sábado, 1 de novembro de 2025

 O Tribunal dos Mortos 

Marcelo Navarro Ribeiro Dantas 

Quem julga, já morreu. GUIMARÃES ROSA 

Quando eu era um jovem Procurador da República, no começo da década de 1990, visitando a então sede da do Ministério Público Federal, um velho Subprocurador-Geral me contou uma história sobre os primeiros concursos daquela Instituição: um causo de que jamais me esqueci. 

Dizia ele que um colega, dos mais antigos ― e que sempre procurava participar das bancas dos primeiros certames de ingresso na Casa ―, era um examinador implacável. E se jactava: “Não dou dez a ninguém. O dez é meu. Nem nove. O nove é de mamãe. E, para completar, o oito é do meu pai. Sete é a maior nota que eu concedo.” Mas os ouvintes objetavam: “E se o cara acertar todas as perguntas, como é que você vai justificar isso?” E ele respondia, impassível: “Eu pego o sujeito na prova oral. Pergunto o que era o Tribunal dos Mortos na Roma antiga. Se ele souber, eu dou oito. Aí eu pergunto qual era a composição do Tribunal dos Mortos. Caso responda, tem meu nove. Então eu pergunto quem era o Presidente do Tribunal dos Mortos. Na improvável hipótese de ele acertar, aí sim, tem o dez. Mas nunca ninguém soube nem da primeira!... Por isso, até hoje, a maior nota que eu registrei foi um sete mesmo...” 

Eu, na época, procurei em toda parte essas informações. Só as achei depois, num livro do Professor Cruz e Tucci (e L. C. Azevedo) sobre Processo Civil Romano. Está lá no finzinho da p. 34 (na edição que tenho). Depois encontrei em outras fontes. Hoje em dia está tudo não apenas nas bibliotecas, mas também online. Mas pouca gente liga, atualmente, para o Direito Romano ― o que é um grande erro, mas isso é tema para outro texto ―, e essa história me marcou. Como as informações são interessantes, aproveito para contar. Velho adora contar coisas. 

Pois bem. 

Durante o século V d.C. (os muito politicamente corretos preferem EC – Era Comum), o Império Romano vivia um cenário de proliferação desordenada de leis imperiais (constitutiones principum), oriundas de sucessivos imperadores. O volume, a sobreposição e as contradições entre normas antigas e recentes geravam insegurança e confusão interpretativa entre magistrados e advogados. Para remediar esse quadro ― com o qual os brasileiros de hoje já se acostumaram ―, o imperador Teodósio II (408–450), em acordo com Valentiniano III (425–455), promulgou, em 426 d.C., uma constituição imperial notável — a Lex Citandi (Lei de Citações), inserida posteriormente no Código Teodosiano (CTh 1.4.3). 

Essa norma fixava quais jurisconsultos clássicos poderiam ser citados com autoridade legal (auctoritas), e como resolver divergências entre eles. 

Por determinar que somente juristas já falecidos (Papiniano, isto é, Aemilius Papinianus; Ulpiano, ou seja, Domitius Ulpianus; Paulo, melhor dizendo, Julius Paulus; Gaio ou Caio, de quem só nos chegou o prenome, Gaius; e Modestino, a saber Herennius Modestinus) tinham força vinculante, os humanistas posteriores — especialmente os glosadores medievais e os juristas renascentistas — apelidaram esse dispositivo de “Tribunal dos Mortos” (concilium iurisprudentium defunctorum). 

A transcrição latina do Código de Teodósio (CTh 1.4.3 – De responsis prudentium) reza: 

            “Papiniani, Pauli, Ulpiani, Modestini atque Gaii sententiae receptae leges obtineant; eorumque omnium commentarios et responsa, quorum memoriam sacri temporis veneratio consecravit, iudices pro suis sententiis accipiant.” 

Ou, em português: 

        “As opiniões de Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e Gaio terão vigor de lei; e os juízes deverão acatar, como se fossem suas próprias sentenças, os comentários e respostas de todos esses cujas memórias foram consagradas pela veneração dos tempos.” 

Primeira e segunda perguntas (lá do começo do texto) respondidas. Chegamos ao nove. 

Falta, para o dez, saber quem era o “Presidente” do Tribunal dos Mortos, o que se descobre no final da mesma passagem acima transcrita, que vai adiante, também no original e em vernáculo: 

Si de una re diversa sit eorum sententia, plurimorum auctoritas obtineat; si pares numero paresque merito fuerint, Papiniani responsum praevaleat; cuius tamen scripta non aliorum commentariis submoveantur.” 

“Se, sobre um mesmo assunto, houver divergência entre suas opiniões, prevalecerá a autoridade da maioria; e, se forem iguais em número e mérito, prevalecerá a resposta de Papiniano — cujos escritos, todavia, não deverão ser rejeitados pelos comentários de outros. 

Esse trecho consagra juridicamente a autoridade póstuma de cinco mestres do ius clássico e coloca Papiniano como um Chief Justice simbólico, pois sua opinião decidia os empates. 

A Lex Citandirepresenta a primeira tentativa sistemática de hierarquização das fontes jurídicas no mundo romano tardio. Sua intenção era dupla: de um lado, racionalizar o uso das fontes — restringindo o número de autores cuja doutrina teria força legal; de outro, uniformizar a interpretação — evitando que juízes se apoiassem em textos de autores obscuros, contraditórios ou apócrifos. 

Assim, criou-se uma espécie de “tribunal simbólico” de juristas mortos, cujas vozes ainda decidiam litígios vivos. Um momento em que a aplicação da Justiça pareceu desafiar a frase famosa que seria escrita muitos anos depois: a famosa afirmação de Bergeret de que a lei é morta, mas o juiz está vivo. 

Com efeito, quem diz a frase é Lucian Bergeret, mas ele ― diferentemente do que alguns pensam, e até o citam como se fosse um jurista francês do passado ― em verdade, jamais existiu. É criação do grande escritor francês Anatole France. Aparece numa tetralogia de romances deste, História Contemporânea, composta de À sombra do olmo, O manequim de vime, O anel de ametista e O Senhor Bergeret em Paris. 

Há também uma coleção de contos, em francês Crainquebille, Putois, Riquet et plusières autres récits profitables. Ao pé da letra, Crainquebille, Putois, Riquet e muitos outras histórias proveitosas. Esse livro foi traduzido em português como A justiça dos homens, edição que só ganhei depois que a citei num prefácio que fiz para o amigo Napoleão Maia, jurista e poeta cearense, que me fez esse mimo. 

Pois bem: o sr. Bergeret está presente em várias das histórias antes mencionadas, e, numa delas, chamada Jean Marteau, a frase em foco ― além de intitular o capítulo II ― vem no seguinte contexto, em que fala o personagem mencionado (tradução minha, da edição eletrônica original referenciada no fim deste artigo): “

― "Eu meditei na Filosofia do Direito ―, disse o Sr. Bergeret ― e passei a reconhecer que toda a justiça social repousa em dois axiomas: o roubo é condenável; o produto do roubo é sagrado. Eis os princípios que garantem a segurança dos indivíduos e mantêm a ordem do Estado. (...) Eles foram estabelecidos desde o começo das eras... ... 

― Mas de qualquer modo ―, diz o Sr. Goubin ―, há leis justas. ― O sr. Acredita? ―, pergunta Jean Marteau. ― O Sr. Gobin tem razão ―, diz o Sr. Bergeret. ― Há leis justas. Mas a lei, sendo instituída para a defesa da sociedade, não poderia ser, em seu espírito, mais equitativa que esta sociedade. E se essa sociedade é fundada na injustiça, as leis terão por função defender e sustentar a injustiça. E parecerão, portanto, tão mais respeitáveis quão mais injustas forem. Observem que, sendo, na maioria das vezes, muito antigas, elas representam não propriamente a iniquidade presente, mas uma iniquidade passada, mais rude e mais tosca. São monumentos de tempos mais brutais, que subsistem nestes dias mais amenos. ― Mas se pode corrigi-las ―, diz o Sr. Goubin. ― Pode ―, responde o Sr. Bergeret ―. A Câmara e o Senado trabalham nisso quando não têm outra coisa para fazer. Mas a base subsiste: e é amarga. Para dizer a verdade, eu não teria muito medo de leis ruins se elas fossem aplicadas por bons juízes. A lei é inflexível, dizem. Eu não acredito que seja. Não há texto que não se deixe ser amaciado. A lei está morta. O magistrado está vivo, essa é uma grande vantagem que ele tem sobre ela. Infelizmente, ele quase não a usa. Normalmente, ele se mostra mais morto, mas frio, mais insensível que o texto que aplica. Ele simplesmente não é humano; simplesmente não tem piedade. O espírito de casta abafa nele toda simpatia humana.” 

Como quer que seja, a escolha dos cinco integrantes do Tribunal dos Mortos foi emblemática: Papiniano foi um mártir da Justiça, executado por recusar-se a justificar o fratricídio de Geta por Caracala; Ulpiano e Paulo foram os maiores representantes do pensamento jurisprudencial severiano; Gaio, o mestre do ensino jurídico de Roma e o autor das Institutas, única obra da fase jurídica romana clássica que sobreviveu; e Modestino, o último grande jurista do Direito romano clássico. 

Quando as opiniões se dividissem (por exemplo, três contra dois), o juiz seguiria a maioria. Se houvesse empate (dois contra dois, ou divergências não mensuráveis), a autoridade moral e científica de Papiniano prevaleceria — daí o epíteto de “presidente do Tribunal dos Mortos”. 

A Lex Citandi vigorou formalmente até a compilação do Código Teodosiano (438 d.C.), e influenciou decisivamente a metodologia jurídica posterior. No Direito Justinianeu (século VI), as opiniões desses mesmos juristas compuseram as Pandectas ou Digesto (não custa lembrar que as Pandectas foram norma positiva, até recentemente ― 1900 ― na Alemanha, por exemplo). Na Idade Média, os glosadores de Bolonha (séculos XI–XIII) viram nesse cânone uma antecipação do princípio da autoridade das fontes e do consenso doutrinário. Na teoria moderna dos precedentes, o critério de seguir a “maioria das autoridades” (e, no empate, o “decano”) ecoa claramente a solução teodosiana. 

Essa tradição não nos é estranha, muito pelo contrário. Desde o final da Idade Média, o Direito português estruturou-se sob forte influência das fontes romanísticas e canônicas, mediadas pela tradição glosadora e pós-glosadora do ius commune. Entre os mestres italianos, Bártolo de Sassoferrato (1313–1357) destacou-se como a maior autoridade interpretativa do Corpus Iuris Civilis, sendo considerado, por séculos, princeps legum e doctor legum, cuja palavra — a chamada opinio Bartoli — valia, na prática, como verdadeira lei subsidiária. 

O peso da doutrina bartolista no ordenamento jurídico português foi tamanho que se pode afirmar ter existido, até o século XVIII, um governo das opiniões dos mortos — expressão que bem traduz o caráter de autoridade quase sagrada conferido aos juristas clássicos e medievais. A aplicação dessas opiniões não decorria apenas de veneração intelectual, mas de uma necessidade institucional: diante da ausência de legislação casuística e da fragmentação normativa dos reinos medievais, os ensinamentos dos grandes doutores — sobretudo de Bártolo e de seu discípulo Baldo degli Ubaldi — serviam como direito comum subsidiário, apto a suprir lacunas e orientar decisões judiciais. 

Por sinal, com o intuito de consolidar tal herança e assegurar maior uniformidade às decisões, D. João I (que reinou de 1385 a 1433) mandou traduzir e compilar, em português, um extrato do Codex Justiniani, acompanhado da Glosa de Acúrsio e dos Comentários de Bártolo, tornando-os de consulta oficial. Essa obra visava difundir entre os juízes e letrados lusitanos o acesso direto às fontes do ius commune, sem depender do latim técnico. Para tanto, o rei contou com a colaboração do eminente jurista João das Regras, seu chanceler-mor, que sistematizou o uso dos textos romanísticos e das glosas como instrumentos de hermenêutica jurídica e de fixação de jurisprudência uniforme. 

A partir de então, consolidou-se no reino a prática segundo a qual, na ausência de disposição expressa nas Ordenações, os juízes deveriam recorrer, sucessivamente, ao Direito Romano, ao Direito Canônico, à Glosa de Acúrsio e, finalmente, à opinião de Bártolo, que tinha, portanto, força supletiva e vinculante. Tal hierarquia hermenêutica foi expressamente incorporada nas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), em dispositivos que estabeleciam o modo de “julgar os casos que não forem determinados por as Ordenações” (Ordenações Afonsinas 2,9,2–3; Ordenações Manuelinas 2,5 pr., 1–3; e Ordenações Filipinas 3,64). 

Essa estrutura dogmática tinha o propósito de garantir segurança jurídica e uniformidade jurisprudencial, evitando a dispersão interpretativa entre os juízes do reino. A doutrina dos mestres italianos funcionava, assim, como um ius commune eruditorum, cuja autoridade emanava não do poder político, mas da ciência do Direito. 

Essa influência, todavia, começou a ser questionada à medida que o pensamento iluminista e o reformismo jurídico pombalino difundiram a ideia de que o Direito deveria submeter-se à razão natural e às necessidades concretas da sociedade portuguesa, e não à mera autoridade de textos medievais. O ponto de inflexão deu-se com a Lei da Boa Razão, promulgada em 18 de agosto de 1769, sob o governo de D. José I e a direção política do Marquês de Pombal. Essa lei determinou que os juízes e tribunais não mais se apoiassem automaticamente nas opiniões de glosadores e comentadores antigos, devendo, ao contrário, decidir conforme a boa razão, isto é, de acordo com os princípios do direito natural e das luzes da razão moderna, além dos usos e costumes próprios do Reino. A norma estabelecia que o Direito Romano só poderia ser aplicado quando estivesse de acordo com a “boa razão, os princípios das leis pátrias e a utilidade pública”, afastandose o apego cego às interpretações bartolistas. 

Apenas com a Lei da Boa Razão rompeu-se o ciclo de dependência do ius commune e inaugurou-se o caminho para a autonomia do Direito Português, abrindo espaço para a codificação nacional e para o nascimento de uma dogmática jurídica própria. O prestígio dos juristas mortos — sobretudo Bártolo — cedeu lugar à razão viva dos intérpretes modernos, sintonizados com o espírito das reformas ilustradas e com o novo paradigma de soberania racional do Estado. 

Dessa forma, o “Tribunal dos Mortos” foi, em sentido técnico, um colegiado jurídico imaginário, mas de efeitos práticos e normativos concretos, que estabeleceu a base hermenêutica do direito ocidental codificado. 

O chamado Tribunal dos Mortos de Teodósio II foi uma criação jurídica engenhosa para um império saturado de leis e carente de juristas vivos à altura dos clássicos. Transformou o legado de Papiniano, Ulpiano, Paulo, Gaio e Modestino em verdadeira autoridade normativa, antecipando a noção de corpus doutrinário oficial. 

A Lex Citandi, portanto, não apenas prestou homenagem à jurisprudência clássica — ela instituiu a primeira forma de controle de precedentes e fixação de jurisprudência obrigatória na tradição jurídica ocidental, que teve imensas consequências na formação jurídica da Europa continental e, em especial, do Direito português (daí chegando a nós). O que fora o Tribunal dos Mortos para Roma foram depois as glosas e opiniões dos medievalistas, principalmente Bártolo, para Portugal, ao menos até a Lei da Boa Razão. 

Recordar uma passagem do começo da minha vida profissional me dá a oportunidade de lembrar um momento importante do Direito Romano e fazer um link com a Teoria dos Precedentes que é hoje ― já na academia, já no tribunal ― uma parte importantíssima e muito atual da minha experiência como professor e como juiz. 

Referências ALBUQUERQUE, Manuel. Bártolo e Bartolismo. Coimbra: Almedina, 1989. ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Uma Perspectiva Histórica do Direito Português. Coimbra: Livraria Almedina, 1986. BIONDI, Biondo. Il diritto romano cristiano. Milano: Giuffrè, 1952. CODEX THEODOSIANUS. Liber I, titulus IV, lex III (De responsis prudentium). In: MOMMSEN, Theodor; KRUEGER, Paul (eds.). Theodosiani libri XVI cum Constitutionibus Sirmondianis et Leges Novellae ad Theodosianum pertinentes. Berlim: Weidmann, 1905. FRANCE, Anatole. Paris: Calmann-Lévy, 1904. Exportado pela Wikisource em 24/09/2017. GOMES DA SILVA, Nuno José Espinosa. História do Direito Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972. KASER, Max. Das römische Privatrecht. 2. Aufl. München: C.H. Beck, 1971. MOMMSEN, Theodor; KRUEGER, Paul (eds.). Corpus Iuris Civilis. Vol. I: Institutiones. Vol. II: Digestorum seu Pandectarum libri quinquaginta. Berlim: Weidmann, 1904. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. P. 192. SCHULZ, Fritz. History of Roman Legal Science. Oxford: Clarendon Press, 1946. STEIN, Peter. Roman Law in European History. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. SURGIK, Adriano. Gens Gothorum: A formação jurídica do reino de Portugal e o legado romano-gótico. Lisboa: Imprensa Nacional, 1998. TALAMANCA, Mario. Lineamenti di storia del diritto romano. Milano: Giuffrè, 1989. TUCCI, José Rogério Cruz e et AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de História do Processo Civil Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967. ZULUAGA, Mauricio. La Ley de Citas y el principio de autoridad en el Derecho Romano Tardío. Revista de Estudios Jurídicos Romanos, v. 34, p. 47–66, 2018.

 Pensamento X Realidade — 

A Filosofia em Marcha 

(Por PHILOFOTOPOETA: FERREIRA FONTES) 

Mente a mil por hora, realidade no seu tempo certo... Assim tem sido minha travessia: uma estrada pavimentada por ideias e temperada pela paciência da vida. Aprendi, ainda jovem, que o pensamento voa mais rápido que os pés. Na Vila Coronel José Reinaldo, entre as sombras das amendoeiras e o eco do velho estádio Juvenal Lamartine, eu já filosofava sem saber. Observava o céu e imaginava o que havia além do azul — como se o infinito fosse um convite pessoal. Meu pai, Letício Ferreira de Fontes, homem de farda e fé, ensinava-me que cada passo precisava ter propósito. Minha mãe, Terezinha, com sua doçura e força, ensinava o contrário: que há beleza também no imprevisto, no improviso, no bordado do cotidiano. Entre ambos, formei-me nesse paradoxo: pensamento e realidade, sonho e chão. Quando entrei no NPOR, em 1982, no 16º Batalhão de Infantaria Motorizada, e mais tarde na Academia da PMBA, o pensamento foi moldado à disciplina da ação. Ali aprendi que refletir é necessário, mas agir é o que concretiza. O cadete que eu fui sabia marchar com precisão, mas dentro dele já morava o filósofo que questionava o sentido de cada ordem. Porque no fundo, até a obediência tem filosofia: é uma escolha silenciosa entre o dever e o querer. O tempo passou — como sempre passa — e a realidade foi impondo seu compasso. Fui oficial, comandante, instrutor. Vesti a farda com orgulho e a consciência com serenidade. Aprendi que o tempo certo da realidade nem sempre coincide com a pressa do pensamento. Há dias em que a mente quer resolver o mundo, mas o mundo ainda está amanhecendo. E é nesse hiato — entre o pensar e o acontecer — que a sabedoria se instala. Hoje, na varanda de Cotovelo, onde o mar filosofa e o vento dita seus próprios versos, percebo como cada etapa foi necessária. A pressa do jovem deu lugar à contemplação do homem maduro. Já não quero dominar o tempo, quero dialogar com ele. Deixo que o sol suba sem alarme, que o café esfrie enquanto escrevo, e que o pensamento se alongue na rede, balançando entre o céu e a areia. Minha mente continua a mil por hora. Ela revisita os corredores do Atheneu, os portões da Academia, os rostos dos amigos de farda, os sorrisos dos filhos — Washington Júnior, Wilker Khalil e Williana —, e até o olhar atento da minha musa, Andyara, que aprendeu a me ler em silêncio. Mas o coração aprendeu outra lição: que a realidade tem seu próprio relógio. O poeta dentro de mim não disputa mais com o comandante. Ambos coexistem — um escreve, o outro vigia; um sonha, o outro cuida. A mente planeja, mas o espírito observa. E quando o pensamento quer correr, é a alma quem segura o freio e diz: “Calma, Fontes... o tempo é sábio. Ele só floresce onde há paciência.” Na filosofia da vida, aprendi que nem tudo o que se pensa se realiza — e, paradoxalmente, nem tudo o que se realiza foi antes pensado. Há milagres que não cabem no raciocínio, há encontros que desafiam o plano, há certezas que só o acaso revela. Pium me ensinou isso. Entre o rio e o mar, o pensamento se dissolve, e a realidade se recompõe. A maré me mostrou que até as águas inquietas obedecem a um tempo invisível — o tempo do retorno. Na juventude, quis apressar o destino. Hoje, quero compreendê-lo. A mente quer velocidade, mas a sabedoria exige ritmo. O jovem planejava a vida como quem comanda um batalhão; o homem maduro a vive como quem observa um pôr do sol — sem pressa, sem medo, com a serenidade de quem sabe que cada instante é uma ordem divina de repouso e gratidão. E quando olho para trás, vejo que o pensamento foi o mapa, mas a realidade foi o caminho. Um imaginava; o outro ensinava. Um projetava; o outro lapidava. E entre ambos, fui me tornando o que sou: um ser que pensa para sentir e sente para existir. Hoje, sigo filosofando entre o vento e o tempo, sabendo que o amanhã não é meta, é consequência. E que as ideias, por mais belas, só ganham sentido quando respiram o ar do real. Sou grato ao pensamento — ele me deu asas. Sou grato à realidade — ela me deu chão. E sou grato ao tempo — ele me ensinou o compasso certo para voar sem pressa e caminhar sem medo. No fim, percebo que o equilíbrio está em aceitar os dois comandantes da alma: o pensamento, que quer me levar; e a realidade, que me faz ficar. Entre eles, sigo marchando — com o passo firme da vida, e o olhar livre da filosofia. E se a mente corre a mil, a alma descansa no seu tempo certo. Porque aprendi, com a vida, que a pressa é do homem, mas o tempo é de Deus. PHILOFOTOPOETA: FERREIRA FONTES ■Praia de Cotovelo — Parnamirim/RN Entre o vento e o verbo, sigo com destino à filosofia. ■

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

 


 Núbia Lafayette: o canto como necessidade 
Texto de Márcio de Lima Dantas 

Para Ridam, descoberta 

Não pertence ao momento: vive 

um mundo imemorial que passou, 

que não terá chegado ou talvez 

nem chegue nunca, pois instável. 

Henriqueta Lisboa 

A norte-rio-grandense Idenilde de Araújo Alves da Costa, nascida a 21 de janeiro de 1937, cujo nome artístico, por sugestão de Adelino Moreira, ficou sendo Núbia Lafayette, é originária do vale do Açu. Hoje, o Saco, antigo distrito de Ipanguaçu, constitui parte do município de Itajá. Atualmente, reside no Rio de Janeiro. Embora tenha seu nome vinculado ao que se chama de “música de roedeira” ou “repertório de cabaré” - hoje sintetizado, pejorativamente, por certos grupos, no “cantora de churrascaria” - atino que outros elementos entornam sua presença no palco e sua maneira de se portar em cena e de interpretar. Malgrado esses signos depreciativos orbitando em torno da cantora, não podemos olvidar o fato do seu nome estar honradamente vinculado ao de grandes nomes da cena musical do país, como um Ataulfo Alves, bem como de ter participado dos tempos áureos do rádio. 

A cantora que tornou um clássico a música Casa e comida detém, na sua compleição facial, a angulosidade e o semblante saturniano, que, via de regra, são encontrados nos que sofrem os talhes do Destino, consubstanciados que estão por inumeráveis vicissitudes e açoites das permanentes forças da vida, as quais, com seu dedo em riste, seleciona alguns para cumprir a sina dos que transubstanciam a dor em letra, melodia, enfim canto. Falo daqueles necessitados de representar, por meio de arquétipos desde sempre presentes no Imaginário, o sofrimento em algo tangível, com signos pertencentes às vizinhanças da arte com seus inumeráveis círculos concêntricos inerentes ao que o humano carrega de trágico e forças indomáveis. 

Quem duvidaria da autenticidade dessa cantora? Com certeza ela não poderia ter abraçado outro oficio, pois recebeu o chamado para confundir arte com vida e, assim, ritualizar, com suas vivências pessoais, a encenação no palco do mito do amor inexoravelmente fadado ao fracasso. 

Tal componente antropológico – o de um indivíduo destacar-se cristalizando um sistema de pensamento ou um conjunto de representações, ou apreender e dramatizar por meio de uma expressão artística, certos sentimentos ou aspectos integrantes da vida social - é de natureza tão tenaz e tangível que, mesmo em condições sobremodo adversas, chega como necessidade de se cumprir, de se fadar, haja o que houver. 

Sem dúvida, a vida em sociedade produz indivíduos, ou certos grupos, responsáveis para colocar em cena o caráter trágico da condição humana; tais sujeitos sociais detêm na carne e no espírito um não-sei-quê de pendor ou força para atrair signos fortalecedores do paradigma mítico ao qual a pessoa está “naturalmente” vinculada. Em assim sendo, o núcleo do mito funciona como espécie de energia centrípeta, exercendo atração sobre imagens capazes de fomentar uma maior voltagem semântica acerca do que representa no seio da vida social, ou seja, ao mito interessa sua eficácia e sua lógica interna, sendo sua capacidade de produzir sentido e harmonia no âmbito das micro e das macrorrelações sociais sua função primacial. 

Como dizia, aquela que consagrou Fracasso detém em suas interpretações algo puxado a amargo, porque elas sugerem uma mescla de poesia somada a um forte componente de ordem pessoal. A mulher tece no fôlego o desencanto de quem parece ter vivenciado na pele o que é de ordem ficcional, estendendo para a platéia uma fronteira imprecisa que desperta o sentimento sito entre a piedade e uma identificação plena de temores e realizando o que Aristóteles chamava de catarse . 

Aquela que o povo consagrou como “voz de veludo” tem o pejo de um it encontrado na cantora egípcia Oum Kalsoum, na grega Maria Callas, nas brasileiras Nora Ney, Elizete Cardoso, Clementina de Jesus, Elis Regina, na caboverdiana Cesária Évora, na espanhola Niña de Los Peines ou na portuguesa Amália Rodrigues. Todas elas detentoras de um não sei quê capaz de sintetizar, na sua carreira de artista, as inquietudes de uma geração ou o espírito do tempo de um dado momento histórico, e até mesmo certos traços acentuados por uma etnia. Quero falar dos artistas que infundem respeito e um certo hieratismo de quem impõe a presença por meio de um discurso corporal, de uma fala ou de uma personalidade demandadores de reverência, obrigando o expectador a remexer suas áreas atávicas, numa busca de situar o personagem numa tradição da história da arte, fazendo crer que o encenado no palco é matéria para ser levada a sério, pois é o que o humano alcança de melhor, ao simbolizar o caráter trágico da existência através da arte, transubstanciando o factual, com suas arestas, em cristais duráveis e permanentemente dotados de capacidade para resplender em qualquer espaço ou tempo, pois certas estruturas antropológicas nos acompanham, vigilantes, desde sempre. 

E se quisermos estabelecer analogias com outras tradições do canto, podemos evocar as cantoras de blues ou de fados. As trajetórias de tantas delas acabam por confundir o representado no palco com momentos de suas vidas, dificultando a separação entre o vivido e o biográfico. A imprecisão é de tal monta que acaba tudo numa espécie de encenação. A vida e suas recorrentes eventualidades funcionam como pauta, de modo que mais se vive no cenário do que se produz arte, embaçando fronteiras, juntando o factual com o estético. Poesia, canto, dança (o que na Antiguidade grega chamavam de MUSIKÉ) concorrem para acentuar a dramatização de algo da ordem de experiências dolorosas, que estão veladas e implícitas, fazendo com que o expectador produza intimamente uma espécie de identificação. E eis que do corpo no palco reverbera em voz a condensação de uma espécie de matéria impossível de vir a ser linguagem, de organizar aquela contextura em palavra, contentando-se o espectador em silenciar, mesmo que seu íntimo esteja chafurdado, assanhando águas adormecidas. 

Podemos pensar que se trata da cristalização, em forma de cantar, de uma espécie de dor, quem sabe, tipicamente oriunda das classes populares, que se representa por meio de queixumes e lamentos capazes de dramatizar em imagens hiperbólicas o pranto advindo quase sempre de um fracasso amoroso. Com efeito, a experiência amorosa é a matéria da qual a cantora extrai as sombras lancinantes que envolvem a interpretação das letras. Interessante é que no seu modo de cantar há uma espécie de pressa da voz, coisa parecida com uma (des)impaciência, não sei explicar direito, mas é como se houvesse um descompasso entre a palavra cantada e a melodia que ela, a voz, tem a obrigação de sincronizar, para que haja a desejada afinação (dizem que os músicos de Elis Regina viam-se doidos, pois a cantora não respeitava os instrumentos; os músicos é que tinham de acompanhá-la). A pressa funciona como busca de articular a pungência das emoções, de verbalizar o que lacera, de fazer manar a necessidade que as entranhas ansiosamente teimam em fazer imagens, numa tentativa de aplacar o que punge. 

É engraçado como tudo acima dito só nos leva a pensar quanto o que conhecemos como “Amor” não passa de uma construção social, ou seja, ama-se de uma maneira porque fomos acostumados a isso vemos desde sempre tal comportamento em evidência, conseqüentemente há também uma específica maneira de sofrer quando nos arriscamos nas veredas das paixões e dos amores. Em assim sendo, não se trata de algo natural, mas introjetado nos sujeitos sociais quando do processo de socialização, vindo a impregnar o Imaginário coletivo ou integrar nosso esteio simbólico de ordem mais particular, digamos assim, estando-se este, eivado de sinais, mitos e obras de arte ritualizadores do amor romântico. 

Alguns países ou cidades mais cosmopolitas pouca importância ao feitio da forma com a qual fomos acostumados a amar. Só para se ter uma idéia: quando do final de um casamento, para alguns, no mundo de hoje, não há o sentido de fracasso, mas de uma experiência a mais que não logrou êxito. Já li que as gentes escandinavas pensam assim. Embora seja difícil falar do amor, não há como deixar de lado certas ilações ou constatações. O amor é faca de dois gumes: cinde o ser que, recalcitrante, repete a experiência do desejo de amar e ser amado, mesmo inconscientemente sabendo da impossibilidade e do inelutável quando o humano se intromete, ansiando deter nas mãos as rédeas das coisas relacionadas às emoções. 

Cultural ou não, o certo é que estamos fadados a elaborar algum tipo de variação opinativa acerca dos assuntos relacionados ao amor. Quem sabe o fato de Núbia Lafayette esculpir uma maneira de cantar, com feição visivelmente melancólica, tenha a ver com essa necessidade de expressar as circunstâncias presentes nos relacionamentos amorosos que, em grande parte, não passam de pura fantasia ou medo e ânsia de se negar a condição de estarmos fadados a sermos sozinhos, sobretudo porque a solidão integra e entrega o humano como matéria extremamente frágil e susceptível às intempéries de toda ordem. 

O pior disso tudo é saber que o outro não tem como nos aplacar, se permanecermos obstinados, escoiceando a lógica autônoma que rege os distritos do amor Só instalaremos uma guerra íntima, uma desavença interior, aumentado o sofrimento e turvando uma eventual possibilidade de instalarmos um distanciamento crítico capaz de deslocar parte da nossas afetividade para outros objetos ao nosso redor, conduzindo-nos a um relativo equilíbrio, lastreado na prudência e na capacidade de transferir o afeto de um objeto para outro. 

Até que tentaram afugentar um pouco os estigmas que rodeiam o nome da cantora; tanto é que se organizou um LP com músicas e compositores mais reconhecidos pela mídia e pelo público como de qualidade, tais como Gonzaguinha, porém é consabido o valor e o peso do campo simbólico no qual se lastreia um fenômeno. 

Assim sendo, a cantora permaneceu ocupando um espaço equivocado, face a seu estofo como cantora, ritualizando um modo em extinção de amar, um feitio do sofrimento que pouco condiz com o jeito de ser em uso na sociedade contemporânea. Basta ver o quanto sua interpretação e presença têm de índices evocadores de signos que remetem à decadência e ao fracasso. Presa a um tempo que cumpriu seu ciclo vital, a cantora Núbia Lafayette recolhe os resíduos espalhados nos corações dos remanescentes e dos saudosistas de uma época encerrada, pois as horas pingam seus turnos em ampulhetas acumuladas no imenso arquivo da História.

 Para refletir no Dia de Finados 

Padre João Medeiros Filho 

A morte necessita ser aceita, com menos dor e tristeza, mais resignação e resiliência. Tal realidade, passível de demora e sofrimento, depende da estrutura emocional e da crença de cada pessoa. Cabe-lhe o direito de escolher o caminho mais reconfortante, decorrente de sua fé ou espiritualidade. Para uns, quem morreu se reintegrou à mãe natureza. Segundo outros, reviverá nos filhos, netos etc. Muitos asseguram que cada ser humano fará parte de uma energia maior, penetrando noutra dimensão. O cristianismo ensina que a morte é o início da vida em plenitude, a porta de entrada no definitivo, “a aurora da eternidade”, na expressão de Dom Nivaldo Monte. Roberto Carlos, em sua fase mística, manifesta a sua crença: “Além da vida que se tem, existe outra vida além – e assim o renascer – morrer não é o fim.” A vida flui, realizando os ciclos da existência. Estes abrem-se e fecham, tal é o existir. Isso ajuda a pensar nas vezes em que alguém se mostra egoísta, desonesto, hipócrita e injusto. Mas, deve-se lembrar igualmente os momentos em que se pratica o Bem. As águas do fluir da vida não se interrompem, quando se dorme ou come, nos momentos de tédio, depressão e ansiedade, no choro copioso na solidão do quarto ou na escuridão da noite. “A morte é natural, pois faz parte da realidade biológica. Comer, beber, dormir, sonhar, procriar e morrer integram a natureza humana.” Palavras do meu saudoso médico Dr. Leônidas Côrtes, diretor geral da Casa de Saúde São José, situada no Bairro do Humaitá, Rio de Janeiro (RJ). O intervalo da vida e os instantes de seu fim são um duro e exigente aprendizado. E disto poucos cuidam. Não se pretende abordar aqui as tragédias em acidentes e assassinatos. Entretanto, é impossível esquecer que no Brasil morrem mais pessoas de violência do que em muitas guerras. Trata-se da banalização da morte e espantosa desvalorização da vida. É importante dizer que “A Moça Caetana”, na expressão de Oswaldo Lamartine, ou a “Indesejada das gentes”, conforme Manuel Bandeira, é dolorosa e de difícil aceitação para muitos. Os cristãos convictos afirmam que somente a fé amaina a tristeza e a dor da separação. Quando jovem sacerdote, em Caicó, lá se vão seis décadas, um menino me indagou na sua simplicidade, diante do ataúde de seu avô: “Padre, para onde foi vovô?” Respondi, da maneira mais natural possível: “Ele viajou para perto de Deus. Vai cuidar melhor de você, pois terá mais tempo. Guarde-o bem em seu coração...” Falar é fácil – dizia a mim mesmo – enquanto comentava isso com a criança. O drama da vida não se encerra com o choque do falecimento. Nesse instante, começa uma segunda indagação. Na primeira, questiona-se qual é o sentido da existência, a razão do que se faz no mundo, o significado dos encontros, desencontros, realizações, frustrações etc. Diante da perda de alguém, interroga-se: “qual o sentido daquilo que muitos pensam ser o fim? E quando chegar a nossa vez?” Em geral, tem-se muito ou pouco medo, dependendo da fé. Vale recordar a frase atribuída a Sócrates – condenado à morte pelos cidadãos de Atenas – proferida na hora de beber a cicuta: “Se a morte é um sono sem sonhos, será bom. Se for um reencontro com pessoas amadas que partiram, será melhor ainda. Então, não se desesperem tanto.” Se alguém que não conheceu a ternura de Jesus, falava desse modo, quanto mais os cristãos, que acreditam nas palavras do Mestre: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em Mim, ainda que tenha morrido, viverá” (Jo 11, 25). É preciso tempo para integrar à vida a dimensão da morte. Mesmo sem falar em eternidade, não se pode negar que os mortos queridos vivem em nós, ao lembrar seus rostos, vozes, gestos, risos, os belos e difíceis momentos vividos. Repetem-se no milagre genético, nos filhos e netos, ou se perpetuam pela lembrança. Isso não é tudo. Para quem segue Cristo verdadeiramente encontrará resposta e consolo. “Ele enxugará toda lágrima de seus olhos, não existirá mais morte, não haverá mais luto nem dor” (Ap 21,4).

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

 


Este é a recente pintura que fiz, retratando Capelas e Igrejas do Rio Grande do Norte. Escolhi a Capela da localidade denominada Utinga, que fica numa pequena e antiga povoação de São Gonçalo do Amarante, conhecida como rota para a exploração holandesa no início do século XVII. 

Segundo historiadores registram desde 1638, essa comunidade era conhecida como "Itinga" (que no dialeto tupi-guarani significa água branca), onde existia uma capela, que teria sido construída no mesmo local da anterior, já existente na época do domínio holandês, que deve não ter funcionado em virtude da religião dos invasores, que eram Calvinistas.

A atual capela teria sido erguida por volta de 1730, segundo documentos oficiais, e é dedicada à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. De maneira conflitantes, existem registros de que no frontispício da capela aparece o ano de 1783, 1785, 1687 e representa, provavelmente, a época em que o templo sofreu alguma reforma. A verdadeira inscrição é 1785. 

Vê-se nas suas características e de outras edificações próximas, a indicação da arquitetura do século XVII, o que comprova o período indicado de sua construção. 

Como em muitos lugares do Estado, essa Capela também serviu para a ocupação holandesa. Pelo seu valor histórico foi tombada pela Fundação José Augusto. 

Observam os historiadores: "Provavelmente, a estrada mais antiga do Estado, que ligava Baía da Traição, na Paraíba, até Natal, passava pela capela de Utinga. Outro fato importante é que na localidade de Utinga e na sede de São Gonçalo registrou-se antes mesmo de 13 de maio de 1888, a abolição de escravos".

Por derradeiro, reitero que uma pintura, no estilo naif, não significa um retrato da coisa escolhida, mas uma indicação equivalente à realidade.

 

 

UM CANCRO NO PAÍS –

O apadrinhamento no serviço público está se tornando uma prática viciante, constante e nociva com resultados nada positivos para a economia do Brasil. Não se tem noção de quantos apadrinhados políticos mamam nas tetas da nação, estados e municípios nem dos custos que eles representam para os cofres do erário.

Que tentem justificar que os ditos são recrutados para suprir vagas do serviço público. Pura balela. A carência de funcionários de carreira é suprida mediante concursos públicos. Trata-se aqui da acomodação de apaniguados de líderes políticos em cargos comissionados, atendendo compromissos de campanhas eleitorais.

Diminuir o número de ministérios é uma das primeiras promessas feitas durante as disputas para presidente da República no intuito de conter os gastos públicos. Eis o acontecido nos três últimos pleitos: Dilma criou 30 ministérios; Temer, manteve 29; Bolsonaro, terminou com 23; e, Lula, emplacou 39 no início do governo.

Durante o regime militar, com Castelo Branco na presidência, existiam 10 ministérios; no término da intervenção militar com Figueiredo no comando foram 13 ministérios. O crescimento durante a redemocratização foi significativo, basta comparar os dados acima.

A Constituição de 1988 proíbe e condena a prática do nepotismo na atividade pública nos três poderes da República porque fere os princípios da moralidade e da impessoalidade. Acontece que o desrespeito a essas normas é patente em todas as instâncias do serviço público com maior descontrole nos estados e municípios.

São 44 estatais federais controladas pelo governo e 79 empresas subsidiárias, administradas de forma indireta pela União. Tais empresas servem também de alicerce para acomodar parte desse afilhadismo em siglas a perder de vista como as das agências reguladoras federais: Anac, Anatel, Aneel, Anvisa, Ancine e outras tantas.

Isso sem falar nos Conselhos para definir as orientações estratégicas e aprovação dos planos e negócios das empresas públicas. Acontece que a maioria deles são compostos de pessoas que recebem salários exorbitantes para participar de reuniões esporádicas, comumente, sem a menor qualificação para assumir tais assentos.

O resultado de tudo isso são os rombos nas contas públicas devido aos problemas de gestão e competitividade, além dos gastos com custeio, programas assistenciais crescentes e pessoal. A verdade é que nada pode conter o excesso de despesas com pessoal sem a extinção de cargos e com a manutenção dos apadrinhados.

Presume-se que a ocupação do “cargo de confiança”, que é uma posição que confere ao empregado autonomia para tomar decisões e representar o empregador, seria destinado a alguém da confiança do titular da empresa, desde que utilizando os critérios determinados na lei. Acontece de os critérios estarem banalizados.

Por qual razão os órgãos responsáveis pela lisura pública não controlam essas contratações indevidas, que ferem a Constituição? O que impede o governo de eliminar tais cancros danosos ao erário? Certamente, porque há muito tempo as práticas da impessoalidade e da moralidade deixaram de existir.

Essa é a Lei da Compensação em vigor: enquanto uns “ralam” derramando o suor pelo país; outros se locupletam às custas da dedicação dos primeiros. Fazer o quê?

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José Narcelio Marques Sousa – Engenheiro civil

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

 



OAB-RN – 93 anos depois
CARLOS ROBERTO DE MIRANDA GOMES, Membro Honorário Vitalício

O tempo não arrefeceu os ideais surgidos com a criação dos cursos jurídicos no Brasil, em 11 de agosto de 1827, do que resultou o despertar da ideia de criação de uma Corporação profissional dos bacharéis em Direito brasileiros, formados nas Escolas da Europa, em volta com o natural pendor pelo nacionalismo.
Os Institutos dos Advogados foram os precursores, com caráter mais cultural e depois, sob o clamor da Revolução de 1930, eclodem os procedimentos para a criação da Corporação dos Advogados, propriamente ditas - ou seja, a Ordem dos Advogados do Brasil em todos os pontos cardeais do Brasil.
O Rio Grande do Norte não demorou a aderir à ideia e, no tempo de precedência, o nosso Instituto dos Advogados do Brasil, fundado pelo grande jurista provinciano Desembargador aposentado Hemetério Fernandes Raposo de Mello, após a sessão ordinária realizada no dia 05 de março de 1932, na sala de reuniões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, conclamou os seus pares para iniciar o movimento de criação de uma Secional da OAB, contando com o apoio dos colegas Francisco Ivo Cavalcanti, Paulo Pinheiro de Viveiros, Manoel Varella de Albuquerque, Francisco Bruno Pereira e Manuel Xavier da Cunha Montenegro.
Foi então formada uma diretoria provisória, preenchida com os cargos, respectivamente, de Presidente, Secretário, Tesoureiro e os demais, como vogais, cuja ata inaugurou o Livro próprio de Atas nº1, constando como primeira decisão, publicar editais convocando os advogados, provisionados e solicitadores, para fazerem suas inscrições na nova Corporação recém-criada.

            Recrutados os profissionais da advocacia foi composto o nosso Primeiro Colégio Eleitoral e realizadas as eleições, aprazada a posse para o dia 22 de outubro daquele mesmo ano, reconhecida como data oficial de fundação na 10ª reunião do Conselho da OAB/RN, pelas às 19 horas daquele dia, tendo como integrantes da Primeira Diretoria os seguintes advogados: Presidente – Dr. Francisco Ivo Cavalcanti; 1º Secretário – Dr. Paulo Pinheiro de Viveiros; Tesoureiro – Dr. Manoel Varella de Albuquerque; Vogais – Dr. Pedro d’Alcântara Mattos, que substituiu Dr. Hemetério Fernandes Raposo de Mello, que foi eleito Conselheiro com a maior votação, mas não tomou posse em razão do seu falecimento no dia 30 de agosto (Assembleia dos Advogados em 14 de novembro de 1932) e, por sua vez, substituído em seguida pelo Dr. Alberto Roselli, depois por Phelippe Nery de Brito Guerra e Vicente Farache Netto, tendo como Conselheiro representante junto ao Conselho Federal o advogado João de Brito Dantas. 

No correr do tempo a nossa Corporação foi responsável por incontáveis ações relevantes para a histórica política, intelectual e social do Rio Grande do Norte e os seus atuais integrantes guardam fielmente os mesmos fundamentos que fizeram da Ordem dos Advogados do Brasil, uma Entidade que logrou em definitivo, o apoio da sociedade potiguar, que lhe deu o respeito e a reverência devidos.

PARABÉNS a todos os bacharéis filiados à Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Norte, que completou esta semana os seus 93 anos de existência, agora sob a direção do Presidente Carlos Kelsen.


 

Um escritor amargo que tinha uma biblioteca de nome terno e poético

Lima Barreto deu à sua biblioteca o nome de Limana, substantivo próprio que é quase uma música de um só acorde e significa pertencimento

 atualizado 

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Lima Barreto era um homem difícil, cáustico, magoado, ressentido, sofrido, solitário, briguento, provocador, extremamente lúcido, escrevia em português brasileiro quando isso era um acinte para a bolha literária. O criador de Policarpo Quaresma e Isaías Caminha via as coisas do Brasil com a crueza necessária para mostrar o que se tentava esconder, disfarçar, embranquecer. Lima Barreto viveu pouco, só até os 41 anos, mas escreveu muito, polemizou outro tanto, publicou romances e contos (além de crônicas) que estão em qualquer lista dos clássicos da literatura brasileira, deu voz à periferia, tirou a casca do racismo brasileiro e deixou a ferida sangrar. Escreveu sem academicismo, deu voz à sua própria voz e a dos seus. Lima Barreto brigou com meio mundo, até com Machado de Assis, não exatamente com o escritor, mas com o fundador da Academia Brasileira de Letras. Passou por hospícios pra tentar se livrar do alcoolismo, não se casou, não deve ter tido filhos, se namorou foi muito pouco.

O filho da professora Amália com o tipógrafo e depois almoxarife João tinha uma biblioteca em casa, um cômodo que servia de quarto, escritório, refúgio, sossego. E aí vem a coisa mais terna e doce do amargo escritor que dizia ter a alma de um bandido tímido: ele deu à sua biblioteca o nome de Limana, substantivo próprio que é quase uma música de um só acorde, um poema de uma única palavra, o nome de uma fruta mais o sufixo “na” que tem o sentido do pertencimento. Romana, de Roma, Americana, da América, Machadiana, de livros de e sobre Machado de Assis, Limana, de Lima Barreto. Lima é nome de uma fruta cítrica, ácida e levemente adocicada. Limana é nome feminino, terno, poético.

Numa casa do subúrbio de Todos os Santos, zona norte do Rio de Janeiro, moravam o pai de Lima, o também sofrido João Henriques de Lima Barreto, e os quatro filhos, Afonso, Evangelina, Carlindo e Eliézer. A mãe deles, a professora Amália, morreu jovem, aos 25 anos, de tuberculose. Era filha de escrava alforriada que engravidou, ao que se supõe, de um senhor de escravos, do mesmo modo no qual acabou por surgir o que chamamos de civilização brasileira.

A casa tinha janelões voltados para a rua. Quem passasse na calçada e quisesse assuntar podia ver um cômodo com as paredes cobertas de livros, o que causava certa estranheza, uma admiração confusa – quem naquela casa leria todas aquelas letras? Há quem diga que eram em torno de 700 ou 800 obras, entre livros, revistas, recortes de jornais e manuscritos do autor.

Quando estava em casa, na volta das redações de jornal e das confeitarias e botecos do centro do Rio de Janeiro, Lima se refugiava na Limana. Gostava e cuidava tanto dela que fez um ex libris, como era de costume à época entre os muito letrados. Ex libris, pra quem não sabe, era uma espécie de selo com o qual os donos carimbavam seus livros para indicar a quem eles pertenciam. Um marcador social de letramento. Por certo haverá até hoje quem os tenha. O do Lima foi desenhado por um talentoso artista plástico português chamado Correia Dias que veio para o Brasil em 1914. E que, entre muitos outros feitos, desenhou a capa dos livros da poeta Cecília Meireles, com quem se casou (um amor que resultou em três filhas e uma tragédia, Dias se suicidou).

Mas é de uma palavra linda que trata esta crônica, Limana. A certa altura, Lima decidiu inventariar a Limana. Anotou nome por nome os livros e os manuscritos que ela continha. É de se surpreender que mais da metade das obras de um dos mais nacionalista dos romancistas brasileiros fosse em francês, idioma que o menino criado no subúrbio aprendeu sozinho lendo livros, revistas e consultando dicionários. Mas Lima não fugia à regra: naquela travessia de século, o Brasil ainda bebia na fonte da literatura e do pensamento francês.

Habitavam a Limana, entre tantos outros, Rousseau, Voltaire, Balzac, Flaubert. Havia brasileiros, claro. Machado, Joaquim Nabuco, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, Coelho Neto. Lá estavam também os ingleses (Shakespeare), os russos, por óbvio (Dostoiévski), os portugueses (Camões), espanhóis (Cervantes) e, incrível, entre os alemães, Karl Marx, o que não significava que Lima fosse comunista, apenas que tinha vontade de saber das coisas do pensamento e da inteligência, onde quer que elas estivessem.

Lima tratava os livros de igual para igual. Fazia anotações nas margens das páginas, emprestava-os aos amigos. Mas a biblioteca, o conjunto das obras que ele começou a juntar desde muito jovem, era um corpo único: “Minha Limana cresce lentamente, como as barbas de um pobre-diabo”, ele escreveu, com afeto e certa comiseração. Limana era Lima, Lima existia em Limana. Entrava em casa e ia direto para dentro dela. A atmosfera doméstica era tensa: o pai de Lima, o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto que depois virou almoxarife de hospício, padecia de distúrbios mentais que foram se agravando com o tempo. Pai e filho morreram com uma diferença de 48 horas.

O filho morreu na Limana, repentinamente, recostado na cama lendo a revista francesa Revue des Deux Mondes. O corpo de Lima estava muito maltratado pelo alcoolismo. A alma, não menos ferida, clamando sempre por reconhecimento, gritando sempre contra o triste destino dos negros no Brasil e a indiferença burguesa ao flagrante racismo que ele conhecia na pele, nos traços, no cabelo, nos desprezos constantes.

Com a morte de Lima Barreto, a Limana foi doada ao arquiteto José Mariano Filho, que havia algum tempo tinha se aproximado do escritor e o defendido publicamente em várias ocasiões. Mariano pagou as despesas do sepultamento de Lima e, em agradecimento, a família do escritor doou a Limana para o arquiteto que a levou para sua chácara em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. E ali Limana ficou esquecida por muito anos até que alguém dela se lembrou, mas a essa altura as traças e o mofo já tinham devorado boa parte das obras. O que restou está na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Não conheço nome mais lindo para uma biblioteca, Limana.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.