RECORDAÇÕES & SAUDADES
(CIRO TAVARES)
Aglomeração
e Personagens
PARTE
I
A
cidade era pequena e dormia cedo e no Grande Ponto, fora alguns notívagos como
João Cláudio de Vasconcelos Machado, ex-presidente da Federação Norte Rio-grandense
de Futebol,,bem antes das 10 horas da noite, aquele pedaço de rua estava esvaziado.Durante
o dia, principalmente nos finais das manhãs, das tardes e depois do jantar. A
movimentação era grande e em momentos diferentes. As notícias, os boatos, as
fofocas rolavam de boca em boca, nas mesas da Cisne e do Botijinha, nos balcões
dos cafés e nas rodas dos grupos formadas espontaneamente.
Lembro-me
bem do “Liliu” e da “Maria Mula Manca”, David Varela, François, Ranulfo, Nilson
Fernandes, o ”farol”, Oscar Lins, Severino Galvão, Luizinho doblecheque, José
Maria Guilherme, Zé Areia, Pelúsio Mello, Veríssimo de Mello.
A
vida chegava fácil. E quem, da minha geração, não passou pela universidade do
Grande Ponto, não conheceu a alegria e as delicias da cidade e não viveu.
PARTE II
LILIU,
UM MARACATU INESQUECÍVEL
Era magro, alto, cabeleira volumosa,
cuidadosamente penteada para trás. Óculos de grau na barata armação de
tartaruga e sem profissão definida. Já o conheci maduro, os pelos brancos e
negros misturados no bigode aparado. Falava alto, rápido, olhando de lado. Era
ardoroso torcedor do América Futebol Clube, o que nos distanciava quilômetros, dada
a minha paixão abecedista, orgulhoso canguleiro que sou.
Não posso imaginar do que vivia e onde morava.
Diziam ser ele um profissional de jogos de azar. Algumas vezes pude vê-lo
colhendo apostas dos “clientes” que arriscavam nos números dos animais da
contravenção.Quem sabe uma espécie de corretor comissionado de algum bicheiro.
No salão de sinuca estava sempre desafiando, oferecendo vantagem na pontuação
até encontrar um incauto. Depois de depená-lo saía a vangloriar-se. Suas
atuações tinham plateia, divertida com seus trejeitos e ironia dos comentários
feitos durante a partida.
Toda araruta tem seu dia de mingau. Com
Liliu não foi diferente. Um dia, na vida que vivemos há sempre a fatalidade de
um dia. E esse chegou ao nosso personagem. Um paraibano de Campina Grande
apareceu pelo salão. Ninguém dava nada por aquela figura esquelética, pálido,
cigarro de espantar mosquitos pendurado no canto da boca e dizendo ser bom de
sinuca. Um estrangeiro contando lorota no nosso terreiro precisava tomar uma
boa lição. Questionado se jogava apostando, confirmou. A notícia correu e logo
Liliu foi informado. Na primeira partida, um bom dinheiro na caçapa, o visitante
perdeu e cantou para uma segunda, valores dobrados, voltando a perder. Liliu
esfregou as mãos pensando consigo mesmo: “Ganhei a semana com esse pato”.
Tivesse parado ali, certamente estaria
certo. No entanto sentiu necessidade de ir com sede ao pote. Mais uma? O
paraibano veio pesado e provocou: Ou tudo ou nada. Liliu, olhos de abutre, para
não ficar por baixo sugeriu adicionar algo mais para engordar a bolsa. O
adversário, com seu jeitão de lambisgoia, abriu a carteira e arrastou o que tinha.
O nosso herói limpou os bolsos da calça e acompanhou a pedida ainda permitindo
que o contendor iniciasse. Foi seu Waterloo. Na primeira e única tacada, saindo
pela bola cinco, o estranho matou todas as bolas. Era um craque, um campeão. A
plateia estupefata viu o suor aflorar no rosto de Liliu e a tremedeira das
mãos, ao pronunciar gaguejando: “Esse cara é um cabreiro”. Deixou o ambiente
rapidamente para recompor-se com a água gelada e o café pequeno do Botijinha.
PARTE III
OS GALHOFEIROS.
PARTE III
OS GALHOFEIROS.
No Grande Ponto, nos domingos de carnaval, pelas 09 horas, faltava chão. Zé Areia, cabeça raspada, bermuda surrada, camiseta regata e faixa de Rei Momo, protestava contra a escolha do mítico personagem real feita pela municipalidade. A plateia açulava e Zé Areia, irreverente, espirituoso e desbocado era o espetáculo. Já meio barro, meio tijolo por conta da cachaça, cedia a cena para Zé Herôncio, Roberto Freire, Luís de Barros, acolitados por Cancão, o motorista da mais absoluta confiança, que chegavam para inaugurar o edifício RIAN, homenagem do empresário Amaro Mesquita à D. Nair, sua esposa.
As promessas da construção do prédio eram constantes. No entanto um tapume, da esquina da Avenida rio Branco, ao café São Luiz, protegia o terreno que permanecia intocável com seus pés de urtigas e carrapateiras. A demora na edificação permitia que Zé Herôncio e companheiros armassem o cenário na frente da Casa Vesúvio, procedendo a solene inauguração, com o corte da fita simbólica, benção do local, generosos brindes levantados meio aos discursos incrivelmente irônicos. E isso só terminou quando, realmente, o Rian foi entregue á cidade, onde se instalaram no térreo a Confeitaria Cisne, dos irmãos Miranda, e na sobreloja o Salão Bom Jesus, do Antônio Guedes.
Não demorava o entreato e logo o espaço era ocupado pelo desfile do Bloco do Jacu. Surgia quase de surpresa, talvez de algum acesso lateral à Rua João Pessoa. Um carroceiro, fantasiado como se fosse o general da banda, conduzia seu transporte na direção da Praça Pio X. Atrás, iluminada pela cachaça a caterva ululante, acompanhada de bombo, tamborim e tarol, cantava alto saudando o pobre pavilhão, onde se via o desenho de uma ave deitada num galho de árvore. A música não valia nada e o estribilho, sempre repetido, fazia corar a pureza das senhoras e a falsidade dos beatos:
“O Jacu saiu de casa pra brincar seu carnaval.
Há Jacu, há Jacu, há Jacu no pau”.
Não penses que estou triste nem que vou chorar
Jornal de
WM
26/02/2006
Os carnavais que se foram
Escrevia eu:
Vejo outra fotografia. Grande Ponto nos meados de 1950.
E resta ao quase setentão de hoje cantar o frevo de Capiba, imaginando a penúltima volta pelo salão: “Eu bem sabia/ que esse amor, um dia/ também tinha seu fim:/ Esta vida é mesmo assim./ Não penses que estou triste/ nem que vou chorar./ Eu vou cair no frevo/ que é de amargar.”
26/02/2006
Os carnavais que se foram
Ticiano Duarte, respeitável
folião de velhos carnavais, escreveu uma bela crônica revivendo, na sua
comovente memória, um tempo em que a folia mexia com este velho burgo à beira
do rio plantada, velha Cidade do Natal, quando o seu povo saía às ruas em
pândegas inesquecíveis. Havia o corso nas avenidas, o desfile dos blocos, o
assalto às casas - muita bebida e muita comida -, os bailes nos
ditos clubes de elite e nos populares também.
Os bares se transformavam em quartéis-generais da alegria incontida, calçadas
largas para a irreverência e o humor de sua gente, passarela dos “sujos”, dos
blocos improvisados, dos foliões solitários, de mascarados e mascaradas jamais
identificáveis.
“Carnavais e Carnavalescos” é o título da crônica que Ticiano publicou nesta Tribuna
do Norte de terça-feira. Cita nomes de grandes foliões, entre eles Djalma
Maranhão, que depois foi o prefeito da Cidade e continuou folião,
agitador das festas que alcançavam os subúrbios distantes, hospitaleiros
quintais sombreados por mangueiras centenárias. Lembra de reis-momos famosos
como o Luizinho Doublecheque, orador sem igual nesta terra de Poti mais bela.
Zé Areia é outra figura maior no traço das lembranças do cronista. Recorda
Ticiano dos grandes bailes do Aero Clube, do América e do ABC, onde se reunia
aquilo que a exuberante crônica social de então registrava como o “melhor da
alta sociedade potiguar”.
Citou ainda o Brasil Clube, na esquina da Rodrigues Alves com a Jundiaí,
Tirol, presidência de Joaquim Victor de Holanda, e o Alecrim Clube, no primeiro
andar do Edifício Leonel Leite, av. Presidente Bandeira, esquina com a praça
Gentil Ferreira. O poeta Antídio Azevedo era sócio honorário, folião de todas
as vesperais.
Ticiano não se esqueceu dos bailes populares do então Carlos Gomes, invenção do
prefeito Silvio Pedroza. Mas escaparam ao seu registro a velha Assem, que
ainda estrebucha, e o Ícaro, de inesquecíveis matinês.
Fiz um delicioso passeio pela crônica de Ticiano, deambulando por uma Natal que
não existe mais.
Bares e clubes da Ribeira, o Francesinha, num primeiro andar da Frei
Miguelinho, os bares e os corsos da Rio Branco, Deodoro e João Pessoa, no
Centro. As vesperais discretas de Maria Boa, o LP da Rozemblit rodando bem alto
os frevos de Capiba - “Vamos para a Casa de Noca”, “Que é que vou dizer em
casa” - as meninas fantasiadas de odaliscas, ciganas, colombinas;
no salão decorado de serpentinas e confetes, a lança-perfume passava de mão em
mão. Austeros senhores de confrarias e irmandades completavam a festa. Não
havia uma briga sequer. À noite, os austeros cavalheiros da tarde iam com
as famílias aos bailes dos elegantes clubes do Tirol e de Petrópolis. Onde
sempre havia briga.
Um dia desses, Lauro Bezerra - que é um dos maiores guardadores de papéis que
eu conheço por estas bandas de Natal e que foi um dos animadores do Bloco
Jardim de Infância, que a crônica social gostava de dizer “bloco de elite”-
encontrou-se comigo numa dessas calçadas da vida e,
conversa-vai-conversa-vem, lembrou-se de uma crônica minha de março de
1981, na qual, já saudoso, falo dos carnavais natalenses dos anos
cincoenta, tendo como mote uma velha fotografia que fui encontrar entre velhos
papéis de minhas gavetas desarrumadas.
Pego a deixa da crônica de Ticiano e dou uma parada para acionar a enferrujada
máquina do tempo. Já que estamos num domingo de carnaval, certamente diante da
televisão esperando o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro,
recomponho a coluna de primeiro de fevereiro de 1981.
"Uma velha fotografia de uns 22 anos atrás. O bloco
carnavalesco Jardim de Infância posando nas varandas do Grande Hotel. Era
o dia do grande assalto ao bar do majó Theodorico Bezerra. Bebia-se e comia-se
muito. O majó era um grande anfitrião, esbanjando hospitalidade. Uísque Cavalo
Branco, cervejas, lança-perfume Rodo Metálica, bandejas enormes de salgadinhos,
tudo muito e à vontade. Não precisava pedir. O majó ia oferecendo e
distribuindo, no meio da folia, sob a batalha de serpentinas e confetes.
Fim da tarde, dali saíamos todos para o Aero Clube, em longo corso de vários
automóveis. Era a vesperal do Aero Clube. O presidente, dr. Gentil Ferreira de
Souza, na entrada, recebia formalmente os meninos e as meninas. Da Ribeira ao
Tirol, pela pista de Parnamirim, o corso era conduzido por Murilo
Concentino.
Nos paralamas dos veículos, as meninas de sainhas curtas (as fardas das
jardineiras), graciosas, encantadoras moças de Natal. As irmãs Massena! Na
fotografia, vejo e revejo; ouço, sinto e cheiro. Saudades! Lá, estamos todos
nós, hoje severos senhores entre quarenta e cinqüenta anos de idade:
Tupan, Ronald, Kleber, Cabelo Bom (Carlos Alberto Mota Ramos), Franklin, Hélio
Nelson, Zé Mesquita, Tota Zerôncio, Ezequiel, Álvaro (Alvano) Mota, Lauro, Zé
Ferreira, Otávio Lamartine, Floro, João Galiza, Heider Moura, Fabiano, Haroldo.
A entrada do bloco no grande salão do Aero era uma apoteose. Os metais da
Orquestra de Jonatas d’Albuquerque atacavam com força total o hino do bloco. O
clube era nosso.
Vejo outra fotografia. Grande Ponto nos meados de 1950.
Tenho quase certeza de que é fevereiro de 1956, porque nela apareço fardado de
cabo do Exército. Estamos na calçada da Cisne, o bar famoso dos irmãos Miranda
e que tinha como chefe dos garçons a figura de José Américo, líder sindicalista
da classe. Era filiado ao PTB de Getúlio, o broche do partido espetado na
lapela do impecável summer branco que fazia uma curva elegante na barriga
protuberante.
A Cisne foi, por muitos anos, o “quartel general do carnaval”. Era ali que o
Rei Momo Luizinho Doblecheque, reunido com o seu ministério, assinava
seus decretos imperiais, fazia discursos num dialeto que poucos entendiam e
bebia grades e grades de cervejas. Dali saíamos a ganhar a cidade que não
passava dos 200 mil habitantes. Éramos capazes de chamar pelos nomes todos que
passavam no corso pela rua João Pessoa e avenida Rio Branco. Estão na
fotografia: Zé Alexandre Garcia, João Meira Lima, Xavier Pinheiro, Rui
Xavier e este cabo escrevente-arquivista, nº 1204, da CCS do 16º
Regimento de Infantaria, apto a terceiro sargento, como está no Certificado de
Reservista de primeira categoria.
A Cisne não existe mais. O 16° RI também não. O Grande Ponto, menos. O carnaval
já não é mais aqui. É do outro lado. Inventaram-no muito longe, no Alecrim, por
pura demagogia e falta de criatividade. Essa Natal não existe mais. A minha
Natal resta nestas gavetas, nestes envelopes, nestes bilhetes, nestas cartas,
nestas fotografias. Nas minhas saudades.”
E resta ao quase setentão de hoje cantar o frevo de Capiba, imaginando a penúltima volta pelo salão: “Eu bem sabia/ que esse amor, um dia/ também tinha seu fim:/ Esta vida é mesmo assim./ Não penses que estou triste/ nem que vou chorar./ Eu vou cair no frevo/ que é de amargar.”
terça-feira, 12 de abril de 2011.
Palavras
finais
Publicação: 28 de Outubro de 2007 às 00:00
O velho folião achou de
repente que os velhos palhaços diziam muito. E principalmente perguntavam pelas
coisas. Por mim, vos digo, sou o mesmo que antevi essa cidade nas grandes
glórias carnavalescas. Sou reminiscência de foliões desesperados pela vida
comum. - Era a verdade de alguém que se chama Zé. Cheguei a Natal na noite da
surpresa como noivo que vem apanhar a amada na calada da noite - serei eu
amante dessa cidade?
A partir disso, apesar de ter chegado coberto por um manto hindu, e apesar de
seis fantasias da Mangueira, ele viu que o mundo é vago, que sua cidade era um
termo e uma comarca. Todos o esperavam no Aeroporto. Mas a mim, ou a minha
solidão? Isto é, amigos, vocês homenageiam a um homem de solidão, que tem dia e
tarde, manhã e madrugada, mas pena que melhor é viver a solidão de Genipabu.
Disse.
Repartido entre amigos, ele pensou nos carnavais de outrora. Finalmente sou um
homem de cartório, preciso inventariar. Onde está Luizinho Doblecheque e a
bonomia de Zé Areia?
Pra Luizìnho foi feito um enterro na última segunda-feira. Homem de teatro, que
saiu daqui um dia, vendo que o horizonte da Terra era plano. Ele explica: - Cheguei aqui. Onde permanece o que eu vivi? A Ribeira
morria de solidão. Nessa casa -reafirmava - todos ficamos até dizer não. Por
mim, ficam os que vêm da Noite, e não sabem o nome da madrugada.
A vida não é só isso - é a partir disso. Os amigos nunca poderão saber o real
sentido do que digo. Sou pleno e forte. Desesperado. E humano. Quem chega ao
Rio, me tem como amigo e irmão.
Mas me deixem ver o velho Teatro nessa solidão de domingo. Aqui dentro mora o
teatro de estudante, de que fui campeão sem coroa. O querido Meira é quem interpreta
a história. Olha aquela rua. Olha aquele beco. O céu está além do normal de azul. Vou triste. Não vejo mais blocos. Vocês me entendam.
Sou eu sozinho. Natal existe. Todos existem. O sacrifício. A solidão. O que
aprendi. O que expiei. O que expiaram por virtude de que a geração era
sacrificada. Não sou somente daqui. Carrego comigo várias identidades.
Humaníssimas e anônimas. Cadê Natal dos meus sonhos privilegiados?
Vim principalmente para ficar sem saber o dia nem a hora de voltar para o Rio.
O mundo é vago. Estranho aos olhos de quem vê. Tardo. Tudo é tardo. Adeus
moçada, já dizia Luizinho Doblecheque. (Foram talvez as últimas palavras de Zé
Maria Guilherme, as que ele podia falar. Foi o que pude entender na dificuldade
que teve para dizer e para morrer. Seu olhar conduziu este monólogo).
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