quinta-feira, 18 de setembro de 2025

 

Texto do Professor MÁRCIO DE LIMA DANTAS

Praia com pedras

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Goreth Caldas: um sistema de metáforas (das tantas esperas)

 

Entre os escaravelhos e o arbusto
do peito frágil existem
segredos buscando alívio
através de sussurros.
 
Henriqueta Lisboa

 

1.

Goreth Caldas (Caicó, 1958), embora detenha um parentesco muito próximo do nosso maior pintor de todos os tempos, não reteve maiores influências daquele que a incentivou no início da carreira de artista visual. Mesmo sendo autodidata, apesar de ter recebido a influência e o necessário apoio de seu primo Dorian Gray para realizar suas exposições individuais e fortalecer seu espírito de convencimento de que era uma pintora que nascia e buscaria seu lugar no universo das artes do Rio Grande do Norte.

Quero dizer com isso que seu desenho expressa um exímio domínio em elaborar os contornos e sugerir a perspectiva por meio do uso preciso das pinceladas, mormente nas marinas ou paisagens cuja temática é uma nesga de mar. Com efeito, o pincel obedece docemente às oscilações de ascender ou descer, como sucede nos morros que barram as águas ou dividem as praias.

Tendo iniciado usando tinta acrílica sobre tela, também usou tinta óleo, bem como construiu várias séries com xilogravura. Fez vasto uso de pintar casarios erguidos como palafitas, mas aprimorou, e muito, as marinas e os buquês de flores.


2.

A obra multifacetada de Goreth Caldas, constituída por um arco que vai do figurativo ao abstrato, passando pela xilogravura, como já dissemos, permite-nos circunscrever uma espécie de sistema que tem o epicentro na simbólica da metáfora. Em razão de possuir esse símbolo que irradia por toda obra, nos deixa entrever que o semblante do que se encontra ao largo ou quieto em seu silêncio, permite também que cada um espectador lance sua interpretação. A metáfora não é isso: uma coisa no lugar da outra? Inerente aos códigos inventados pelos humanos, quer seja por meio da linguagem escrita, quer diga respeito ao pictórico.

Ademais, as metáforas são formas, digamos assim, bastante simples de comunicação e que podem ser analógicas ou digitais; o que importa é a capacidade de justapor dois elementos diferentes com o intuito de se fazer compreender ou, quando levada para o universo das artes, gerar beleza, contraste de cores, texturas, reorganização do espaço no qual habita o homem e seus semelhantes.

É bom lembrar dessa insistência em paisagens marinhas e casarios modestos, sem a figura humana, que somente em algumas séries é que despontam com vigor. De resto, a senda primeva da obra está nos limites do que livremente nominamos sistema. Aliás, podemos, para efeito didático, nos permitir essa organização, na medida em que um elemento presente nos quadros vale por relação, o que nos círculos concêntricos de imagens (barcos ancorados, xilogravuras, buquês de flores, casario, marinas) lança seus vetores sempre para o mesmo lugar: uma espécie de metáfora.

Sim, há de lembrar o existir de relações precisas entre todos os paradigmas presentes, perfazendo uma organização na qual cada obra contém resquícios ou nacos das outras, engendrando uma pronúncia estética cujo valor é o reconhecimento do trabalho edificando uma dicção eivada de originalidade ou releitura de um estilo histórico presente na História das Artes.

É bom lembrar que nem todo artista detém essa singularidade revestida de um fulgor que inscreve sua assinatura no conjunto dos seus pares, triunfando a beleza solene de quem é capaz de extrair, por meio de parcas cores ou diminutas linhas, alguns elementos que nos cercam e nos fazem ser e sentir, identificando nossa humanidade.

Contudo, faz-se necessário lembrar de artistas que são dotados de mil e uma maneiras de expressar, conduzindo ao espectador uma coleção de semblantes incomuns e diferentes do que fora há dois ou três anos.

3.

Essa simbólica do ermo, do abandono, da solitude, encontra-se até mesmo no casario e nas palafitas, onde o humano não é presença, outorgando ao que contempla a mesma sempre pergunta: onde estão as pessoas, os idosos, as crianças e as mulheres ocupadas na azáfama da casa? É bom lembrar dessa insistência que acaba por moldurar uma mitologia na qual os lugares dos humanos estão desertos. Para onde foram banidas as criaturas, o que é vivo, como os animais e as pessoas?

Uma vez que ao chegar com o olhar a tais lugares, não há outra atitude a fazer senão apalpar seu próprio espírito, resguardador da psique, cumprindo-se o papel da arte na existência dos que errantes estão tentando debelar Cronos (tempo), o devorador de seus filhos, caminhando por todo tipo de rodagem, pelas zonas rurais ou pelas cidades. De certa maneira, nas paisagens e marinas de Goreth Caldas, apenas existe lugar para o inexistente, ou seja, para o abstrato dos mitos.

É bom lembrar o que disse Fernando Pessoa em um poema do livro Mensagem: “O mito é o nada que é tudo”. O poeta português trata de coisas abstratas, organizações mentais, personagens cultivados em nossas mentes, habitantes que vivem nas herdades do que Jung indigitou de arquétipos, e que dizem respeito a todos os humanos, ativando seus maquinismos consoante nossas necessidades para explicar ou delinear com linhas de grossa qualidade aquilo que somos ou que temos, mas não controlamos.

De resto, a senda primeva da obra está nos limites do que nominamos aqui como sistema, uma vez que são elementos a remeter uns aos outros, perfazendo uma organização na qual um trabalho na tela remete a outro, engendrando uma pronúncia estética cujo valor é reconhecimento da obra terminada através de uma eventual dicção.

4.

O que de tíbia risca os limites da tela não anula o desenho pretendido, ao se contemplar com mais demora e atenção, aos que miram os detalhes com cuidado do que não parece ser um quadro. Apenas podemos afirmar o quanto atípico é, sem deixar de ser o incomum que também habita nossos distritos internos e que muitas vezes só o objeto de arte vem trazer à tona e nos deixar mais anchos na quietude de compreender a arte como fármaco, doador dos dons, conselhos de caminhos que devemos seguir. Enfim, a arte é uma espécie de sanativo, – sobretudo para quem tem a necessidade de plasmar por meio de diversos procedimentos – busca concretizar o que era germe ou semente, como se fosse uma cepa a se preencher de galhos que logo em seguida se tornarão em flores.

Eis que temos apenas riscos entrecruzados, a cumprir o papel de expressar na tela o que busca dizer de uma situação de pertencimento aos lugares quedados no nosso imo, emergindo quando de uma necessidade ou procura ansiosa de uma resposta ou mesmo uma compreensão do que chafurda nos prados de nosso íntimo.

O poeta conseguiu no livro Mensagem, em um dos seus mais belos poemas, dispor de forma ordenada a serventia do mito. Fomos acostumados a compreender a realidade como o lugar para onde o mito repousa seu universo de significantes. Ou seja, é bem diferente o que parece suceder, a realidade deve mais ao mito do que possamos imaginar. Assim a lenda se escorre / A entrar na realidade, falo de algumas séries cujo desenho almeja sua tentativa através de uma franzina de riscos em muitas cores.

E tudo o que é intangível vigora na obra de Goreth Caldas, contudo, conseguimos saber que existem na nossa psiqué (mente) e no nosso soma (corpo), chegando entre muitas formar, dentre elas as enfermidades que nos afligem, atribulam e quebrantam a nossa totalidade de existente. Ora, cada um faz uso do que crer, como a religião, com suas diversos maneiras de contemplar e ter fé. Isso vai de cada um. A medicina também reserva um papel de suma importância no conhecimento dos meandros do corpo. Quase ia esquecendo, esse também é o chão rejuntado onde Hypnos (Sono) e Morpheu (Sonho) aguardam o fechar dos nossos olhos, de cansaço ou porque é noite mesmo, necessário se faz o descanso.

5.

Por fim, essas telas tão-somente se comprazem em apresentar estruturas compostas por meio de pinceladas um tanto rápidas, renegando a presença humana. Essa hiância nos remete a evocar questões filosóficas como esta: qual o motivo de não haver gente, haja vista que não se trata de abstracionismo geométrico ou expressionista. Pontuamos aqui as marinas do seu primo Dorian Gray, cujas paisagens hesitam entre o abstrato e o figurativo.

Vale lembrar que talvez as marinas sejam a obra-prima do nosso pintor.  Tudo se restringe às propriedades do figurativo, mesmo que esteja esmaecido, sugerido ou riscos verticais, fazendo-nos refletir que se trata de algo que parece algo desde sempre integrante da cultura.

Com certeza, e com o tempo passado, mais de um século, podemos não ter dúvidas de que a partir do Impressionismo, a figura humana foi como que desbotando das telas, em um fenômeno que só mesmo a noção de Espírito da época pode dar conta e nos conduzir a uma compreensão de como uma mesma forma de pintar, – independe dos homens e lugares terem qualquer tipo de relação, – procederem da mesma forma, ou seja, a figura humana de natureza realista desvanece-se.

Antes de mais nada, não podemos simplesmente isolar esse fenômeno e afirmar que um estilo era “da hora”, pois quando se trata da arte, sobrepõem-se o passado e o presente, fazendo com que toda uma diversidade de formas de expressão tenha o seu lugar, desde que apresente qualidade. O início do século XX, com suas vanguardas, rompendo com o passado, é um bom exemplo de como toda uma diversidade de estilos conviveu lançando fronteiras na qual havia hachuras ou total independência.

Chegamos onde gostaríamos de relacionar o trabalho de Goreth Caldas e sua relação com o Abstracionismo, não importando se é o geométrico ou o expressionista, o que vale é o manuseio das cores e texturas, conduzindo a plasmar desenhos hesitantes entre o figurativo ou o abstrato, mesmo que alguns fujam à categorização. Em arte, é quase impossível proceder a determinados enquadramentos pois é da sua natureza haver os estilos ou pintores que funcionam como referência.

6.

Antes de mais nada, para finalizar, só nos resta outorgar um referendo à beleza e à originalidade da obra multifacetada dessa eminente pintora, Goreth Caldas, destacando-se na vasta lavoura de nossas artes visuais, em uma comarca plena de características agradáveis ao se perceber, ao se contemplar, ao se compreender, nunca esquecendo de um lirismo bem diferente daquele a que estamos acostumados a lidar ou ir nos vernissages da vida.

Ia esquecendo de falar dos seus opulentos buquês de flores em vasos. Essas naturezas-mortas são compostas não de arranjos com diversas espécies de flores, como sempre sucede, mas são monogâmicos, ou seja, um punhado de fores dentro de jarro, ocupando todo o espaço das telas, em uma beleza que excede, por conta da maneira como estão justapostas.

Até parece uma busca na qual, ao fim e ao cabo, mana o que talvez a pintora nem venha a ter consciência, como já dissemos: o desacompanhamento de quadros com paisagens ermas, nos quais a solidão arrodeia seu total domínio. Solidão no sentido de que a figura humana não aparece ou está presente. Comprazendo-se em apresentar estruturas compostas através de pinceladas, muitas vezes é como se se contentasse apenas em expressar os mastros que sustentam as velas. Em alguns casos, ficam explícitos, os barcos ancorados, com riscos que delineiam uma embarcação.

Contemporaneamente, a condição do indivíduo solitário vem a ser matéria complexa, passando do plano individual, singular, para o coletivo, sendo já uma preocupação do Estado. Só para se ter uma ideia, alguns países criaram o Ministério da Solidão, tais como o Reino Unido e o Japão. Consabido é os desdobramentos da solidão, como enfermidade, lançando os indivíduos o tempo inteiro a se apalpar, buscando toda uma sintomatologia que quase sempre não é resultado de uma doença ou espécie de vício, mas deságua em transtornos afetivos, em síndromes do pânico.

Com certeza, agora sim, surgem doenças como a depressão, o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e outras mais relacionadas à psiqué, nem sempre fácil de debelar ou conviver com um estado que o indivíduo não deseja, mas que pode resultar em coisas mais trágicas, como a autossabotagem e o suicídio.

 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

 Um país gravemente enfermo 

Padre João Medeiros Filho 

O Brasil contamina-se cotidianamente com polêmicas, intransigências, radicalismos e interesses meramente ideológicos ou partidários. Acarreta desgaste e desperdício de energias para os cidadãos e a sociedade. Por preconceito político ou partidário desprezam-se oportunidades ricas de diálogos construtivos, capazes de contribuir para a solução de muitos problemas. A dificuldade ou incapacidade de debater construtivamente tem revelado um despreparo para o exercício de responsabilidades civis, profissionais e até religiosas. Isso não é novo. Na época de Cristo, seus concidadãos viviam política e psicologicamente armados. A animosidade entre os habitantes da Judeia e Samaria, as diatribes entre fariseus, hipócritas, saduceus e outras seitas não são muito diferentes dos atuais embates no Brasil. Os quatro evangelhos estão repletos de alusões e exemplos desses confrontos (cf. Lc 9, 52-53; Jo 4, 9). Pode-se verificar um significativo descompasso entre as inúmeras possibilidades culturais, científicas, tecnológicas do Brasil contemporâneo e as contradições sócio-políticas do país. Este debilita-se paulatinamente com lutas fratricidas, causando impacto sobre diferentes atividades. Disso resulta uma fragilidade crescente das instituições, cada vez mais desacreditadas e desrespeitadas. Na carência de equilíbrio jurídico, ético e político, falta clareza às pessoas. Desse modo, prevalecem os conchavos, as narrativas e conveniências que produzem descompassos e dificultam entendimentos. Nesse contexto, a capacidade de diálogo se enfraquece, comprometendo a percepção da verdade e o exercício da solidariedade. Entendimento, acordo ou consenso parecem banidos neste país. O outro passa a ser inimigo, e não apenas umdissidente. É umretorno ao pensamento de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros.” Atualmente, a pátria e os cidadãos se retroalimentam patologicamente de polêmicas e antagonismos. Não se informa mais com objetividade e razoabilidade. Joga-se querosene na fogueira. Hoje, as pessoas – inclusive governantes – tornam-se incapazes de aceitar, sequer ouvir críticas que ajudam a construir dinâmicas renovadoras dos diferentes contextos sociais. “Foi-se o contraditório, reina o ditatório”, já desabafava o jurista e senador Afonso Arinos, na década de 1970. Carentes de humildade, tangidos pela arrogância e empáfia, muitos se julgam melhores e “iluminados” do que são realmente. Hoje, a tendência é condenar açodadamente. Há pressa na emissão de juízos. Desconsideram-se as ponderações necessárias para interpretar adequadamente falas e fatos. Não se analisa o porquê das coisas. As sentenças são imediatas, impulsionadas por ódio, preconceito ou interesses mesquinhos. Por isso, opiniões e pareceres distanciam-se da realidade, prejudicando inúmeros processos importantes. São sintomas de obscurantismo e radicalismo. Portanto, as instituições não amadurecem. E, consequentemente, os acontecimentos são banalizados na velocidade própria das redes sociais, sem análise séria dos conteúdos e seus alcances. Valoriza-se mais o frenesi abusivo e alienante, ameaçando o equilíbrio mental e emocional do indivíduo e da pátria. Dentre as consequências desse cenário estão a ausência de habilidade para se relacionar e a crescente violência. O lar está deixando de ser o espaço das dinâmicas dialogais para se tornar palco de conflitos. “Muitos lares não passam de meros pensionatos”, afirmava Dom Nivaldo Monte. Isso contribui para o adoecimento da nação, agravado recentemente pela inépcia e falta de criatividade de certos administradores e o consequente colapso social. É preciso vencer as enfermidades morais e políticas que podem levar à depressão e derrocada social A desorientação generalizada é sinal de que o tecido interior da nação está roto. A dinâmica da fé é um pilar relevante para a existência. Jesus Cristo tranquilizou o leproso: “Levanta-te e vai. Tua fé te salvou” (Lc 17, 19). A recuperação da interioridade exige solidez da dimensão espiritual. Diante da crescente morbidade do ser humano, é prioritário buscar o fortalecimento da espiritualidade. A religiosidade integra também a terapêutica que restabelece a verdadeira dimensão humana. Ela contribui para que o sentido da vida seja percebido. As igrejas e religiões precisam oferecer abundantemente dinâmicas e vivências que venham a ajudar o Brasil a recompor sua interioridade. Atitudes renovadoras que possam contribuir para superar situações depauperantes, indiferenças comprometedoras da paz, disputas cegas e fraticidas. Como são profundas e reconfortantes as palavras de Jesus Cristo à samaritana! “Ah, se tu conhecesses o dom de Deus...” (Jo 4, 10).

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

 Texto do Prof. Márcio de Lima Dantas




Carlos Gomes: um naïf registra e exulta uma pintura lúdica 

O homem benigno faz bem à sua própria alma, mas o cruel perturba a sua própria carne. Provérbios, 11, 17 1. Carlos Gomes (Natal, 10.09.1939) é professor aposentado do curso de Direito da UFRN, sendo professor emérito. Após a perda da esposa, para se evadir da saudade e da solidão, bem como de um trabalho de luto comprido demais, que se instalara no seu espírito, começa a pintar. Consabido é que o tempo do nojo ou do luto tem uma expectativa de duração, não há consenso, mas quando passa mais de um tempo de se erguer e opta por prosseguir pela vida, sujeita a outras atribulações, instala-se uma quietude interior, porém domada pelos barbantes da razão, pela sabedoria, pela conversa com outros que passaram pela mesma situação, assim como perdoar a pessoa querida que se foi, mas também se perdoar com relação a ela (foi melhor assim? estava sofrendo em demasia? O lídimo amor libera o enfermo para que descanse na eternidade). 

Creio que foi esse fenômeno que o fez se interessar pela pintura. É perceptível um elemento narrativo nas telas, fazendo parte do que houvera como cotidiano ou buscando, nos ícones da Igreja Católica, guarida para uma alma apunhalada pela vida, chegando sem nenhum aguardo. A vida é traiçoeira. Tânatos, a morte, parece insaciável na sua ânsia de ceifar a seara humana. A morte é autossuficiente, não precisa de trabalhadores para a sega do humano, fazendo valer seu baralho de quem é o próximo a partir para onde não sabemos onde (provavelmente para lugar nenhum, pois ergue sua morada nos corações de quem amava a pessoa que se foi). Carlos Gomes chegou a lançar um livro sobre sua experiência de vida: Eu, pintor? Durante o lançamento do livro, houve uma grande exposição individual no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. 

Seu estilo caracteriza-se como naïf ou ingênuo. Sucede que ocorre uma diferença entre ele e seus pares de tradição. Completamente autodidata, seu desenho se inscreve primitivo, no sentido da não preocupação com o desenho acadêmico ou com o que combina ou não na paleta de cores. É uma pintura liberta dos paradigmas perpetrados pela tradição. 

2. Remete mesmo à escola a que se filia, a naïf. Esse estilo de pintura sempre seguiu em paralelo às chamadas Belas Artes, caracterizando-se por refratar os paradigmas dos estilos históricos chantados pelo Renascimento. Consolidou-se somente no início do século XX, com a aceitação de Henry Rousseau, revelando-se a admiração por sua obra, carimbada de legitimidade por pintores das vanguardas, sendo estes considerados dignos de participar dos salões que eram muito comuns na época. Podemos arrolar um dos grandes pintores desses tempos: Gauguin foi um dos primeiros a reconhecer Henry Rosseau como legítimo, em nada diferente dos demais, com seus títulos da plêiade das Belas Artes. Ele é o mito fundante que fez reconhecer o naÏf e tornar esse estilo com o mesmo status dos conhecidos na época. 

Por exercer uma pintura que não manuseava os cânones da tradição, com vários estilos históricos, — consoante o Ar do tempo —, até as vanguardas, houve recusa do público e da crítica. Causou estranheza misturar esse artista com os dos salões, que estava mais para o primitivo (Faço saber que todo bom livro de História da Arte registra o papel de Henry Rousseau e sua incorporação no seio das artes como compreendemos hoje. O naïf tem seu lugar e seu valor). 

Talvez a principal caraterística da obra de Carlos Gomes seja um elemento que faz reconhecer uma tela como naïf: a ausência de perspectiva. Existe tão somente comprimento e largura. Quase todos seguem essa regra geral. 

Com efeito, em Carlos Gomes, é possível contemplar uma espécie de “grau zero da perspectiva”. Mesmo os naïfs mais “raiz”, digamos assim, resguardam algum resquício de profundidade, que se soma ao comprimento e à largura. Vou dizer o que se segue apenas para efeito didático: talvez, como cânone obrigatório demandado pela religião, a representação nos túmulos dos egípcios, pintando as classes dominantes, o cotidiano e as guerras, não apresentava a perspectiva de jeito qualidade, mesmo por que a geometria, como reconhecemos hoje, ainda não tinha aparecido nos desenhos das artes até o Renascimento (apareceu nos primórdios do século XV, fruto de pesquisas de alguns pintores e matemáticos). 

3. Uma grande parte do que produziu caracteriza-se como arte sacra, haja vista a quantidade de retratos de santos ou mesmo de igrejas, ressaltando a beleza da arquitetura, tais como: Matriz de N. Sra. de Santana, Igreja de N. Sra. do Rosário e Matriz de Pau dos Ferros. Com relação à retratação de santos, podemos observar: N. Sra. das Graças, N. Sra. do Líbano, São Pedro, São João, Petrus (Pedro pescador), São João com um cordeiro, três telas retratando São Francisco. Há outra retratando dois jesuítas, ambos estão serenos, sem a pérfida malícia inerente a alguns humanos. Há uma aura de quietude interior; parece que buscam apresentar-se e não converter alguém. A simplicidade dos dois exulta uma ingenuidade sem afetações nem artifícios, buscando cambiar com os semelhantes a beleza da vida e seus momentos nos quais a alma apascentada queda-se em um torpor de ausência de atribulações interiores contra si mesma (isso é mais comum do que se pensa: a autossabotagem). 

A maneira como retratou esses diversos santos recusa o hieratismo na figuração dos santos e seus respectivos atributos. Pelo contrário, há uma contemplação plácida no olhar e na posição em que se encontra. É suficiente comprovar essa assertiva nos olhos e no vinco gracioso da boca. Podemos observar os retratos de São Francisco para perceber esse semblante genuíno, que a nada nem a ninguém ameaça, apenas se compraz, apenas parece buscar como funciona a essência que o cerca. 

Como podemos constatar, ele retrata uma Igreja Católica não dotada de punição, nem de tornar a noção de pecado como um dos principais dogmas, talvez seja o que mais busca enfatizar entre os ritos e obrigações, opondo-se a um Deus implacável, que busca e vigia o seu rebanho. Há todo um cabedal de intercorrências a receber o devido castigo, a punição e a paga por não ter se comportado de determinada maneira na enciclopédia dos pecados. Curioso que isso não vale para a classes dominantes. Considerando tudo o que há de gente, na verdade, isso não passa de Ideologia, quer dizer, a etiqueta social com seus maneirismos e afetações presentes no comportamento das classes dominantes. 

A Ideologia faz crer que o ser e o estar dos dominantes, a maneira como propalam seus valores e supostamente se comportam, em um manual abstrato, apenas deixa implícito como deve ser e, caso se rompa, segue a punição. Bem claro que é um monte de filigranas, ou seja, o que foi historicamente construído faz crer que isso tudo é natural. O problema é que a maioria da população acredita nessa falácia. Contudo, um país cheio de escândalos traz uma Brasília com fôlego enorme para toda uma sorte de pilhagem ao patrimônio público. Há também, como última moda, o baticum dos neopentecostais, migrados da Igreja Católica e fazendo uma espécie de ensaio de escola de samba. Quem viver verá (sempre pode ser ainda pior). 

4. Com relação a Jesus Cristo, pontuou algumas das estações da Via Dolorosa bem como eventos da sua vida: Assunção; Ressurreição; Retirado da cruz, nos braços de sua mãe, Maria; Nascimento em Belém com os três Reis Magos; também retratou a trindade no céu (Jesus, Pomba do Espírito Santo, Deus e Maria ajoelhada embaixo). 

Tudo o que vem a ser sacro na pintura de Carlos Gosmes há de se pensar muito mais em desenhos e pinturas, cores, nomes, evocação de um mito com mais de dois mil anos. Trata-se de arte, nunca de religiosidade, assim como sua forma de apresentar tais lendas, quase sempre sem afetação nem exagero. O que o mito necessita para se fazer assumir e perpetuar seus arquétipos é ser executado, ritualizado e repetido, por exemplo, a liturgia (missa) da Igreja Católica. É sempre a mesma coisa, e é assim como o mito opera, para escorrer em direção à História, e não o contrário, como se convencionou acontecer. Esse parece ser o vero cortejo de signos, símbolos, imagens: a História encontrando personagens para serem encenados seus autos e dramas no palco da vida e das comunidades. É possível constatar histórias subliminares nos acontecimentos maiores da polis; os papéis são distribuídos anonimamente e o palco da vida trata de encenar histórias do arco da velha. 

5. Consultando um dicionário, encontrei uma bela definição da palavra lúdico: “que faz alguma coisa simplesmente pelo prazer de a fazer”. Não precisa ter noção do que é pintura e suas técnicas, suficiente permanecer algum tempo diante da tela e aguardar uma energia que assoma vinda de dentro da gente. Há de se observar as partes: textura da tinta, paleta de cores, o referente que está retratado. Depois, junte tudo e organize em uma peça só, para que o sentido não somente apareça mas também possa ser tateado o seu espírito, a fim de observar que sentimento ou emoção foram libertos das nossas entranhas. 

Quero dizer com tudo isso, trazendo para a pintura de Carlos Gomes, que suas pinturas reverberam esse prazer de ter elaborado suas pinturas. É inegável que o conjunto da sua obra não apenas ocupou o tempo com algo construtivo mas também aplacou certas feridas que nunca saram. É até bom dizer que algumas pessoas não colocam fármaco algum para que cicatrize, optam por conduzir até seu fim o amor que depositavam na pessoa que se foi. Mas cada um é um. 

Para encerrar este escrito, podemos, à guisa de análise e interpretação, nos deter sobre as telas que sugerem sua vida biográfica e sentimental. Há uma tela muito simples, uma casa no campo, que era conhecida como o casarão da localidade Estevão, em Açu. Isolada de tudo e de todos, amanha uma quietude interior. Há outra tela com o lugar onde funcionava a antiga faculdade de Direito, provavelmente onde se formou. 

Mas a mais bonita e rica dos melhores sentimentos é uma mulher saindo de uma casa para ir em direção à casa da frente, que havia comprado. É a esposa do nosso pintor, preparando-se para a inauguração de uma nova casa, quer dizer, um contentamento interior pleno de alvíssaras. A casa estava contraposta, com seu jardim, aos edifícios e seus apartamentos, feitos como uma colmeia, na frieza e indiferença, sem socialidade, sem vizinhos para conversar. A casa, quase sempre, tem uma narrativa a contar: nos móveis, quadros nas paredes dos ancestrais, no pomar e no jardim. Outrossim, a casa resguarda a sombra de um morto ou mais que um. Quem já viu velório em apartamento? A casa é longeva, é uma herdade ainda habitada pelo seu patriarca, rodeada por casas pertencentes aos filhos, na Rua Coronel João Gomes, 555.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

 

Cartas de Cotovelo (final do inverno de 2025)

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

            Na amplidão de dias vividos, muitos dos quais – os últimos, numa atmosfera de decepções e de saudades, resolvi romper a solidão do meu exílio voluntário e, apesar do chuvisco intermitente da antevéspera do dia da Pátria, e dar um pulo para minha outrora “Passárgada de Cotovelo” e ver como estão as coisas por lá.

            Cheguei na boca da noite, na companhia do meu filho Rocco José e só para arrumação, jantar, televisão e rede. Dormi bem, graças a Deus.


            Na manhã do dia seguinte, a primeira surpresa alertada por João Batista Jota, que dá sempre uma olhadela no imóvel – as orquídeas de Dona Therezinha, minha companheira de 71 anos de convivência, encantada em 31 de março de 2019 - estavam floridas por demais. Eram brancas, vermelhas, róseas e lilases, no contraste com o verde do seu entorno. O coração bateu mais forte! A chuva não deixou que fosse ver o mar e seus encantos. Continuei em casa fazendo o trivial.

            Pelas 9 horas ouvi o programa da rádio Mar e Campo, do meu amigo Octávio Lamartine, que abordou tema importante e atual do uso indevido da internet e da inteligência artificial. Em seguida alegraram-me naquele sábado as visitas da minha filha Rosa Ligia, seu filho Raphael com a namorada Hana e o cãozinho Tel.

Foto em preto e branco de grupo de pessoas na frente de um prédio

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            Amanhece o dia 7 de setembro. Antes de descer para o desjejum, leio alguns livros de cabeceira e, um deles – “Além do Jornal”, do meu amigo e confrade Manoel Onofre Júnior trouxe-me caras lembranças de lugares e acontecimentos próximos à minha existência de jovem, causando-me emoções incontidas, o que motivou um telefonema para o autor para declarar a minha satisfação com a sua obra e parabenizá-lo por tão interessante trabalho. Ele ficou feliz.

            Como persistisse a chuva, tracei o programa de assistir, pela televisão, os diversos desfiles do Dia da Pátria, trazendo-me a memória do meu tempo de estudante, comandando a Banda Marcial do Ginásio Natal do Prof. Severino Joaquim da Silva, percorrendo as ruas da cidade, com cadência e firulas que inventávamos para destacar de outras bandas – Marista, Ahteneu e Escola Industrial, até o desfile oficial. Caminhando mais um pouco, lembrei o 7 de Setembro de 1959, quando estava no Exército Nacional e desfilei na Avenida Deodoro, com ardor e emoção de um esbelto infante que amava a sua Terra Amada.

            Obrigado SENHOR por dias tão ditosos. Que se repitam nos próximos, enquanto percorro o descer da ladeira da vida (86 anos no dia 10), ainda com o propósito de escrever outras Cartas de Cotovelo, com o sentimento de paz e amor.

 A humildade, uma virtude desprezada 

Padre João Medeiros Filho 

Segundo a Bíblia, a humildade é “caminho para a verdadeira grandeza” (Pr 22, 4). Atualmente, ela é pouco vivenciada. Cristo proclamou no Evangelho de Mateus: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). E ensinou que a observância dessa virtude é importante para segui-Lo. Sem dúvida, para vislumbrar a onipotência divina e a condição humana de criatura limitada, é preciso conhecer a própria natureza. O étimo humildade deriva do latim “humus” (terra), significando ter os pés no chão. De acordo com etimólogos, possui a mesma raiz de “homo” (ser humano). Humanidade e humildade são palavras irmãs. O poeta latino Horácio escreveu que “o homem é um ser com os pés na terra, mas os olhos voltados para o infinito.” Ele não deve perder de vista as suas origens: argila plasmada em vida racional pelo sopro divino, pleno de amor. Ao longo dos séculos, a Igreja nem sempre se mostrou humilde. Não raro, aparece historicamente associada ao triunfalismo. Em determinadas épocas, manifestou-se superior, impondo dogmas e verdades, ritos e tradições. Cristo veio propor, e não impor. “Se queres ser perfeito...” (Mt 19, 21), dissera Cristo a um jovem, mostrando que o cristianismo é uma opção de vida. Entretanto, a humildade desempenhou sempre um papel relevante na tradição cristã, desde suas origens. Os santos revelam sinais evidentes de humildade. O monge Antão refere-se a ela como “a primeira de todas as virtudes.” Para Santo Agostinho consiste no “verdadeiro remédio que nos cura”. É considerada pela tradicional Regra de São Bento o caminho de subida para Deus, constando de doze degraus, sendo ela o primeiro deles. Ela tornou-se tema marcante do pensamento cristão. Consta da maioria dos escritos de pensadores católicos, dentre eles, São Gregório Magno e o autor inglês (anônimo) de “A nuvem do não saber.” Os místicos Santa Teresa d´Ávila e São João da Cruz afirmam que a humildade é imprescindível para a gratidão e perfeição espiritual. Mesmo em momentos que possa ter parecido eclipsada pelo poder político-clerical da Igreja, ela continuou a encontrar um lugar de destaque na obra de grandes teólogos e santos, a exemplo de Tomás de Aquino, Boaventura, Francisco de Assis e Inácio de Loyola. Este pretendia, com Os Exercícios Espirituais, levar os fiéis ao grau de santidade, que implica num despojamento interior, no amor a Cristo, na vivência do Evangelho e jamais no pseudo prestígio ilusório que o mundo oferece. A humildade opõe-se ao brilho ilusório da fama e autossuficiência humana. É tema recorrente também na obra de vários autores contemporâneos, como Simone Weil, Emmanuel Mounier e Jean-Louis Chrétien. Tal virtude abrange realismo, verdade, modéstia e simplicidade, destoando de um mundo em que se exalta o poder. Anda na contramão de uma civilização que supervaloriza o ter em detrimento do ser. Distancia-se de uma sociedade que cria ídolos e ludibria indivíduos, pressionando-os a subir sempre mais na escala social para conseguir seus objetivos, mesmo em detrimento de muitos. Uma pessoa simples, mansa e humilde é motivo de discriminação e desdém no mundo de hoje. É considerada sem valor, tola e despersonalizada. Aos olhos de muitos não sabe aproveitar as oportunidades que a vida lhe oferece e se deixa manipular pelos outros. No entanto, é especial para Cristo, que desceu das alturas infinitas para habitar a terra dos homens, deixando a glória celeste para viver a pequenez das criaturas. O orgulhoso afasta-se de suas raízes e perde-se nas estradas da ilusão. O presunçoso repele, enquanto o humilde aproxima. Cabe lembrar Charles Chaplin: “Necessita-se mais de humildade do que de máquinas; mais de bondade e ternura do que de inteligência. Sem isso, a vida se tornará violenta e tudo se perderá.” Os humildes são discretos e mais próximos do caminho da verdade, sabedoria e gratidão. Já dizia Cora Coralina: “O saber a gente aprende com os mestres e livros. A sabedoria se adquire com a vida e os humildes.” É bom lembrar-se sempre do ensinamento transmitido pelo apóstolo Tiago: “Deus rejeita os soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4,6).

domingo, 7 de setembro de 2025

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Texto do Professor Márcío de Lima Dantas





Olympia Bulhões: a casa de morada e seus emblemas simbólicos 

Não te fies do tempo nem da eternidade que as nuvens me puxam pelos vestidos. que os ventos me arrastam contra meu desejo! Cecília Meireles 

1. Olympia Bulhões (Natal, 24.09.1966) tem formação acadêmica em Arte Educação pela UFRN. O fato de ser sobrinha de dois artistas acabou por influenciá-la a lidar com lápis e pincéis, pois convivia com os tios desde pequena. Façamos referência ao que mais a conduziu para que viesse a ser artista visual naïf. Esse artista é Levi Bulhões, ainda em franca atividade, dotado de um papel nuclear no conjunto dos artistas filiados a essa tradução da pintura também chamada primitiva e que no Rio Grande do Norte assoma, ou seja, aparece em grande quantidade e qualidade, em uma plêiade de diferentes estilos, com suas gramáticas pictóricas inerentes à singularidade de cada um. Como não poderia deixar de ser, reverbera dessas estrelas um grande naipe de pintores que atinge um registro de não originalidade, mas lança seus vetores e estéticos para assinaturas universais. 

Para não esquecer de onde veio esse manancial que não para de verter mais pintores vinculados a essa tradição, obrigatoriamente, temos de evocar o nome de Maria do Santíssimo, aquela que foi o prelúdio dessa mina, não cessando de verter a transparente água do arroio. Dessarte, foi ela a naïf que primeiro riscou, no volumoso livro das artes visuais do Rio Grande do Norte, seu nome em um vinco, fazendo uma assinatura involuntária. Sem saber nem do que se tratava, fez saber que, mais do que um prelúdio, também fundava uma tradição, conclamando à posteridade uma espécie de desafio, alentando quem pudesse superá-la, sobretudo no que diz respeito às formas de como germina a potência de lançar o ser para uma vontade de lidar com o simbólico da estética de alguma forma. 

No caso de Maria do Santíssimo, parece ter sido regida por uma espécie de aura que ela continha desde seu despertar para a vida, desde que se fez gente, desde que se fez mulher e desde que casou. Ela passou a, involuntariamente, pintar suas cartolinas distintas de tudo o que há no nosso estado no que tange às artes visuais. Assim, temos de apreciar sua obra e a reconhecer como aquela que lançou para o tempo futuro um pomar capaz de gerar muitos frutos. A seara que lançou as sementes cresceu farta, e hoje temos uma sega com muitos trabalhadores dando respostas, quer dizer, não apenas já temos como ainda continuam a germinar artistas visuais naïfs. 

Quero dizer que, no imaginário do nosso estado, pulsa e reverbera um cabedal de artistas de que talvez poucos estados do Nordeste disponham de registro, nominados de naïfs, de ingênuos, de primitivos, ou como queiram indigitar. O importante é que uns são de razão acesa, qual frágua permanente (como Iaperi Aráujo, registro racional), e outros apresentam padrões estéticos que pontuam suas diferenças (Dona Ivanise, registro intuitivo). 

Assim, outros artistas mesclam o uso da razão com um vocabulário mais ingênuo, pintando com uma paleta plena de sentimentos e emoções. Não disse apenas para comparar mas também para mostrar a riqueza dos tantos pintores elaborando suas singularidades ou mesmo suas universalidades, erguendo-se como prova do que temos de nosso para apresentar a outras nacionalidades ou mesmo às nossas regiões do Brasil. 

2. Acredito que o melhor de Olympia Bulhões sejam as fachadas de casas modestas com seus jardins bem cuidados, plenos de flores e suas diversas maneiras de organizar os detalhes das portas e das janelas. A arquitetura pode ser de grande simplicidade, mas, para um bom observador, fica-se diante de um fato estético, pois cada uma recebe uma diferença na sua fachada como um todo. 

Ao manter-se uma distância, isso acaba por atestar o esmero como foi feita, pois em algumas casas predominam a linha curva, tanto na porta quanto nas janelas. Linhas curvas que desenham a platibanda, causando uma elegância extraída do que nos chega como simples; linhas que emolduram o contorno das portas e janelas, embora haja também pequenas casas de feitura modesta, demonstrando as condições de vida de seus moradores. 

Na verdade, são casas de antigamente, quando não havia tanta violência e as pessoas podiam ficar defronte, debaixo das árvores, varrendo as calçadas, irrigando as plantas, com sua profusão de flores. As casas receberam cores extremamente fortes, puras, o que faz chamar a atenção para também contemplar esse resplende de uma tinta luminosa. 

Com efeito, essas pequenas herdades parecem querer convidar o espectador, conclamando a se viver de maneira mais tranquila, com sossego, sem tanta preocupação com o tempo que sopra sua brisa; esquecendo um tanto as demandas de uma sociedade como a nossa, na qual predomina o narcisismo e o anonimato é combatido. Resta o valor de aparecer a todo custo (com um ridículo copo qualquer na mão). 

As redes sociais demandam ser alimentadas por fotografias o tempo inteiro. O perfil do WhatsApp é mudado de tempos em tempos, para aparecer com um sorriso que só um tolo não percebe a artificialidade: basta observar os dentes, são sempre os mesmos. A felicidade é de plástico.

Falar da casa de morada, principalmente quando lhe pertence, é lidar com sua simbologia, ou seja, com o lugar em que moramos e o modo como arrumamos seu interior, o jardim e o pomar. Isso fala de nossa identidade pessoal, escreve metaforicamente como somos no íntimo, já que a casa detém em si a dicotomia entre o interior e o exterior (a rua). 

A casa, nesse sentido, seria a síntese de uma sintaxe – um meio de organizar os diversos paradigmas (objetos) que selecionamos para viver –, quer dizer, uma dicotomia entre o comportamental do coletivo (o fora) e do pessoal (o íntimo). A casa nunca deixou de deter o simbolismo no qual nos sentimos amparados em um abrigo, no qual descansamos após a jornada do dia a dia, com seus trabalhos e sua rotina. O espírito detém segurança e conforto de sempre ter para onde retornar: alimentação, descanso e as horas de sono no decorrer da noite. Na verdade, o fora parece ser o dentro, uma casa que dispõe de seus objetos funcionais ou de adorno e que acaba por desvelar o imo dos seus habitantes. Então, podemos admirar e resguardar com esmero o lugar onde habitamos, ordenando para uma segurança e para o que sempre se diz: “qual o melhor lugar do mundo?”. Todos sabem a resposta. 

3. Creio que duas telas conseguem se destacar por se dizer algo extremamente banal: lavar roupa dentro de bacias com sabão, quarar uma parte, outra parte pendurar no varal. Há uma tela em que as roupas estão esquecidas em um varal à beira-mar. Não há ninguém. Em outra, estão lavando à beira-rio. Lavar a roupa também é uma alegoria concernente às tarefas da casa. Seria uma forma de, após lavar, passar a roupa para se apresentar socialmente. Neste escrito, tive oportunidade, amiúde, de me reportar ao naipe simbólico da casa e ao que ela representa. Afora esse caráter (ethos) das pequenas e simpáticas herdades, nas quais avultam cores fortes e firmes para reforçar, talvez, o distintivo de ser um símbolo, cujo epíteto nos acompanha desde a infância, há a dimensão funcional, prática. Afinal, não foi feita para adorno. 

4. No conjunto da obra de Olympia Bulhões, quase tudo remete ou deixa implícita a alegoria de objetos e temas vinculados a casa. Vejamos alguns desses referentes: roupa no varal, o jardim irrigado com uma mangueira, o quarto de Câmara Cascudo, louça de Ágata (representação do café da manhã; uma das mais bonitas e criativas telas representando o desjejum), as diversas santas como signo de religiosidade católica (N. Sra. do Livramento), crianças brincando defronte a casa. 

Como podemos ver, quase tudo evoca a casa como um emblema, uma metáfora e seu caráter simbólico de delinear uma identidade pessoal. Ao entrarmos em uma casa qualquer, já conseguimos decodificar uma sequência de elementos referentes a seus moradores. Isso quer dizer: os moradores organizam determinados objetos escolhidos como decoração ou também como lugar de conforto, diferentemente do que ocorre hoje em dia, em que há uma pasteurização meio ridícula de decorar as casas com os móveis que se encontram na moda. As casas são edificadas como se seguissem o mesmo padrão, pouco ou nada fogem dele, quando erguidas com cimento armado, madeira, vidro e determinadas espécies de plantas (não pode ser qualquer uma). Haja vista os condomínios fechados, parecem uma espécie de farda de colégio no seu minimalismo que a nada conflui, sobretudo em um país com forte tradição Barroca. 

Ainda com relação à figuração da casa, mesmo que tenha mudado muita coisa, como a divisão de papéis, de trabalhos no cuidar da casa, os homens ainda permanecem com sua tradição patriarcal de entregar quase tudo à mulher, com sua segunda jornada do dia: o trabalho/emprego e ainda chegar e cuidar da casa, lavar ou passar. Sei que pode não ser a regra, mas ainda persiste o lugar da mulher e o lugar do homem. Lembro aqui a quantidade de telas nas quais a pintora representou a mulher, índice intrinsicamente referenciado ao feminino. 

5. Para efeito puramente didático, isolamos uma marca da pintura de Olympia Bulhões: foi a insígnia da casa e sua simbologia. Esse tipo de interesse concerne à Antropologia Cultural; quero dizer com isso que esse domínio do saber estuda as diversas culturas e suas idiossincrasias, seus costumes, suas formas de se comportar, assim como o jeito de residir em edificações. No nosso caso, foi um estudo de um distintivo relacionado à casa, como se fosse uma Antropologia de nós mesmos, embora a casa dessa pintora tenha funcionado como matriz ulterior, quer dizer, o relato das casas e seus naipes de valor dizem respeito ao passado. 

De fato, a casa como concebíamos antes tinha a ver com o espírito da época (zeitgeist), no qual predominavam formas de ser e de se comportar. Não havia a violência e a insegurança que permeiam hoje em dia. A casa era como se fosse um distintivo onde o indivíduo podia assegurar sua rotina, escanear seu tempo em um ritmo capaz de outorgar tranquilidade, pois não havia tantos intercursos, tanta coisa que impedisse o cotidiano de fluir de acordo com o previsível. 

Verdadeiramente, a casa é o lugar no qual há um palco onde o eu e o mundo exterior reforçam a dicotomia do dentro e do fora, conduzindo o indivíduo a organizar suas emoções, a refletir em seu quarto, a cuidar do seu jardim, a provocar as necessárias rupturas de gente tóxica, a cultivar o necessário silêncio em seu benfazejo sanativo. 

Por fim, faço saber da beleza e do caráter simbólico da obra de Olympia Bulhões, com seu emblema (“o que está colocado dentro”), a casa, organizando as tantas séries produzidas pela pintura denunciadora de uma metáfora subliminar: os muitos significados da insígnia “casa”. Afinal, não precisa ir muito longe, antigamente era o lugar em que nascíamos e passávamos a maior parte da vida. Hoje tudo mudou. Temos a ânsia de morar em apartamentos com sua verticalidade, que também não deixa de ser um símbolo: por um lado, evadir-se do rés do chão, afastar-se das pessoas, não ter a obrigação de conviver com vizinhos; por outro, decorar os apartamentos de maneira exatamente igual, beirando o ridículo, com o morador detendo uma personalidade sem muita diferença dos outros, como se fosse uma série lembrando uma farda escolar.

terça-feira, 2 de setembro de 2025




 CENTENÁRIO DE MÚCIO VILAR RIBEIRO DANTAS


Valério Mesquita

mesquita.valerio@gmail.com



A bondade do dr. Múcio Vilar Ribeiro Dantas promovia-se tanto quanto a sua inteligência jurídica. Foi o eterno consultor geral não só do Estado mas de todos nós, alunos e advogados, ao longo de sua travessia. Foi político, agropecuarista, professor universitário, advogado, mas a sua marca indelével, registrada e intransferível jamais se desligará da figura maior de cultor da ciência jurídica e da cultura humanística que armazenou ao longo do tempo.

Um homem de claridades interiores. De estatura alta, porte elegante, forte sem ser gordo, olhar penetrante e fala pausada, era o nosso professor de Teoria Geral do Estado, dentro da sala de aula, na velha Faculdade de Direito da Ribeira. Constitucionalista profundo, o professor Múcio nos passava, de início, a impressão repentina de um homem rico que pouco ligava com o ensino e o destino dos seus alunos. Era o contrário. Importava-se com o que ministrava. Preparava com esmero o seu plano de aulas e estabelecia longos debates com os seus alunos sobre as ideias e teorias de Rousseau, Montesquieu, Thomas Hobbes, Bossuet, Tocqueville.

A imagem que o dr. Múcio me imprimiu foi a de um homem de bem, bondoso, amigo intransigente e de honestidade pública inatacável. Poderia ter alçado voo mais alto na política quando exerceu o mandato de deputado estadual pelo antigo Partido Social Progressista. Foi contemporâneo do meu pai, Alfredo Mesquita Filho na Assembleia Legislativa, legislatura de 1954 a 1958. O Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal passam, agora, com o seu desaparecimento, a dever um preito de gratidão a esse excepcional homem público que honrou as letras jurídicas, o ensino universitário e a própria vida política, legando um exemplo de honradez e respeito.

Como orador, assisti o professor Múcio dissecar temas jurídicos e humanísticos com primor e elegância, sem cair na vala comum do despautério. Relembro nessas impressões esparsas, o seu vulto de homem modelar e me envaideço, não só por tê-lo conhecido, privado de sua amizade que se estende ao seu filho Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, mas, também, por constatar que um jurista de sua estirpe existiu no cenário da vida pública do Rio Grande do Norte.

No ensejo do seu centenário de nascimento tributo todas as homenagens!

 

 

(*) Escritor




O amor à pátria 

Padre João Medeiros Filho 

A pátria tem um papel relevante em nossas vidas com suas tradições e histórias. O ser humano é visceralmente ligado a seu berço. Apesar da globalização, o interesse pelas nossas raízes aumenta cada vez mais. Os estudiosos de genealogia afirmam que, nesta última década, o desejo de conhecimento dos ancestrais multiplicou. A nação incorpora-se à dignidade da pessoa. Nela nossos antepassados deixaram a sua marca. Ali cresceram, construíram sua trajetória e legaram-nos valores. Tal realidade impulsionamos a amar a pátria. Aí também se inclui a preocupação com os imigrantes. Todos nós somos estrangeiros, enquanto caminhamos para o destino definitivo. “Somos peregrinos e forasteiros, mas em breve, estaremos em nossa casa”, afirma o apóstolo Pedro (1Pd 1, 1). O amor por nossa pátria e a responsabilidade pelo bem comum exigem de nós empenho na construção de uma sociedade mais justa. O povo da Antiga Aliança mostrava gratidão pela terra de seus pais. Várias passagens vetero testamentárias demonstram a predileção dos hebreus pelas suas origens. O Novo Testamento descreve o carinho de Cristo por sua gente, a tristeza e lágrimas, ante o fim iminente de Jerusalém. Amar a pátria significa nutrir carinho pelo torrão onde nascemos, crescemos, estudamos, constituímos família e do qual tiramos nossa subsistência. Implica no compromisso de lutar pela defesa dos interesses e bem-estar de todos. Requer combate à exploração e cuidados para que os governos sejam dignos, honestos e eficientes. Importa alertar contra omissões, privilégios, desrespeito e improbidades, em desfavor da sociedade. O zelo pela pátria, além de denunciar abusos, erros e desvios, implica numa contribuição consciente e eficaz para a construção de boa prática política. Esta deverá ser firmada em valores éticos de promoção e defesa da vida, com atitudes construtivas e não populistas ou demagógicas. Não raro, em muitas decisões há certa confusão entre nação e governos. Santo Tomás de Aquino afirmou: “Assim como é para a religião a adoração a Deus, deve ser a reverência à pátria e à família. É preciso prestar um culto de gratidão à terra que nos acolheu.” O Catecismo da Igreja Católica inclui o patriotismo entre as virtudes. “O amor e o serviço ao país estão na ordem da caridade.” (Nº 2.239). Mas, eles não devem ser desprovidos de uma reflexão crítica. É preciso preocupar-se com o futuro da nação sem esquecer os carentes, excluídos e invisíveis. A situação atual do Brasil é bastante complexa. O esgarçamento do tecido social e político, o radicalismo e a polarização, os bolsões de pobreza, a carência dos serviços básicos e a expansão do crime organizado demonstram o quanto ainda temos a percorrer. Pessoas doentes, famintas e inseguras necessitam e merecem tratamento adequado, justiça e condições dignas. O país requer urgentes mudanças estruturais. Os governantes não podem esquecer deveres primordiais de proporcionar trabalho, educação, saúde e segurança aos cidadãos. O empenho por uma nação socialmente justa não deve ser apenas missão de idealistas. A participação política não se reduz ao simples voto nos pleitos eleitorais, embora seja fundamental. O cidadão, mormente o cristão, não pode deixar de manter vigilância sobre o agir dos políticos e homens públicos. Importa verificar se agem realmente em prol do bem-estar da sociedade. Acontece que muitos defendem apenas os próprios interesses ou as ideologias de seus partidos, consequentemente traindo a nação. Neste Sete de Setembro, rezemos para que o povo brasileiro se conscientize de sua ingente responsabilidade social. Urge cobrar constantemente dos governantes o compromisso com a vida em todos os sentidos e fases. Mister se faz defender a dignidade humana, superar o assistencialismo e as medidas paliativas. É indispensável criar condições favoráveis para um ensino de qualidade, trabalho digno para todos, habitação, saúde e segurança. É isso que precisamos desejar para o Brasil neste 203º aniversário de sua independência. Olhemos para o passado, sonhando com um futuro melhor. Em seguida, comprometamo-nos com atitudes concretas, visando a uma nação equânime e fraternal. Queira Deus seja este o objetivo precípuo de todos os agentes públicos. Com muita fé, supliquemos ao Senhor, repetindo a prece, após a bênção do Santíssimo Sacramento: “Dai ao povo brasileiro, paz constante e prosperidade completa.”

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

 NEY LOPES DE SOUZA


Valério Mesquita*

Conheço-o há mais de cinquenta anos. A amizade remonta ao tempo do Colégio Santo Antonio dos irmãos Maristas. Concluímos juntos os cursos primário, ginasial e secundário. Na Faculdade de Direito de Natal fomos contemporâneos. Ele bacharelou-se em 1967 e eu ano seguinte. Servimos também ao governo de Cortez Pereira. Acompanhei depois à distância, a sua trajetória jornalística, a vivência universitária até vê-lo deputado federal por vários mandatos. Somente votei nele uma vez. No caminho político que escolhemos haviam diretrizes partidárias diferentes. Mas, jamais deixei de admirar a sua luta, a inteligência e o brilho da palavra. Desde o tempo da Arcádia Natalense do Marista revelava pendores oratórios. Todos vaticinavam-lhe futuro político.
Dito isto, quero me referir ao noticiário tempos passados que assisti numa emissora de televisão classificando o deputado Ney Lopes de Souza como o campeão de faltas das sessões da Câmara Federal. A reportagem não atentou para o fato do seu desempenho como presidente do Parlamento Latino Americano, cargo importante no cômputo geral dos parlamentos sul americanos. É o terceiro brasileiro a presidi-lo com muita honra para a própria Câmara, o Brasil e o Rio Grande do Norte. O exercício desse mandato exige a presença constante em países do continente e fora dele pelo caráter representativo e da própria liturgia de suas responsabilidades. Frize-se, igualmente, sem qualquer ônus para o Congresso Nacional nem para o governo brasileiro. Por que, então, a colocação perfídiosa e maledicente?
A vida pública exige, muitas vezes, sacrifícios aos protagonistas. É verdade que para uns e outros não. Como político e advogado Ney sempre palmilhou uma conduta de respeito ao povo norte-riograndense. Na história da Câmara, quando muitos se conspurcaram num mar de lama, jamais se ouviu falar dele como envolvido em maracutáias. Ao longo do tempo, sempre manteve coerência e fidelidade partidária, ao ponto, de sacrificar postulações para ser candidato a senador ou a governador de sua terra. Exerceu os mandatos com serenidade e equilíbrio. Foi considerado pelos repórteres políticos de Brasília e do sul do país como uma das cabeças pensantes do parlamento brasileiro. Sempre soube, de forma altiva, enfrentar as adversidades políticas que, na maioria das vezes, a implacável servidão partidária.
Ao tecer tais considerações, eu o faço não por razões políticas porque não mais as alimento, mas, por sentimento de amizade fraterna. E de revolta também. Percebo que a solidariedade não chegou de pronto da parte do seu mundo político aqui no Rio Grande do Norte ante a injustiça flagrante cometida pela desinformação. Ney Lopes de Souza integrou o alto clero da vida pública brasileira. Tanto assim, que ao escolher o nome do nosso conterrâneo Luís da Câmara Cascudo para patrono de um prêmio internacional do Parlatino, agiu com coragem e amor ao Rio Grande do Norte. Outros países que compõem a instituição imaginaram um Jorge Luis Borges, um Pablo Neruda, um Vargas Losa, um Gabriel Garcia Marques mas Ney pensou e decidiu por Cascudo. Poderia, também, sofrer pressão para escolher Carlos Drummond de Andrade, Eríco Veríssimo, Roberto Marinho para bajular a Globo, Gilberto Freire, além de outros ilustres nomes. Mas, elegeu Cascudo. Esse homem merece respeito.
(*) Escritor.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

 Modismos e redundâncias 

Padre João Medeiros Filho 

A pedido de leitores, volto ao tema. Está em moda citar “todos e todas”, “irmãos e irmãs” etc. Uma redundância desnecessária. A duplicidade de termos nada acrescenta à natureza ou personalidade dos indivíduos. Pelo princípio gramatical, em português, o masculino plural abrange o feminino. Por outro lado, nosso idioma pátrio não herdou a figura do gênero neutro latino. A reação equivocada de certos falantes a esse dado histórico e estrutural de nossa língua deu azo a neologismos e modismos. Por outro lado, segue-se a onda do “politicamente correto”, que invadiu discursos e falas nas últimas décadas. Seus adeptos encarregaram-se de divulgar tais ideias, tentando mudar a linguagem para minorar a exclusão social, um dos problemas não solucionados pelo poder público. E há quem se empenhe, a todo custo, para incluir a linguagem neutra. Algumas propostas de neologismos afogaram-se na própria ridicularidade. Por exemplo, chamar os carecas de “capilarmente diferenciados” é uma dessas tolices. Outras invadiram o nosso vocabulário e o modo de pensar ou falar. Por vezes, nem sequer se dão conta desse contrassenso. Por exemplo, o substantivo velhice começou a ceder espaço ao eufemismo “terceira idade”, que, em seguida, viu-se substituído por uma formulação apatetada de “melhor idade”. É inegável que alguns termos e expressões contêm carga depreciativa, laivos de racismo ou preconceito. “Quem se descuida do falar, causa a própria ruína” (Pr 13,3). De volta à questão de irmãos e irmãs, todos e todas, brasileiros e brasileiras (como José Sarney iniciava seus pronunciamentos presidenciais e programas radiofônicos), o modismo adquiriu o status de “linguagem inclusiva”. Esta reveste-se, por vezes, de uma roupagem governamental, protegendo-a e tornando seu uso corrente em várias esferas administrativas. Tais ideias conseguem penetrar na comunicação religiosa, até na liturgia sagrada. Veja-se o convite na missa: “Orate fratres.” O texto oficial latino não contém a palavra irmãs (“sorores”). Mas, foi traduzido para o português do Brasil como “Orai, irmãos e irmãs.” Tal linguagem, denominada inclusiva, reveste-se de um caráter redundante e populista. Daí, o sucesso junto a cultores dessa vertente e aos que colocam a verdadeira inclusão social apenas nas palavras e não em sérias e autênticas políticas públicas. Vale a pena encher nosso idioma de redundâncias, pleonasmos e penduricalhos? Não seria melhor combater na raiz as reais discriminações e exclusões que causam tanto dano à sociedade? Cabe lembrar ainda que essas falas, ditas de inclusão, contrariam o acordo ortográficolinguístico internacional, firmado pelos países lusófonos, do qual o Brasil é signatário, sendo obrigado a observá-lo. Como o conhecimento do latim faz falta! É preciso ter o cuidado de observar a norma culta do português, “a última flor do Lácio”, tão agredida em sua beleza. Há outro modismo fartamente usado pelos operadores do Direito e na Mídia. Trata-se do vocábulo “feminicídio”, empregado em oposição a homicídio. Este significa o assassinato de qualquer ser humano e não apenas de um varão. A palavra latina “homo” não indica a masculinidade, mas toda pessoa humana. Feminicídio trata-se de um termo impróprio. Ele indica etimológica e semanticamente a destruição do gênero feminino, e não de uma mulher. Aplicando-se a mesma regra proposta, ter-se-ia masculinicídio, morte do masculino. Consoante os lexicógrafos, matar uma fêmea é muliericídio (ou mulhericídio) e não feminicídio. Assassinar um macho é viricídio. Matar a esposa é uxoricídio, exterminar o marido é mariticídio. Feminicídio é termo inadequado para indicar o assassinato de uma mulher, apesar do enunciado da Lei 13.104, Art. 1º, VI. Entretanto, hoje é usado abundantemente, ao arrepio da gramática e linguística. Por razões ideológico-políticas, tenta-se evitar o uso do termo homicídio, que significa assassinato de uma pessoa humana de ambos os sexos. O referido étimo dispensa qualquer outra palavra, exceto se houver necessidade de tipificar o assassinato. Nestes casos usam-se os termos técnicos e científicos acima elencados. A motivação para o emprego de feminicídio não é linguístico-gramatical, e sim política, atentando-se contra o português histórico e clássico. Reza o salmista: “Livra-me e tira-me do poder daqueles cuja boca profere palavras incorretas” (Sl 144/143, 10). O profeta Isaías já advertia seus contemporâneos: “Os que te guiam podem te enganar e destruir o caminho dos teus passos.” (Is 3, 12).

 

PALAVRAS DE AGRADECIMENTO PELOS SESSENTA ANOS DE SACERDÓCIO

Faço minhas as palavras de Maria Santíssima, extasiada diante da graça divina: “O Poderoso fez por mim grandes coisas, Santo é o seu nome” (Lc 1, 49). O Evangelho não é mera narração histórica. É presença da eterna novidade de Deus, falando ao coração do homem. Em Belém, Nossa Senhora testemunhou a inefável gratuidade do Pai, ao ver na pessoa de seu Filho, o Messias tão esperado, presente na singeleza da Criança, deitada na manjedoura. Análogo mistério se manifestou, há sessenta anos, quando, pela imposição das mãos episcopais, a Igreja me ungiu, indigno servo, um “alter Christus” (outro Cristo). Digo como o poeta Murilo Mendes: “Eu te proclamo grande, ó Deus, não apenas porque fizeste esta terra imensa com rios e florestas, o sol para presidir o dia, a lua e as estrelas para iluminar a noite. Eu te proclamo grande e admirável eternamente, porque Tu te fazes pequeno na Eucaristia para caber no menor dos corações humanos.” E, um dia, em sua inefável bondade, Deus me escolheu como ministro de tão augusto mistério.

Esta celebração convida-me a penetrar na profundidade do Eterno e descobrir o recado do Infinito. A vida sacerdotal tem a missão de desvelar a transcendência e a beleza do Sagrado, mostrando que Deus escolhe vasos de argila para conter o tesouro de sua graça (cf. 2Cor 3, 10). O padre deverá sentir a sede do Absoluto no cotidiano da existência. Hoje, cabe-me agradecer como o poeta bíblico: “Em toda minha vida, jamais esqueci os teus preceitos. Pertenço a Ti, Senhor; sê meu apoio e viverei” (Sl 119/118, 93-94).

Sou da geração de padres ordenados durante o Concílio Vaticano II. Fui formado no contexto do eixo teológico Bélgica-Holanda, liderado pelo Cardeal Léo Suennes. Deste, ouvi na homilia da Missa de ordenação de meus colegas de turma este conselho: “Não sejam burocratas do sagrado, nem funcionários do espiritual. Estejam sempre abertos às surpresas de Deus. Anunciem o eterno Amor.” Dom Alberto Houssiau, bispo emérito de Liège, nosso professor, ensinava-nos: “É preciso que o padre seja reto no pensamento, exemplar na ação, discreto e útil com a sua palavra; próximo de todos com a sua compaixão; dedicado ao estudo e à contemplação; aliado de quem faz o bem, terno e compreensível com os que erram, transparecendo a misericórdia de Deus.” No entanto, há quem queira ser paladino de pautas meramente sociais, como se o Evangelho fosse uma ideologia ou teoria sociológica. Existem ainda os arautos da intransigência e do radicalismo, que se consideram donos das bênçãos divinas. A verdadeira mística sacerdotal brota da vivência do Evangelho, marcada por presença, escuta e compaixão. Jesus ouviu mais do que pregou. E, porque soube escutar, perdoou a muitos.

Ao longo desses sessenta anos, tento viver com despojamento o sacerdócio. Guardo as palavras de meu saudoso colega Michel Quoist, semanas antes de minha ordenação: “Os fiéis perdoam as fraquezas de seus padres, mas desaprovam os que se apegam ao dinheiro e ao poder.” Entendo como missão do sacerdote servir sempre à Igreja e nunca se servir dela. Meu desejo é ser um padre simples. Isto me basta. Meu jeito de ser não deverá ofuscar a presença terna de Cristo. Antes de eu ser padre, papai pediu-me para ter uma profissão leiga a fim de não pesar ao Povo de Deus. Por isso, sempre tirei meu sustento do fruto de meu trabalho civil. Tomei consciência do que pregava o apóstolo Paulo: “Trabalhei, noite e dia, para não vos ser pesado” (1Ts 2, 9).

Procuro fazer da Missa minha alegria e meu ápice. A saúde não permite mais celebrar a Eucaristia, como a presidi pela vez primeira. Mas, mesmo em cadeira de rodas, ando com o coração e a mente, conservando o entusiasmo e ardor de seis décadas passadas. Hoje, diante do meu bispo, a quem estimo muito, agradecendo sua atenção para comigo e a presidência desta liturgia, expresso meu profundo amor e obediência à Igreja, pedindo perdão pelos meus pecados e fraquezas. Como herança, deixarei a todos a alegria e felicidade que sinto no Altar, fonte de incomensuráveis favores divinos.

Agradeço aos que me ensinam a ser padre. Aos bispos e irmãos no ministério ordenado aqui presentes, obrigado pelo privilégio de sua amizade e complacência, quando sou fraco e pecador. Grato sou às queridíssimas religiosas deste Mosteiro que me tocam pela sua simplicidade e vivência do voto de pobreza, impulsionando-me para Cristo no Sacrário. Aos irmãos que frequentam esta comunidade, muito obrigado pela paciência e caridade com que me suportam. Perdão por minha desatenção e eventuais incompreensões.

Não seria justo se não agradecesse a minha família, meus formadores, médicos, fisioterapeutas, colegas de instituições acadêmicas e culturais, e amigos. Neste dia, uma palavra de profundo reconhecimento aos meus irmãos por afeto e adoção, que cuidam de mim, por muito mais da metade de minha existência. Saudade do meu irmãozinho deficiente visual, o qual me provava que se vê melhor com os olhos da alma. No ano passado, ele foi contemplar a face de Deus. Uma palavra de gratidão a Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, que me batizou, na Matriz de Jucurutu. E, mais de duas décadas depois, ali mesmo, no dia da minha ordenação sacerdotal, ao beijar minhas mãos ungidas, dissera-me: “Joãozinho, evangelizamos mais de joelhos, pela escuta, com ternura, alegria e oração, do que com nossos sermões.” A Dom Manuel Tavares de Araújo, gratidão por tantos ensinamentos e por ter me recomendado, após ungir minhas mãos: “Padre João, tenha um olhar compassivo para todos. O sacerdócio do qual você foi investido não lhe pertence, é dos cristãos. Seja sempre um irmão de todos. É o que os fiéis esperam de você.”

Amigos e irmãos, grato lhes sou. Continuem rezando por mim, até quando Cristo me chamar à sua presença celeste. Deus me torne lúcido para poder rezar diariamente, como Santo Inácio de Loyola: “Tudo o que tenho, foste Tu que me deste, a Ti devolvo. Tudo é teu, podes dispor. Concede-me teu amor e tua graça. Isso me basta.” Direi como Santo Agostinho: “Um dia, Tu me chamaste e me tocaste. Por isso, sinto fome e sede de Ti. Vivo constantemente no desejo de tua paz!” Meus irmão e amigos, a Cristo prometi um dia servir por toda a minha vida. Deus abençoe todos! Amém.

Mosteiro de Sant´Ana, em Emaús, 25 de agosto de 2025

PADRE JOÃO MEDEIROS FILHO

 


quinta-feira, 14 de agosto de 2025

 

Assunção de Nossa Senhora

Padre João Medeiros Filho

A solenidade da Assunção de Nossa Senhora é celebrada na liturgia católica, no dia 15 de agosto. Entretanto, no Brasil, a festividade foi transferida para o domingo subsequente à data. O culto à Virgem elevada ao Céu é um dos mais antigos do catolicismo, remontando ao século V. Em 1º de novembro de 1950, pela Bula “Munificentissimus Deus”, o Papa Pio XII proclamou o dogma da Assunção, declarando: “Terminada a sua peregrinação terrena, Maria foi assunta ao Céu em corpo e alma.”  

Os teólogos divergem sobre a morte biológica da Mãe de Jesus. Alguns acreditam e ensinam que Ela não morreu. Partem do argumento de sua Imaculada Conceição. Se por dádiva divina foi preservada de todo o pecado e gerou o Filho de Deus, não deveria perecer, como os demais seres humanos. Outra corrente teológica afirma que a morte, enquanto término da vida terrena, tornaria a Mãe Celestial semelhante a seu Unigênito. Por essa razão, Ela haveria de passar por tal momento, pois Cristo, o Senhor da Vida, aceitou padecê-lo. Os defensores dessa teoria acreditam que a Corredentora faleceu, mas foi poupada da degradação corporal, consequência do pecado. Assim seu corpo, “primeiro sacrário de Cristo”, segundo expressão de São João Paulo II, não se corrompeu. O Magistério da Igreja preferiu não entrar no mérito dessa questão, considerada menos relevante por certos teólogos. A Virgem Santíssima desempenhou um papel fundamental no cristianismo e por isso merecia ser arrebatada por Deus para a glorificação imediata. Seu corpo santo e puro, exemplar da beleza do ser humano, criado pelo Pai nos primórdios da história, não poderia ser destruído. A “imagem resplandecente do Deus vivo e seu rosto materno na terra”, consoante São Boaventura, deveria brilhar imediatamente na Eternidade.

A Assunção de Maria Santíssima é motivo de ufania para os cristãos. Elevada ao Céu, torna-se ainda mais nossa intercessora. Daí, o orago de Medianeira das Graças. Deus distinguiu a Genitora de Cristo e Nela a criatura humana foi exaltada. Assim, entende-se o merecido título de Nossa Senhora da Guia ou da Glória. Seu corpo imaculado, após a peregrinação terrena, foi transportado ao Céu, enquanto primícias dos justos. É significativo o louvor que se presta à Virgem Santíssima, denominando-a de Nossa Senhora da Vitória ou do Paraíso, como a invocam os cristãos greco-melquitas.

Maria é ícone e esperança de quantos aspiram por liberdade e vida, alegria e paz. É garantia de que Deus nos reserva a beleza da Eternidade. É a certeza do amor incomensurável de seu Filho, que nos resgatou e morreu para nos libertar. Não gozamos do privilégio de ser arrebatados ao Céu em corpo e alma, imediatamente após a nossa morte. No entanto, podemos elevar a Deus o espírito para que seja tomado pela sua graça infinita. A Virgem de Nazaré ensina-nos que o Onipotente opera em nós maravilhas. Ela está ao lado de seu Filho para interceder por nós. Aquela que foi alçada à eterna morada, em corpo e alma, convida-nos a levantar a cabeça, acima das míseras tentações do mundo.  A Assunção de Maria não é um sonho, e sim a esperança de todos os cristãos de que um dia o Pai nos chamará para a glorificação. Maria Assunta ao Céu é a conclusão de sua existência, desfecho inevitável da pureza e santidade, do amor e fidelidade ao Deus da Vida.

A Assunção da Mãe de Jesus é fruto de toda uma trajetória dedicada ao plano de Deus, que deseja a libertação para o seu povo. Maria é penhor de quantos aspiram por paz e liberdade. Ela, por Cristo, mostra-nos o caminho que leva a Deus, nossa origem e destino.  O Pai Celeste não esquece seus filhos, nem os abandona. Exalta-os e recompensa pela fé. Nossa Senhora indica-nos como viver a peregrinação terrena, não obstante as dores e provações. Acreditou num mundo novo, o qual começa com o nascimento de seu Filho e vai se tornando concreto, à medida em que cresce a consciência da necessidade de amor e fraternidade, diálogo e serviço.  Maria coloca-se como um instrumento nas mãos de Deus. “O Todo-Poderoso fez por mim grandes coisas, santo é seu nome” (Lc 1, 49).