segunda-feira, 8 de junho de 2015


   
Marcelo Alves


Sobre Savigny

No meu tempo de UFRN, coisa de começo dos anos 1990, o alemão Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) era um dos juristas mais badalados. Sobretudo nas aulas de direito civil, mais especificamente de direito das coisas, ouvia-se muito falar de Savigny e da sua teoria subjetiva da posse, que exige o tal “animus domini” para a configuração dessa, em contraposição à teoria objetiva de Rudolf von Ihering (1818-1892). Segundo me recordo, entendíamos muito pouco o porquê dessa discussão quase sem fim (com a cabeça em coisitas muito mais interessantes, pelo menos esse era o meu caso, confesso). 

Friedrich Carl von Savigny nasceu em Frankfurt am Main (Frankfurt sobre o rio Meno, para quem não sabe), principal cidade do à época principado alemão de Hesse (que hoje é um dos dezesseis estados da República Federal da Alemanha). Embora tenha ficado órfão muito cedo, sua família fazia parte da “aristocracia” de então, com raízes na região francesa da Lorena. Em 1795, com apenas 16 anos, Savigny iniciou seus estudos de direito na Universidade de Marburg. Estudou também nas prestigiosas universidades alemãs de Iena e Leipzig, voltando a Marburg para concluir seu doutorado em 1800. Casando-se em 1804 com Kunigunde Brentano (1780-1863), que pertencia ela própria a uma família de literatos, Savigny viajou bastante pela Europa continental, sobretudo pelo sul da Alemanha e pela França, em muito aprimorando os seus conhecimentos do direito romano. Foi professor em Marburg e na Baviera. A partir de 1810, por indicação do fundador Wilhelm von Humboldt (Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, Barão von Humboldt, 1767-1835), foi professor da cadeira de direito romano da então Universidade de Berlim (hoje “Humboldt-Universität”). Ali, foi um dos fundadores do curioso “Spruch-Collegium”, espécie de tribunal extraordinário criado para emitir pareceres em casos a ele encaminhados pelos tribunais judiciais ordinários. Li não sei onde que os irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) e até mesmo Karl Marx (1818-1883) foram seus alunos. Deixou a cátedra em 1842, nomeado Ministro da Justiça da antiga Prússia, cargo que ocupou até 1848. 

Savigny é autor de vários títulos. De 1803 é o badalado “Tratado da posse” (“Das Recht des Besitzes”), que foi imediatamente um sucesso de público e crítica. De 1814 é o não menos importante “Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência” (“Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft”), sobre o qual voltaremos a falar mais à frente. Sua celebrada “História do direito romano na Idade Média” (“Geschichte des römischen Rechts im Mittelalter”) foi publicada entre 1815 e 1831. Os oito volumes do seu “Sistema do direito romano atual” datam de 1840 a 1849. Em 1850 é publicada uma coletânea, com cinco volumes, com muitos dos seus trabalhos mais curtos (“Vermischte Schriften”). De 1853 é o seu “Direito das obrigações” (“Obligationenrecht”). Savigny foi ainda editor (juntamente com Karl Friedrich Eichhorn e Johann Friedrich Ludwig Göschen), de 1815 a 1850, da prestigiosa “Revista para a história da ciência do direito” (“Zeitschrift für geschichtliche Rechtswissenschaften”). E por aí vai. 

Savigny é, sem dúvida, um dos maiores juristas alemães de todos os tempos (e, especialmente, uma figura luminar do século XIX). O seu legado, podem ter certeza, não se resume à querela sem fim com Ihering sobre o conceito da posse. Na verdade, a maior contribuição de Friedrich Carl von Savigny ao direito está na criação/desenvolvimento da chamada “Escola Histórica do Direito”, concebida na Alemanha, que ali teve como principais representantes, além do próprio Savigny, os juristas Gustav von Hugo (1764-1844) e Georg Friedrich Puchta (1798-1846). 

Sobre a “Escola Histórica do Direito”, já tive a oportunidade de escrever aqui. No que toca à Alemanha, ela veio como uma resposta ao desejo “nacional”, em 1804, da adoção de um Código Civil alemão, que seria uma réplica do Código Napoleônico e um símbolo da unidade da nação. Essa tendência, à época, encontrou expressão em panfleto (“Sobre a necessidade de um direito civil geral para a Alemanha”) de autoria do grande civilista Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840). Foi em resposta a esse movimento que Savigny publicou o seu já citado “Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência”, no qual defendeu a ideia de um crescimento “histórico-orgânico” do Direito, dependente da “consciência sócio-jurídica espontânea” existente na sociedade. O “movimento” histórico do direito foi, por um prisma, uma contraposição ao jusnaturalismo, pois não acreditava na preexistência de um “Direito”, pronto e acabado, já “escrito no firmamento” ou inteiramente construído pela razão. Foi, também, em outro sentido, uma reação à visão positivista de um sistema infalível (em regra codificado). Negando a ideia de um “Direito” eterno e universal e a onipotência do legislador, a escola histórica afirmava ser próprio das instituições jurídicas conformar-se aos fatos e circunstâncias do momento e do lugar: elas (as instituições jurídicas) são produtos dos costumes e da história de um povo. 

Bom, embora se possa fazer críticas ao pensamento de Savigny (nesse ponto, remeto o leitor ao meu artigo “Uma visão histórica do Direito”), a verdade é que ele foi um “prussiano” arretado. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador da República
Mestre em Direito pela PUC/SP
Doutorando em Direito pelo King’s College London - KCL

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