O que é o Direito?
Giorgio Del Vecchio (1878-1970), em suas famosas “Lições de Filosofia do Direito” (a edição que possuo é de 1979, portuguesa, da editora Arménio Amado), nos conta que Immanuel Kant (1724-1804) certa vez afirmou: “Ainda procuram os juristas uma definição do seu conceito de Direito”. Mesmo passados tantos anos, a afirmação, parece, não perdeu o seu valor.
A verdade é que, de modo aproximado (e, sobretudo, leigo), todos nós temos a noção do que seja o Direito. Todavia, uma definição precisa dele, ao mesmo tempo abrangente, para atender a todos os imperativos filosóficos e também à realidade jurídica, ainda está longe de ser alcançada, ao menos em termos universalmente aceitos.
Aliás, dependendo do “approach” (como dizem os ingleses), da forma como o estudioso encara o Direito, o seu conceito dele pode variar incomensuravelmente. Com isso quero afirmar que, encantado por uma determinada escola filosófica, o jurista moderno pode cair no equívoco de tomar essa escola como incontestavelmente verdadeira e, assim, não enxergar no Direito uma natureza (ou sequer um diferente matiz) que ele, de fato, possui.
Para se ter uma melhor compreensão do afirmado acima, vejamos, de modo bastante sucinto, como as escolas jusfilosóficas (escola do direito natural, positivismo, escola histórica, escola sociológica, realismo jurídico, para ficar apenas em alguns exemplos), têm visões diferentes desse mesmo fenômeno que convencionamos chamar de “Direito”.
Comecemos pela escola do direito natural (em seguida contraposta ao positivismo), que é representada, através dos tempos, por pensadores como Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, Hugo Grotius, São Tomás de Aquino, Rousseau, John Locke, Del Vecchio, Lon Fuller, Ronald Dworkin, John Finnis e por aí vai. Os jusnaturalistas defendem, em linhas gerais e respeitadas as muitas variantes, a existência de um direito natural, de um direito fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou mesmo na nossa relação com Deus, que preexiste ao Direito que é produzido pelos homens ou pelo Estado e que deve ser sempre respeitado.
Já o positivismo jurídico - e aqui devem ser compreendidas as suas principais tendências, normativista, codicista, jurisprudência analítica, decisionismo; e seus principais estudiosos, como Thomas Hobbes, John Austin, Hans Kelsen, H. L. A. Hart, entre muitos outros - contrapõe-se à ideia de um direito natural. O Direito é positivo, no sentido de que é criação do homem. Enquanto que os jusnaturalistas se ocupam do fundamento e legitimação do direito positivo, baseando sua validade no respeito aos princípios e valores absolutos, aos positivistas interessa apenas a averiguação dos pressupostos lógico-formais de sua vigência. Kelsen, por exemplo, baluarte da tendência normativista, exalta a norma jurídica, ponto em torno do qual gira toda a sua concepção do Direito.
Por sua vez, a escola histórica, nascida na Alemanha, tendo como principais representantes Gustav Hugo, Savigny e Puchta, emerge como uma contraposição tanto ao jusnaturalismo, pois não acreditava na preexistência de um direito, pronto e acabado, já “escrito no firmamento”, como à visão positivista de um sistema infalível, criado pelo homem e em regra codificado. Negando a ideia de um direito eterno e universal e a onipotência do legislador, a escola histórica afirma ser próprio das instituições jurídicas conformar-se aos fatos e circunstâncias do momento e do lugar. Elas (as instituições jurídicas) são produtos dos costumes e da história de um povo.
Já a escola sociológica americana, um dos mais significativos pensamentos jurídicos surgidos no século XX, representada por juristas como Roscoe Pound e Julius Stone, defende que o Direito é ou deve ser a maximização das necessidades sociais e a minimização dos custos e tensões sociais. A função do Direito na sociedade, como espécie de ferramenta para tanto, é alcançar um equilíbrio entre liberdade e controle, incentivo e proibição, permitindo às pessoas conviver em sociedade com o mínimo de atrito e perda de energia, usando dessa (da energia) para obtenção do melhor resultado social possível.
Outro modo de encarar o Direito foi desenvolvido pelo chamado “realismo jurídico americano”. A ideia-chave do realismo jurídico está na famosa frase do livro “Common Law” (de 1881), de Oliver Wendell Holmes Jr. (considerado um dos primeiros “legal realists”): “a existência do Direito não tem sido lógica; tem sido experiência”. E o mesmo Holmes completa: “As previsões sobre o que as cortes decidirão de fato, e nada mais pretensioso, são o que eu entendo por Direito”. Para os realistas, o Direito consiste em um conjunto de decisões tomadas por pessoas detentoras de uma parcela do poder do Estado, chamadas de “juízes”. E os juízes decidem, em verdade, de acordo com as suas preferências políticas ou morais, para só depois apontarem uma regra jurídica como uma racionalização.
Há, evidentemente, visões “ecléticas” do Direito, aquelas que não se encaixam nos moldes de uma só escola jusfilosófica, enxergando o fenômeno (do Direito) por uma perspectiva mais variada. O jurista e juiz americano Benjamin N. Cardozo é um exemplo disso. Em um viés positivista, em “The Nature of the Judicial Process” (obra de 1921), ele afirma que há momentos em que a fonte do Direito é óbvia: “a regra que se enquadra no caso deve ser fornecida pela Constituição ou por lei”. Mas sua filiação ao positivismo não é completa, pois aponta o bem-estar social como razão final do Direito, defendendo que a regra jurídica contrária àquele fim não é aceitável. E ele também empresta apoio ao realismo, ao reconhecer “a criação do Direito pelo juiz como uma das realidades existentes da vida”.
Bom, e com quem estaria a razão? Depois de vermos essa confusão toda, acho que com Kant: os juristas não têm (ainda) uma definição precisa do conceito de Direito.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP
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