“DOSSIÊ MEGAEVENTOS” (XIII) – Dra. Lúcia Capanema
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ACESSO À INFORMAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO POPULARES
4.1. Contexto Geral
A literatura e a experiência jurídica nacional e internacional indicam de maneira inequívoca que a principal garantia do pleno exercício dos direitos humanos está na presença de uma sólida organização da sociedade civil, informada e vigilante.
Aparatos legais, agências governamentais cumpridoras da legislação, processos transparentes, evidentemente indispensáveis, ganham outros significados e efi cácia quando grupos organizados, autênticos representantes da sociedade civil, são capazes de se constituir, ampliar suas bases sociais e se fazer representar adequadamente, de modo a poder agir sem constrangimentos e restrições.
No plano internacional, o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que garante, em seu art. 23.1, alínea ‘a’, o direito à participação de todo e qualquer cidadão nos negócios públicos, em qualquer situação (Art. 23 – Direitos Políticos). Especifi camente no contexto de realização de megaeventos esportivos, a Resolução n. 13/2010 do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, conclama igualmente seus Estados-parte a “c) garantir total
transparência nos processos de planejamento e implementação e a efetiva participação das comunidades locais afetadas em tais processos”.
A Constituição Federal, pelo art. 37, determina a publicidade como princípio norteador
da atuação da Administração Pública, destacando ainda que “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social”.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em sua Recomendação n. 07/2001, expressa: “IV – seja contemplada a participação popular em todas as fases dos procedimentos de remoções, deslocamentos e reassentamentos da população (criança, idoso, pessoa com deficiência), garantindo-se a mediação antes dos ajuizamentos das ações judiciais ou mesmo quanto já ajuizadas ações, evitando-se a utilização da força policial e quando esta se fizer necessária, que seja por pelotão capacitado em lidar com esse público;”.
Os próprios órgãos fi scalizadores do governo reconhecem no controle social – participação do cidadão no monitoramento, avaliação e controle das ações da administração pública – ferramenta essencial para a boa aplicação do dinheiro público, e democratização da gestão pública, entendida como forma de promoção da justiça e eqüidade pela decisão pública, e ampliação do acesso à riqueza coletivamente produzida
(Controladoria Geral da União, nov. /2011). No mesmo sentido, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, integrante do Ministério Público Federal, manifesta em sua Recomendação n. 07/2011 ao Poder Executivo, a necessidade de garantia do direito de participação antes, durante e após o ajuizamento de demandas e ações judiciais, com negociação horizontal junto aos sujeitos atingidos pelos megaeventos esportivos40, bem como do direito à informação, com publicidade e transparência de todos os dados, inclusive sobre impactos sociais(41).
Quando autêntica, a participação pública é quase sempre permeada pelo confl ito, interlocução e negociação: partes essenciais e complementares de processos democráticos e participativos. Para tanto, no campo da política urbana, o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001), que regulamenta a Constituição Federal quanto aos objetivos de desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantia do bem-estar de seus habitantes, estabelece um conjunto de instrumentos para a gestão democrática: órgãos colegiados representativos, debates, audiências públicas, consultas públicas e conferências. De maneira explícita, esta lei define a participação popular como requisito essencial para a formulação, execução e acompanhamento
de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, bem como para a aprovação de qualquer projeto, pelas Câmaras Municipais, sobre propostas que interfiram no planos plurianuais, nas leis de diretrizes orçamentárias e nos orçamentos anuais (Arts. 2 e 44). O Estatuto da Cidade estabelece ainda que os vários segmentos da comunidade estejam representados na gestão da cidade, de modo a garantir o controle de suas atividades e o pleno exercício da democracia e da cidadania, garantido o acesso, a qualquer interessado, aos documentos e informações produzidos pelo poder público.
A promoção dos Jogos da Copa 2014 e Olimpíadas 2016 implica em um conjunto de regras e normas estabelecidas em muitos casos, como será mostrado neste relatório, à revelia das leis vigentes no país e de qualquer participação social, e se materializam em grandes projetos que devem gerar profundas transformações na estrutura e dinâmica urbanas. Não 40 “IV – seja contemplada a participação popular em todas as fases dos procedimentos de remoções, deslocamentos e reassentamentos da população (criança, idoso, pessoa com deficiência), garantindo-se a mediação antes dos ajuizamentos das ações judiciais, ou mesmo quando já ajuizadas as ações, evitando-se a utilização da força policial e, quando esta se fizer necessária, que seja por pelotão capacitado em lidar com esse público” 41 “VI – sejam adotadas medidas eficazes de publicidade e transparências dos que precedem os preparativos dos eventos, nas páginas eletrônicas de todos os órgãos públicos, na medida das suas atribuições, incluindo-se dados sobre remoções, deslocamentos e reassentamentos, em cumprimento ao Decreto 7034/09, de 15 de dezembro de
2009, que dispõe sobre a divulgação, através do Portal de Transparência do Poder Executivo Federal, de dados e informações relativos à Copa do Mundo de Futebol de 2014”.
são poucos os atingidos, principalmente quando consideramos os efeitos perversos sobre as cidades como o aumento da valorização imobiliária, concentração fundiária, investimentos públicos dirigidos a interesses privados, e conseqüente expulsão dos pobres de áreas bem servidas de infraestrutura urbana, como é amplamente demonstrado no capítulo Moradia.
Nesse contexto, multiplicam-se em todas as cidades as manifestações de autoritarismo que, à revelia da legislação existente, excluem as populações atingidas dos processos decisórios e, quase sempre, sonegam até mesmo informações básicas sem as quais o próprio exercício do direito de defesa fica comprometido. Numa espécie de institucionalidade paralela ad hoc, uma diversidade de organismos são instituídos em nível
federal, estadual e municipal, tais como grupos gestores, comitês, câmaras temáticas e secretarias especiais da Copa e, até mesmo, no Rio de Janeiro, uma Autoridade Olímpica que ninguém elegeu., Estes organismos e agências, algumas das quais sob a forma de empresa, constituem um governo excepcional, paralelo, cujas decisões estão isentas de qualquer controle social. Ademais, a sonegação generalizada de informações à população – e em especial a grupos e comunidades diretamente impactados pelas intervenções urbanas – revela a instauração de um paradigma extremamente autoritário, de triste memória em um país como o Brasil.
A situação de violação de direitos se agrava quando as intervenções, motivadas por interesses privados, implicam numa profunda reestruturação do território, resultando em remoções de moradores, expulsão de trabalhadores informais, interdições de mobilidade ou intensa militarização, sem que exista qualquer forma de consulta prévia às comunidades afetadas.
Comitês Populares da Copa protestam na Bienal do Livro em Brasília.(53)
Os mecanismos de gestão apresentados seguem o modelo do empresariamento urbano e demonstram a ativação de uma espécie de “democracia direta do capital”, com ausência de participação social, mas ingerência constante do mercado, minando a noção de planejamento pactuado. Nas parcerias público-privadas tudo é permitido, à exceção da participação da sociedade civil organizada e do controle social. A “flexibilização”, leia-se desconhecimento das regras sobre procedimentos de democracia participativa e suspensão casuística da legislação vigente, é uma das dimensões do autoritarismo característico dos processos decisórios em curso, em que a retórica da efi ciência e o recurso a supostas“exigências técnicas” pretendem homologar planos e projetos longe de processos substantivos de audiências e consultas públicas. Ali e quando alguma audiência é convocada, o que se instaura é a farsa, em razão da total ausência de informação, que inviabiliza uma participação qualificada dos atores populares.
Informações sobre os processos de preparação para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 não são apenas negadas à população em geral, mas mantidas secretas até mesmo para os órgãos de controle do próprio Estado, como o Ministério Público.
Os parcos dados contemplados na Matriz de Responsabilidades do governo federal encontram-se gravemente desatualizados. Registramos ainda ausência de projetos básicos, obras sem o mínimo detalhamento. Também comprometem a informação e participação: • Urgência para a realização das obras em função de compromissos firmados com entidades privadas (como a COI e FIFA), utilizada como justificativa para o atropelo de processos de participação e controle social, inclusive previstos em legislação, como a realização de audiências públicas.
• Negociações e diálogos realizados com empresas privadas e representantes de interesses restritos, como da construção civil e do mercado imobiliário, enquanto é negado o direito à informação e participação à população, inclusive para aqueles atingidos diretamente pelas decisões tomadas.
• Recusa sistemática da parte do Estado brasileiro em estabelecer processos de diálogo horizontal com os grupos sociais e comunidades ameaçados.
• Recusa sistemática de aceitar processos de negociação coletiva, através de estratégicas que buscam individualizar os processos de desapropriação e remoção compulsórias, num claro desafio ao direito de organização e representação coletivas.
• Restrição do acesso ao apoio jurídico para populações atingidas, e mesmo desinformação – fornecimento de informações contraditórias ou falsas quanto às formas de ter direitos assegurados nos processos de implementação das decisões.
• Desconhecimento e omissão quanto às particularidades socioeconômicas e culturais dos grupos atingidos, e aos impactos de grandes obras sobre processos sociais complexos.
• Ausência ou absoluta insuficiência de estudos necessários, como Estudos de Impacto de Vizinhança – EIA e Estudos de Impacto Ambiental – EIA, que, quando realizados, seguem procedimentos simplificados, fragmentados e sem ouvir a população atingida.
Em síntese, pode-se afi rmar que a centralização dos processos decisórios, o autoritarismo, a desinformação sistemática conformam um padrão sistemático de violação dos direitos à informação e participação.
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