Crônica/artigo publicada na Tribuna do Norte (de Natal/RN) de
domingo passado:
Ainda o juridiquês (II)
Na semana passada, conversamos aqui sobre os significados das
expressões latinas “stare decisis”, “ratio decidendi” e “obiter dictum”, que
estão relacionadas, umbilicalmente, à teoria dos precedentes judiciais. Hoje,
conforme prometido, vão mais algumas observações sobre o “juridiquês” dessa
área do direito, atualmente tão badalada no Brasil, especialmente sobre o
vocabulário das técnicas utilizadas para a não aplicação de um precedente que,
à primeira vista, deveria ser seguido. Refiro-me a expressões como
“distinguishing”, “per incuriam”, “overruling” e por aí vai.
Bom, comecemos pelo termo inglês “distinguishing”.
Como se sabe, um precedente judicial pode ser seguido em um caso
posterior por possuir considerável poder de persuasão. Apesar de não possuir
caráter cogente, dada a excelência do seu fundamento, é aprovado e seguido no
caso posterior. De outro lado, um precedente deve, em regra, ser seguido se,
verificada a hierarquia das cortes envolvidas, estão presentes os lineamentos
da doutrina do “stare decisis” (segundo a qual, as decisões anteriores sobre
determinado assunto devem ser seguidas, em casos posteriores similares, como
precedentes obrigatórios).
Todavia, mesmo no segundo caso, a própria doutrina do “stare
decisis”, desenvolvida com o passar dos anos pela tradição do “common law”
(quanto a essa expressão, vide, entre outros, os artigos “Os vários
significados da expressão common law” e “A formação do common law inglês”),
prevê técnicas ou circunstâncias que, cuidadosamente analisadas, implicam a não
aplicação do precedente, muito embora, à primeira vista, pareça ser ele de
seguimento obrigatório.
Ao que parece, das técnicas utilizadas para não aplicação de um
precedente, a da distinção entre os casos - ou seja, do(a) “distinguishing” - é
a principal ou, ao menos, a mais comum. Não é difícil entendê-la. Em linhas
gerais, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado
nível de generalidade, não coincidem com os fatos fundamentais do caso
posterior em julgamento, os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz
do caso posterior, como distintos. Consequentemente, o precedente não será
seguido.
Registre-se que, embora, por razões óbvias, com maior relevância
quanto aos precedentes obrigatórios, “o processo de distinção é importante,
porém, não apenas como o único meio de se evitar um precedente ameaçador que é
obrigatório, mas igualmente como um meio de se evitar um que seja de autoridade
meramente persuasiva”.
Posto isso, passemos à expressão latina “per incuriam”. O que
danado ela significa?
A definição mais corriqueira de (decisão) “per incuriam” diz que
uma decisão é assim considerada quando foi dada na ignorância de um precedente
obrigatório ou de uma lei relativos ao caso.
Mas é fundamental lembrar que somente o fato de um precedente
obrigatório ou uma lei não terem sido referidos no julgamento, ou mesmo não
terem sido discutidos totalmente, não basta para caracterizar uma decisão como
“per incuriam” (o que a definição acima feita poderia dar a entender). É
necessário ficar caracterizado que, se a corte tivesse tido ciência do
precedente ou da lei, teria, certamente, chegado a uma conclusão diversa no caso.
E eis o mais importante: as decisões “per incuriam” não constituem
precedente que deva ser seguido em casos futuros.
Por fim, cuidemos do vocábulo inglês “overruling”.
De fato e de direito, a doutrina do “stare decisis” não exige
obediência cega às decisões dos casos anteriores. Ela sugere - e com muita
ênfase - que os juízes se abeberem da sabedoria do passado, mas permite, em
alguns casos, que se afastem do que considerarem incorreto. Um dos mecanismos
utilizados para tanto é denominado, pela literatura jurídica anglo-americana,
precisamente, de “overruling”, que, fazendo um paralelo com a lei em sentido
estrito, pode ser traduzido como “revogação” de um precedente.
Para sermos mais precisos (e talvez um pouco mais chique, bem ao
estilo do juridiquês besta), eis como o “(The) Oxford Companion to Law” define
o tal “overruling”: “A atitude de uma corte superior de estabelecer que um
precedente ou decisão anterior de uma corte inferior, posta a seu conhecimento,
era uma afirmação errada do Direito e não deve mais ser considerada como
precedente. A Supreme Court dos EUA, há muito tempo, e a House of Lords, desde
de 1966, têm o poder de rejeitar suas próprias decisões anteriores (...)”.
Bem, evidentemente, haveria ainda muito mais o que falar sobre o
vocabulário dos precedentes judiciais. Mas basta de “juridiquês”. Ô troço
chato!
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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