Bíblia, Palavra divina e humana
Padre João Medeiros Filho
A Igreja dedica o mês de setembro à Sagrada Escritura, em homenagem a São Jerônimo (que a traduziu do aramaico, hebraico e grego para o latim), cuja festa litúrgica é celebrada no dia 30. A Bíblia é Palavra divina e literatura. Apresenta peculiaridades distintas dos estilos literários clássicos. Não raro, verifica-se uma visão distorcida dos textos sagrados. Alguns os concebem de forma literal, isto é, apenas denotativa e não conotativamente. Por meio deles, Deus fala ao ser humano. Isto não significa que nada pode ser questionado. Há uma dimensão metafórica nos Livros Inspirados. É importante saber em que consistem inerrância e inspiração bíblicas, até onde vão sua compreensão e extensão. A forma literária, os discursos, contextos culturais e históricos não são necessariamente inspirados do ponto de vista bíblico-teológico. Tais elementos consistem no contributo das comunidades da época. Dir-se-ia que o Antigo e o Novo Testamento são uma obra em coautoria. O homem dá a sua colaboração, presente no estilo e no modo de narrar ou escrever. Deus inspira conteúdo e mensagem. A literatura tem uma força própria de expressar a realidade, de maneira rica em significados simbólicos. A poesia, em especial, consegue fazê-la de um modo que a linguagem habitual não realiza. A Bíblia é como um grande poema. Há muito mais do que lemos num texto poético. Assim é a Sagrada Escritura. Com o advento dos métodos históricos e críticos (em especial, a “formgeschichte”, teoria das formas), tem-se uma abordagem mais realista dos Textos Sagrados, enquanto produção literária, fazendo superar leituras fundamentalistas e ingênuas. Sem perder o caráter sacro, vai se revelando paulatinamente tecida por mãos humanas. Não se pode esquecer que os escritos bíblicos foram concebidos e grafados, ao longo de séculos, em línguas desconhecidas pela maioria dos leitores atuais. A partir de novas luzes das ciências, identificaram-se nos Livros Inspirados vários estilos e gêneros neles utilizados. Descobriram-se tradições religiosas subjacentes, métodos como os autores trabalharam ao escrevê-los, bem como estruturas literárias e formas. Assim, surgem as abordagens da Sagrada Escritura, sob diversas perspectivas: teológica, sociológica, literária, histórica, antropológica-cultural etc. São enfoques que se completam e ajudam o leitor a penetrar mais profundamente nos Testamentos, percebendo ali a mensagem da Palavra divina. É preciso possuir certos conhecimentos para adentrar no mundo dos Textos e descobrir a mensagem salvífica e libertadora – que se encontra por trás das palavras – revestida de linguagem humana e carga cultural, implícita em qualquer forma de literatura. Isto permite distinguir aquilo que é classificado pelos exegetas e hermeneutas como: “o dito” e “o afirmado.” Há vários exemplos dessa diferença. Veja-se a narração do capítulo 11 do Levítico. Ali, proíbe-se ao povo da Antiga Aliança o consumo de carne suína. Tratava-se, dentro do contexto daquele tempo, de uma proteção à saúde. A mensagem bíblica atualizada não recomendaria, atualmente, o consumo de alimentos gordurosos, processados, contaminados com agrotóxicos, cheios de conservantes e corantes, danosos ao ser humano. A proibição religiosa de ingerir, à época, carne de porco (dito) traz uma mensagem: evitar alimentos nocivos à vida, dom precioso de Deus (afirmado). Assim, a Bíblia é literatura no tocante ao dito. E quanto ao afirmado, é teologia, mística, espiritualidade e Ética. A mensagem está contida no afirmado. E aqui reside a inerrância bíblica, garante a Igreja. O dito é a roupagem literária daquilo que se quer transmitir a mensagem perene (o afirmado). Importa saber que na Sagrada Escritura Deus se faz presente, mesmo quando não referido explicitamente. Cada livro bíblico possui estreita relação com o contexto de origem. Apesar de possuir objetivos e destinatários definidos, tem uma mensagem universal e atual. Por fim, propõe um modo de proceder (Ética e Moral), um saber (conhecimento teológico) que decorre da fé em Deus. Isto faz dos livros bíblicos uma literatura especial, que lhe permite ser chamada Palavra de Deus, revelada aos homens. E no tempo e na história humana, o “Verbo [Cristo] se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14). Jesus é a Palavra Viva, diante da qual expressou Pedro: “A quem iremos, Senhor, só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).
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