quinta-feira, 29 de maio de 2014




O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: SUA FORÇA E SUA FRAQUEZA

Uma  proposta de reflexão coletiva para o OBSERVATÓRIO DA SAÚDE DO DF (Parte  I)
Geniberto Paiva Campos -  maio/2014, médico em Brasília, DF

1)      Um breve histórico da trajetória do SUS 

Decorrido um quarto de século da existência e do funcionamento do SUS/Sistema Único de Saúde brasileiro,  urge fazer permanentes  avaliações do Sistema e o impacto  da sua implantação na Saúde Pública do país.

Esta frase deveria soar como um chamamento, talvez um alerta, para todos os cidadãos preocupados com a formulação e a execução de políticas sociais, potencialmente capazes de corrigir as graves distorções e desigualdades prevalentes no modelo de desenvolvimento  adotado no Brasil nas últimas décadas.

A criação do SUS, no momento em que o Brasil reencontrava o caminho da Democracia, após décadas de turbulências político-institucionais, representa a vitória de um grupo de sanitaristas engajados na luta pelas garantias do acesso à Saúde como direito de cidadania e dever do Estado, finalmente, expresso como norma constitucional.

Entretanto, o Sistema Público de Saúde vem, ao longo do tempo, enfrentando  dificuldades para exercer em plenitude o que está expresso na letra e no espírito da Constituição Cidadã, promulgada em 1988.  Problemas que,  pela sua complexidade,  merecem análises atentas a partir do entendimento de que o Estado brasileiro sofreu mudanças e inflexões significativas, quando da  inserção do Brasil como mercado emergente  da economia global.

Transcrevendo  Octávio Ianni (1997):  este é o contexto em que se desenvolve a reestruturação do Estado compreendendo a desestatização, a desregulação, a privatização e a  abertura dos mercados. Redefine-se, de alto a baixo,  a estrutura do aparelho estatal de modo  a fornecer e dinamizar a transnacionalização da indústria, da agricultura, do comércio e do sistema bancário.”

Em seu nascedouro o SUS, originário de concepções corretas e socialmente justas, atribuiu à iniciativa estatal praticamente toda a carga de responsabilidade na organização e na oferta  dos serviços de Saúde. Cabendo ao setor privado o papel de sistema suplementar, previsto na nova Constituição. Simultaneamente, a prática médica passava por profundas modificações, incorporando, com surpreendente rapidez, e consequentes aumentos de custos, novos conhecimentos científicos e tecnologias diagnósticas e terapêuticas, antes impensáveis. A conjunção desses fatores impactou fortemente o SUS ao longo da sua existência. E é possível perceber o crescimento lento e inexorável do Sistema Suplementar, colocado como alternativa ao Sistema Público.

Se considerarmos o governo José Sarney – 1985/89 – como um período de transição para a normalidade democrática e reconstitucionalização do país, a eleição de Fernando Collor – 1990/92 – substituído pelo seu vice, Itamar Franco – 1992/93 – marca um período de forte questionamento do Estado¸ com objetivos de modernização da sociedade brasileira e o sempre esperado “salto para o Desenvolvimento”. Os governos subsequentes, dispondo, a partir de 1998, do estatuto da reeleição, continuaram, apenas com diferentes nuances, esse questionamento da missão do Estado como indutor e executor de políticas públicas. Os governos Itamar Franco/Fernando Henrique Cardoso propiciaram o controle racional do processo inflacionário, dotaram o país de uma moeda forte, o Real, mas seguiram a trilha do neoliberalismo. Os governos subsequentes, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef promoveram consistente inclusão social. Com esforços evidentes para fazer do Estado o elemento indutor do desenvolvimento. Mas, em essência, respeitaram os cânones do neoliberalismo ortodoxo. E nenhum deles, no espaço de 20 anos dos seus mandatos,  lograram fazer do SUS um programa efetivo de Saúde Pública. O SUS persistiu enfrentando todas as dificuldades impostas pelo aparato legal que nega ao Estado tornar-se efetivo na implantação e no desenvolvimento de  políticas públicas.

 O impacto dessas novas concepções no âmbito do Congresso Nacional foi  muito intenso. A elite brasileira, ou se preferirmos, a classe dominante, sobretudo aquela  representante do capitalismo financeiro, rentista  e não produtivo, percebeu que o controle da “fábrica de leis” – senado e câmara federais – tornara-se a arena decisiva para o caminhar seguro do processo de modernização, de acordo com o seu ponto de vista e interesses de classe. Alguns experientes analistas políticos afirmam que o maior partido do Congresso é o “partido do empresariado”.   A tudo isso o SUS  vem conseguindo resistir, a duras penas. O episódio da CPMF, em 2007, é emblemático. Recursos substanciais, cerca de 40 (quarenta) bilhões anuais, foram retirados do SUS, por decisão do Congresso Nacional, decisão  amplamente comemorada, sem nenhum pudor, por parlamentares eufóricos. Que defendiam, e ainda defendem, com boa dose de cinismo, “mais recursos para a Saúde Pública”. O retrato mais evidente da ambiguidade que permeia os “apoiadores” do nosso Sistema de Saúde. O êxito de um programa de saúde pública, sob liderança estatal e com forte enraizamento popular, é algo a ser evitado como anátema. Os impasses do SUS, seus avanços e recuos, decorrem em boa parte dessa concepção. Declara-se apoio puramente retórico ao Sistema, ao mesmo tempo em que criam-se as amarras  legais que, na prática, impedem o seu funcionamento.

2)      O SUS  visto por dentro

Dos princípios que norteiam o SUS, dois deles resumem os seus nobres objetivos, enquanto programa social: 1. UNIVERSALIDADE  da cobertura: TODOS  os cidadãos brasileiros passaram a ter direito de acesso à assistência à saúde;  2. INTEGRALIDADE  das ações de Saúde: significando atuação em TODAS as etapas do processo Saúde/Doença, a saber, prevenção/diagnóstico/tratamento/reabilitação/cuidados paliativos. Ações assumidas, constitucionalmente, como DEVER DO ESTADO.

Outro importante aspecto, este de ordem estratégica, estabeleceu o MUNICÍPIO  como núcleo responsável pelas ações de Saúde, criando-se, em consequência, um processo irreversível de descentralização, pulverizando as ações do Sistema Único em milhares de estruturas estanques. Sem tempo para a criação de uma definição doutrinária precisa, cada município, boa parte deles sem nenhuma tradição ou experiência prévia com as complexas questões sanitárias, com o campo da saúde em permanente mudança, via-se compelido a criar as condições para a organização e operacionalização de um sistema de atenção à saúde, atuando, por imposição legal, em todos os níveis de complexidade primário, secundário e terciário, conforme estipulavam as normas administrativas vigentes. Nesse aspecto, a Federalização foi levada às últimas consequências.  As instâncias de articulação ,criadas em decorrência do esvaziamento político e administrativo das Secretarias de Saúde -  comissões bi e tripartites – não se mostraram eficazes em promover a harmonia funcional do Sistema. Instâncias efetivas de permanente avaliação das ações  foi o elemento que esteve de todo ausente, ou não conseguiu mostrar sua indispensável atuação na regulação e controle do Sistema. Gerando, muitas vezes, ineficácia, desperdício de recursos e incapacidade operacional.

Como exemplo desse descompasso do Sistema, após mais de duas décadas de funcionamento, aproximadamente 800 (oitocentos) municípios brasileiros não dispunham de  médicos ou condições mínimas de infraestrutura assistencial. O que gerava justas reclamações da população desassistida e graves preocupações das prefeituras, legalmente responsáveis por essa omissão. Importante lembrar que foi este fato que levou a Associação Nacional de Prefeitos a criar o movimento “Cadê o Doutor?”, o qual teve como pronta resposta do Ministério da Saúde a criação do programa “Mais Médicos” em 2013, gerador de sérias polêmicas e conflitos com as entidades de representação da classe médica.

O acervo de realizações do SUS é um fato incontestável. O elevado número de procedimentos médicos e cirúrgicos é contado em milhões. Sem o SUS, um imenso contingente de renais crônicos ficaria sem assistência e com a sua sobrevida em risco. E um número elevadíssimo de cardiopatas evoluiriam para situações terminais da sua doença cardiovascular. São evidentes as modificações no perfil  epidemiológico do país, ocorridas nas últimas décadas e que tiveram a participação direta ou indireta do SUS. Cabe então a pergunta: por que o SUS não é percebido positivamente pela população carente como um Sistema  de efetiva prestação de assistência integral à saúde?

Quais as medidas a serem adotadas no sentido de corrigir os rumos do Sistema? Talvez seja correto apontar correções no âmbito externo, isto é, o aparato estatal e na organização interna do próprio SUS, enquanto sistema prestador de serviços, na complexa e desafiadora área da saúde. E focar todas essas medidas de correção desde o ponto de vista do usuário, a razão da existência do Sistema Único de Saúde.

(Caberia uma indagação pertinente nesta análise: por que as instituições públicas de  saúde, de êxito inegável  nas esferas assistencial, de ensino e pesquisa “fogem” do modelo estatal ortodoxo de organização? Provavelmente porque  seriam submetidas, neste modelo, a dificuldades intransponíveis, em função do controle draconiano de organismos criados com o alegado intuito de defender a correta aplicação de recursos públicos, mas que na prática inviabilizam o seu funcionamento. Várias instituições de excelência podem ser citadas. Todas adotando modelos de fundação, associação, parcerias público/privadas, entre outras modalidades).   – FIM DA 1ª PARTE –  

3)      QUEM SÃO OS “INIMIGOS” DO SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE?       (Parte II do texto)

Pelas considerações emitidas na primeira parte do presente artigo, os “inimigos” do SUS poderiam  ser classificados em 2 categorias: externos e internos. Se essa análise corresponder à realidade, caberia, então, fazer as necessárias e imprescindíveis mudanças: 1. no ambiente interno, aparentemente mais fácil de ser realizada; e 2. no ambiente externo,  por motivos óbvios  de bem mais difícil alcance. Esses adversários do Sistema poderiam ainda ser classificados em reais (mas disfarçados) e aparentes.

 A remoção dessas dificuldades ao desenvolvimento do Sistema passa por um pesado  e complexo jogo político. Que, logicamente, começaria pelas mudanças no âmbito interno. Corrigindo falhas estruturais e operacionais do Sistema. É fácil perceber que o Sistema Único de Saúde representa, nos dias de hoje, uma  pesada máquina administrativa, tendo incorporado, ao longo do tempo, vícios e virtudes. Pelas diferenças regionais, com características culturais próprias de cada macro região, o Sistema Único, naturalmente, adquiriu certas nuances na esfera administrativa e na forma de prestação de serviços assistências. São fatores a serem levados em conta, frente a eventuais mudanças no Sistema.

Para alguns analistas e militantes da Saúde Pública o SUS precisa ser “reinventado”. Este um termo que  causa algum tipo de repulsa ás lideranças tradicionais do Sistema, que imaginam o SUS um produto perfeito e (bem) acabado, necessitando, no máximo, de pequenas correções de rumo. É possível que tenha chegado a hora de se criar um FÓRUM PERMANENTE DE AVALIAÇÃO DO SUS. Escrutinando o seu ambiente interno e também o ambiente externo, nos quais, sabemos, residem uma série de obstáculos ao pleno funcionamento do Sistema.

A serem avaliados: no ambiente externo

Nenhum comentário:

Postar um comentário