quinta-feira, 3 de julho de 2014


Marcelo Alves
Marcelo Alves
Artigo publicado domingo passado no jornal Tribuna do Norte:
Kelsen e “sua” corte

Sobre Hans Kelsen (1881-1973), talvez o maior jusfilósofo do século XX, eu já escrevi aqui. Lembro-me bem de duas crônicas/artigos, “Sobre Kelsen” e “O desenrolar do controle concentrado”, publicadas, respectivamente, em setembro e outubro de 2012. Passado esse tempinho, homenageio o grande jurista de Viena iniciando pela Corte Constitucional da Áustria a pequena série de crônicas que pretendo escrever sobre as mais famosas cortes constitucionais do mundo.

Nada mais justo. Afinal, Kelsen e o seu país de “origem” (ele nasceu em Praga, em 1881, à época parte do Império Austro-Húngaro) estão na vanguarda do controle de constitucionalidade das leis como hoje conhecemos.

A Áustria, com a Constituição Federal de 1º de outubro de 1920, inspirada nas lições de Kelsen, é pioneira na previsão de um órgão especial, ali denominado de “Corte Constitucional”, especialmente vocacionado para o controle concentrado de constitucionalidade dos atos normativos (embora alguns defendam a anterioridade da Checoslováquia, com a Constituição de 1920, que adotou uma instituição comparável àquela experimentada na Áustria). De toda sorte, é lícito afirmar, porque convencionado, que ali, na Áustria, surge o modelo de controle concentrado ou continental-europeu de controle de constitucionalidade das leis, sob nítida inspiração em Kelsen. Mais como ponto de chegada do que de partida, é verdade, tendo em vista esboços e modelos pensados anteriormente a Kelsen e as inúmeras tentativas (exitosas ou não), após a Primeira Guerra Mundial, de adoção de modelos de constitucionalidade realizadas por constituições de diversos países europeus.

Evidentemente, a Corte Constitucional austríaca, desde sua criação, passou por vários momentos: entre outros, as reformas de 1925 e 1929, a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938 e as reformas de 1975 e 1981. O próprio Kelsen, o que é certamente um “momento”, foi membro da Corte entre 1920 e 1929.

Nos moldes atuais, a Corte, incluindo o seu Presidente e o Vice, é composta por catorze membros titulares (com seis suplentes), designados pelo Presidente da Federação. Oito por proposta do Governo Federal (entre eles, o Presidente e o Vice-Presidente da Corte), três por proposta do Conselho Nacional e três por proposta do Conselho Federal. A vitaliciedade é garantida pela Constituição, com aposentadoria compulsória no dia 31 de dezembro do ano em que o juiz completa setenta anos de idade.

Apesar de possuir várias outras atribuições, seja de natureza jurisdicional, seja de natureza administrativa ou política, a principal atribuição da Corte Constitucional austríaca é o controle abstrato e concreto de constitucionalidade das leis (à luz do art. 140 da Constituição Federal austríaca). No modelo austríaco, explica Jorge Miranda (em seu famoso “Manual de direito constitucional”), há uma Corte Constitucional nascida para “exercer fiscalização abstrata, principal e por via de acção (pública, popular ou directa dos cidadãos) e intervindo, mais tarde (desde 1929 na Áustria e depois noutras constituições), também na fiscalização concreta mediante a subida obrigatória das questões de inconstitucionalidade suscitadas nos tribunais a quo”.

Para manter coerência com as lições do inspirador do sistema, Hans Kelsen, que falava da Corte Constitucional como um “legislador negativo” (que “revoga”, “desconstitui”, com uma lei nova a lei anterior), as decisões da Corte austríaca fruto dessa competência possuem, em regra, efeitos erga omnes, vinculantes e ex nunc.

Aqui, é fundamental frisar, porque é uma importantíssima exceção à regra geral (de retroação dos efeitos), que, no modelo austríaco puro, as decisões da Corte Constitucional austríaca não possuem efeitos retroativos. Na verdade, já dizia Calamandrei (em sua obra “Direito processual civil”), o provimento de inconstitucionalidade de uma lei, “pela natureza de seus efeitos, pode-se distinguir em declarativo ou constitutivo, segundo que o pronunciamento de ilegitimidade opere como declaração de certeza retroativa de uma nulidade preexistente (ex tunc), ou bem como anulação ou ineficácia ex nunc, que vale para o futuro, mas respeita do passado a validez da lei legítima”. E, definitivamente, essa opção da (des)constitutividade da decisão (ex nunc, portanto) não foi a adotada na grande maioria dos outros países.

Sendo bem preciso, as decisões da Corte Constitucional austríaca no controle de constitucionalidade são, em regra, (des)constitutivas. Afirmada (anulada) uma lei como inconstitucional, estarão vinculados obrigatoriamente todos os tribunais e órgãos da Administração. A lei continuará, entretanto, sendo aplicada às situações de direito ocorridas antes da anulação (fruto da decisão da Corte), com exceção daquela que tenha, eventualmente, dado azo à decisão.

Para finalizar, é importante registrar que essa eficácia temporal pode ser alterada (modulada) pela própria Corte Constitucional. A realidade impõe certos temperamentos à regra da prospectividade (ex nunc), usufruindo a Corte Constitucional hoje de poderes para, excepcionalmente, por exemplo: (i) atribuir à decisão eficácia retroativa, mas não atingindo casos julgados nem atos administrativos já praticados; (ii) fixar uma data pretérita para marcar o término da vigência da lei, que se aplicará a todos os fatos que se consumaram antes desse termo estabelecido; (iii) ou mesmo atribuir uma data futura para a vigência da anulação.

A pergunta que fica é: o que Kelsen acharia desses “novos” poderes da “sua” corte?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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