”, na expressão de Oswaldo Lamartine, ou a “Indesejada das gentes”, conforme Manuel Bandeira, é dolorosa e de difícil aceitação para muitos. Os cristãos convictos afirmam que somente a fé amaina a tristeza e a dor da separação. Quando jovem sacerdote, em Caicó, lá se vão seis décadas, um menino me indagou na sua simplicidade, diante do ataúde de seu avô: “Padre, para onde foi vovô?” Respondi, da maneira mais natural possível: “Ele viajou para perto de Deus. Vai cuidar melhor de você, pois terá mais tempo. Guarde-o bem em seu coração...” Falar é fácil – dizia a mim mesmo – enquanto comentava isso com a criança. O drama da vida não se encerra com o choque do falecimento. Nesse instante, começa uma segunda indagação. Na primeira, questiona-se qual é o sentido da existência, a razão do que se faz no mundo, o significado dos encontros, desencontros, realizações, frustrações etc. Diante da perda de alguém, interroga-se: “qual o sentido daquilo que muitos pensam ser o fim? E quando chegar a nossa vez?” Em geral, tem-se muito ou pouco medo, dependendo da fé. Vale recordar a frase atribuída a Sócrates – condenado à morte pelos cidadãos de Atenas – proferida na hora de beber a cicuta: “Se a morte é um sono sem sonhos, será bom. Se for um reencontro com pessoas amadas que partiram, será melhor ainda. Então, não se desesperem tanto.” Se alguém que não conheceu a ternura de Jesus, falava desse modo, quanto mais os cristãos, que acreditam nas palavras do Mestre: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em Mim, ainda que tenha morrido, viverá” (Jo 11, 25). É preciso tempo para integrar à vida a dimensão da morte. Mesmo sem falar em eternidade, não se pode negar que os mortos queridos vivem em nós, ao lembrar seus rostos, vozes, gestos, risos, os belos e difíceis momentos vividos. Repetem-se no milagre genético, nos filhos e netos, ou se perpetuam pela lembrança. Isso não é tudo. Para quem segue Cristo verdadeiramente encontrará resposta e consolo. “Ele enxugará toda lágrima de seus olhos, não existirá mais morte, não haverá mais luto nem dor” (Ap 21,4).

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

 


Este é a recente pintura que fiz, retratando Capelas e Igrejas do Rio Grande do Norte. Escolhi a Capela da localidade denominada Utinga, que fica numa pequena e antiga povoação de São Gonçalo do Amarante, conhecida como rota para a exploração holandesa no início do século XVII. 

Segundo historiadores registram desde 1638, essa comunidade era conhecida como "Itinga" (que no dialeto tupi-guarani significa água branca), onde existia uma capela, que teria sido construída no mesmo local da anterior, já existente na época do domínio holandês, que deve não ter funcionado em virtude da religião dos invasores, que eram Calvinistas.

A atual capela teria sido erguida por volta de 1730, segundo documentos oficiais, e é dedicada à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. De maneira conflitantes, existem registros de que no frontispício da capela aparece o ano de 1783, 1785, 1687 e representa, provavelmente, a época em que o templo sofreu alguma reforma. A verdadeira inscrição é 1785. 

Vê-se nas suas características e de outras edificações próximas, a indicação da arquitetura do século XVII, o que comprova o período indicado de sua construção. 

Como em muitos lugares do Estado, essa Capela também serviu para a ocupação holandesa. Pelo seu valor histórico foi tombada pela Fundação José Augusto. 

Observam os historiadores: "Provavelmente, a estrada mais antiga do Estado, que ligava Baía da Traição, na Paraíba, até Natal, passava pela capela de Utinga. Outro fato importante é que na localidade de Utinga e na sede de São Gonçalo registrou-se antes mesmo de 13 de maio de 1888, a abolição de escravos".

Por derradeiro, reitero que uma pintura, no estilo naif, não significa um retrato da coisa escolhida, mas uma indicação equivalente à realidade.

 

 

UM CANCRO NO PAÍS –

O apadrinhamento no serviço público está se tornando uma prática viciante, constante e nociva com resultados nada positivos para a economia do Brasil. Não se tem noção de quantos apadrinhados políticos mamam nas tetas da nação, estados e municípios nem dos custos que eles representam para os cofres do erário.

Que tentem justificar que os ditos são recrutados para suprir vagas do serviço público. Pura balela. A carência de funcionários de carreira é suprida mediante concursos públicos. Trata-se aqui da acomodação de apaniguados de líderes políticos em cargos comissionados, atendendo compromissos de campanhas eleitorais.

Diminuir o número de ministérios é uma das primeiras promessas feitas durante as disputas para presidente da República no intuito de conter os gastos públicos. Eis o acontecido nos três últimos pleitos: Dilma criou 30 ministérios; Temer, manteve 29; Bolsonaro, terminou com 23; e, Lula, emplacou 39 no início do governo.

Durante o regime militar, com Castelo Branco na presidência, existiam 10 ministérios; no término da intervenção militar com Figueiredo no comando foram 13 ministérios. O crescimento durante a redemocratização foi significativo, basta comparar os dados acima.

A Constituição de 1988 proíbe e condena a prática do nepotismo na atividade pública nos três poderes da República porque fere os princípios da moralidade e da impessoalidade. Acontece que o desrespeito a essas normas é patente em todas as instâncias do serviço público com maior descontrole nos estados e municípios.

São 44 estatais federais controladas pelo governo e 79 empresas subsidiárias, administradas de forma indireta pela União. Tais empresas servem também de alicerce para acomodar parte desse afilhadismo em siglas a perder de vista como as das agências reguladoras federais: Anac, Anatel, Aneel, Anvisa, Ancine e outras tantas.

Isso sem falar nos Conselhos para definir as orientações estratégicas e aprovação dos planos e negócios das empresas públicas. Acontece que a maioria deles são compostos de pessoas que recebem salários exorbitantes para participar de reuniões esporádicas, comumente, sem a menor qualificação para assumir tais assentos.

O resultado de tudo isso são os rombos nas contas públicas devido aos problemas de gestão e competitividade, além dos gastos com custeio, programas assistenciais crescentes e pessoal. A verdade é que nada pode conter o excesso de despesas com pessoal sem a extinção de cargos e com a manutenção dos apadrinhados.

Presume-se que a ocupação do “cargo de confiança”, que é uma posição que confere ao empregado autonomia para tomar decisões e representar o empregador, seria destinado a alguém da confiança do titular da empresa, desde que utilizando os critérios determinados na lei. Acontece de os critérios estarem banalizados.

Por qual razão os órgãos responsáveis pela lisura pública não controlam essas contratações indevidas, que ferem a Constituição? O que impede o governo de eliminar tais cancros danosos ao erário? Certamente, porque há muito tempo as práticas da impessoalidade e da moralidade deixaram de existir.

Essa é a Lei da Compensação em vigor: enquanto uns “ralam” derramando o suor pelo país; outros se locupletam às custas da dedicação dos primeiros. Fazer o quê?

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José Narcelio Marques Sousa – Engenheiro civil

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

 



OAB-RN – 93 anos depois
CARLOS ROBERTO DE MIRANDA GOMES, Membro Honorário Vitalício

O tempo não arrefeceu os ideais surgidos com a criação dos cursos jurídicos no Brasil, em 11 de agosto de 1827, do que resultou o despertar da ideia de criação de uma Corporação profissional dos bacharéis em Direito brasileiros, formados nas Escolas da Europa, em volta com o natural pendor pelo nacionalismo.
Os Institutos dos Advogados foram os precursores, com caráter mais cultural e depois, sob o clamor da Revolução de 1930, eclodem os procedimentos para a criação da Corporação dos Advogados, propriamente ditas - ou seja, a Ordem dos Advogados do Brasil em todos os pontos cardeais do Brasil.
O Rio Grande do Norte não demorou a aderir à ideia e, no tempo de precedência, o nosso Instituto dos Advogados do Brasil, fundado pelo grande jurista provinciano Desembargador aposentado Hemetério Fernandes Raposo de Mello, após a sessão ordinária realizada no dia 05 de março de 1932, na sala de reuniões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, conclamou os seus pares para iniciar o movimento de criação de uma Secional da OAB, contando com o apoio dos colegas Francisco Ivo Cavalcanti, Paulo Pinheiro de Viveiros, Manoel Varella de Albuquerque, Francisco Bruno Pereira e Manuel Xavier da Cunha Montenegro.
Foi então formada uma diretoria provisória, preenchida com os cargos, respectivamente, de Presidente, Secretário, Tesoureiro e os demais, como vogais, cuja ata inaugurou o Livro próprio de Atas nº1, constando como primeira decisão, publicar editais convocando os advogados, provisionados e solicitadores, para fazerem suas inscrições na nova Corporação recém-criada.

            Recrutados os profissionais da advocacia foi composto o nosso Primeiro Colégio Eleitoral e realizadas as eleições, aprazada a posse para o dia 22 de outubro daquele mesmo ano, reconhecida como data oficial de fundação na 10ª reunião do Conselho da OAB/RN, pelas às 19 horas daquele dia, tendo como integrantes da Primeira Diretoria os seguintes advogados: Presidente – Dr. Francisco Ivo Cavalcanti; 1º Secretário – Dr. Paulo Pinheiro de Viveiros; Tesoureiro – Dr. Manoel Varella de Albuquerque; Vogais – Dr. Pedro d’Alcântara Mattos, que substituiu Dr. Hemetério Fernandes Raposo de Mello, que foi eleito Conselheiro com a maior votação, mas não tomou posse em razão do seu falecimento no dia 30 de agosto (Assembleia dos Advogados em 14 de novembro de 1932) e, por sua vez, substituído em seguida pelo Dr. Alberto Roselli, depois por Phelippe Nery de Brito Guerra e Vicente Farache Netto, tendo como Conselheiro representante junto ao Conselho Federal o advogado João de Brito Dantas. 

No correr do tempo a nossa Corporação foi responsável por incontáveis ações relevantes para a histórica política, intelectual e social do Rio Grande do Norte e os seus atuais integrantes guardam fielmente os mesmos fundamentos que fizeram da Ordem dos Advogados do Brasil, uma Entidade que logrou em definitivo, o apoio da sociedade potiguar, que lhe deu o respeito e a reverência devidos.

PARABÉNS a todos os bacharéis filiados à Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Norte, que completou esta semana os seus 93 anos de existência, agora sob a direção do Presidente Carlos Kelsen.


 

Um escritor amargo que tinha uma biblioteca de nome terno e poético

Lima Barreto deu à sua biblioteca o nome de Limana, substantivo próprio que é quase uma música de um só acorde e significa pertencimento

 atualizado 

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Lima Barreto era um homem difícil, cáustico, magoado, ressentido, sofrido, solitário, briguento, provocador, extremamente lúcido, escrevia em português brasileiro quando isso era um acinte para a bolha literária. O criador de Policarpo Quaresma e Isaías Caminha via as coisas do Brasil com a crueza necessária para mostrar o que se tentava esconder, disfarçar, embranquecer. Lima Barreto viveu pouco, só até os 41 anos, mas escreveu muito, polemizou outro tanto, publicou romances e contos (além de crônicas) que estão em qualquer lista dos clássicos da literatura brasileira, deu voz à periferia, tirou a casca do racismo brasileiro e deixou a ferida sangrar. Escreveu sem academicismo, deu voz à sua própria voz e a dos seus. Lima Barreto brigou com meio mundo, até com Machado de Assis, não exatamente com o escritor, mas com o fundador da Academia Brasileira de Letras. Passou por hospícios pra tentar se livrar do alcoolismo, não se casou, não deve ter tido filhos, se namorou foi muito pouco.

O filho da professora Amália com o tipógrafo e depois almoxarife João tinha uma biblioteca em casa, um cômodo que servia de quarto, escritório, refúgio, sossego. E aí vem a coisa mais terna e doce do amargo escritor que dizia ter a alma de um bandido tímido: ele deu à sua biblioteca o nome de Limana, substantivo próprio que é quase uma música de um só acorde, um poema de uma única palavra, o nome de uma fruta mais o sufixo “na” que tem o sentido do pertencimento. Romana, de Roma, Americana, da América, Machadiana, de livros de e sobre Machado de Assis, Limana, de Lima Barreto. Lima é nome de uma fruta cítrica, ácida e levemente adocicada. Limana é nome feminino, terno, poético.

Numa casa do subúrbio de Todos os Santos, zona norte do Rio de Janeiro, moravam o pai de Lima, o também sofrido João Henriques de Lima Barreto, e os quatro filhos, Afonso, Evangelina, Carlindo e Eliézer. A mãe deles, a professora Amália, morreu jovem, aos 25 anos, de tuberculose. Era filha de escrava alforriada que engravidou, ao que se supõe, de um senhor de escravos, do mesmo modo no qual acabou por surgir o que chamamos de civilização brasileira.

A casa tinha janelões voltados para a rua. Quem passasse na calçada e quisesse assuntar podia ver um cômodo com as paredes cobertas de livros, o que causava certa estranheza, uma admiração confusa – quem naquela casa leria todas aquelas letras? Há quem diga que eram em torno de 700 ou 800 obras, entre livros, revistas, recortes de jornais e manuscritos do autor.

Quando estava em casa, na volta das redações de jornal e das confeitarias e botecos do centro do Rio de Janeiro, Lima se refugiava na Limana. Gostava e cuidava tanto dela que fez um ex libris, como era de costume à época entre os muito letrados. Ex libris, pra quem não sabe, era uma espécie de selo com o qual os donos carimbavam seus livros para indicar a quem eles pertenciam. Um marcador social de letramento. Por certo haverá até hoje quem os tenha. O do Lima foi desenhado por um talentoso artista plástico português chamado Correia Dias que veio para o Brasil em 1914. E que, entre muitos outros feitos, desenhou a capa dos livros da poeta Cecília Meireles, com quem se casou (um amor que resultou em três filhas e uma tragédia, Dias se suicidou).

Mas é de uma palavra linda que trata esta crônica, Limana. A certa altura, Lima decidiu inventariar a Limana. Anotou nome por nome os livros e os manuscritos que ela continha. É de se surpreender que mais da metade das obras de um dos mais nacionalista dos romancistas brasileiros fosse em francês, idioma que o menino criado no subúrbio aprendeu sozinho lendo livros, revistas e consultando dicionários. Mas Lima não fugia à regra: naquela travessia de século, o Brasil ainda bebia na fonte da literatura e do pensamento francês.

Habitavam a Limana, entre tantos outros, Rousseau, Voltaire, Balzac, Flaubert. Havia brasileiros, claro. Machado, Joaquim Nabuco, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, Coelho Neto. Lá estavam também os ingleses (Shakespeare), os russos, por óbvio (Dostoiévski), os portugueses (Camões), espanhóis (Cervantes) e, incrível, entre os alemães, Karl Marx, o que não significava que Lima fosse comunista, apenas que tinha vontade de saber das coisas do pensamento e da inteligência, onde quer que elas estivessem.

Lima tratava os livros de igual para igual. Fazia anotações nas margens das páginas, emprestava-os aos amigos. Mas a biblioteca, o conjunto das obras que ele começou a juntar desde muito jovem, era um corpo único: “Minha Limana cresce lentamente, como as barbas de um pobre-diabo”, ele escreveu, com afeto e certa comiseração. Limana era Lima, Lima existia em Limana. Entrava em casa e ia direto para dentro dela. A atmosfera doméstica era tensa: o pai de Lima, o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto que depois virou almoxarife de hospício, padecia de distúrbios mentais que foram se agravando com o tempo. Pai e filho morreram com uma diferença de 48 horas.

O filho morreu na Limana, repentinamente, recostado na cama lendo a revista francesa Revue des Deux Mondes. O corpo de Lima estava muito maltratado pelo alcoolismo. A alma, não menos ferida, clamando sempre por reconhecimento, gritando sempre contra o triste destino dos negros no Brasil e a indiferença burguesa ao flagrante racismo que ele conhecia na pele, nos traços, no cabelo, nos desprezos constantes.

Com a morte de Lima Barreto, a Limana foi doada ao arquiteto José Mariano Filho, que havia algum tempo tinha se aproximado do escritor e o defendido publicamente em várias ocasiões. Mariano pagou as despesas do sepultamento de Lima e, em agradecimento, a família do escritor doou a Limana para o arquiteto que a levou para sua chácara em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. E ali Limana ficou esquecida por muito anos até que alguém dela se lembrou, mas a essa altura as traças e o mofo já tinham devorado boa parte das obras. O que restou está na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Não conheço nome mais lindo para uma biblioteca, Limana.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.