RECORDANDO
OS VENDEDORES AMBULANTES E SEUS PREGÕES MATINAIS
(Ormuz Barbalho Simonetti)
Nos
últimos dias de dezembro do ano passado, almoçava com meu amigo Levi Bulhões,
quando surgiu em meio à conversa, lembranças dos vendedores ambulantes de
antigamente. Todas as vezes que nos reunimos para jogar conversa fora, o
passado está sempre presente. Saudosistas irrecuperáveis, costumamos lembrar
esse período de nossa adolescência, que contribuiu de maneira positiva para a
formação de nossa cidadania.
Sejam
pelas inúmeras passagens ocorridas na esquina da Rua Princesa Isabel com a
Apodi, onde outrora existia a “bodega de Floriano”, ou pelos antigos carnavais,
quando participávamos dos chamados blocos
de elite, entre eles Lord’s e Apaches, ou mesmo as lembranças do cotidiano,
vivenciadas pelas calçadas da vida.
A
bodega de Floriano exerceu um papel tão importante nas nossas vidas, que seus
frequentadores, no desejo de manter a união daqueles amigos, criaram uma
espécie de confraria. Todos os anos, na segunda semana de dezembro, nos
reunimos para um almoço de confraternização onde as lembranças e relembranças, predominam
nossas conversas. Costumam participar dessa confraternização nossas esposas e
filhos.
Temos
praticamente a mesma idade e somos amigos desde o início de nossa adolescência.
Por essa razão, compartilhamos das mesmas lembranças de uma cidade-capital, que
nos anos 60 e 70, mais parecia uma cidadezinha com cara e jeito de interior.
Eu,
morando na Av. Deodoro e ele na Rua Princesa Isabel, tivemos oportunidade de
conviver com esses incríveis personagens, que fizeram parte da história da
velha cidade, de nossa infância e adolescência.
No
dizer do meu amigo e confrade Jurandyr Navarro, voltar ao passado, é antes de
tudo, uma doce recordação. Não há nada mais terno e emotivo, que procurar o
tempo perdido, envolto a ilusões despedaçadas.
Pois
bem, foi recordando o passado, que lembrei da figura do vendedor de verduras. Ainda
bem cedinho, ouvia sua voz forte e melodiosa: verdureeeeiro!..., com um andar dolente e cadenciado obedecendo o
ritmo imposto pelo vai e vem dos balaios, soltava a voz pelas ruas na amanhecença
da cidade: verdureeeeiro!..., olha a verdura madame, tudo bem novinho...,
verdureeeeiro!
O
mercado central ou mercado da cidade, destruído por um incendiou nos anos 60, abastecia
a maioria desses ambulantes. Ficava onde hoje funciona a agência do Banco do
Brasil, na Avenida Rio Branco. Era lá onde o verdureiro se abastecia dos diversos
produtos que comercializava, antes de ganhar as ruas da cidade, em vendas
diária de porta em porta.
Lembro-me bem de sua figura. Homem alto, magro, moreno claro,
usava um surrado chapéu de palha de abas largas e calças arregaçadas até o meio
das canelas. No ombro, um tufo de pano para aliviar as dores causadas pelo pau do galão, que sustentava os dois conjuntos
de pesados cestos, onde cuidadosamente eram arrumados, os produtos que vendia.
Num dos cestos maiores, que ficavam na base da pirâmide, colocava talhadas de jerimum
de leite ou caboclo, batata doce, macaxeira, inhame, cebola, coco seco e produtos
que não estragasse em contato com os demais. No outro cesto, frutas sazonais,
feijão verde, que era vendido em “molhos”, legumes tais como cenouras, repolhos,
batata inglesa, maxixes, quiabos etc. Nos cestos do meio, vinha o chamado
tempero verde: cebola verde, coentro, pimentão, tomates e ainda folhas de couve,
alface etc. No derradeiro cesto, por ser o menor e mais raso, era reservado às
especiarias: cravo, canela, gengibre, pimenta do reino e algumas raízes usadas
na confecção de chás e garrafadas. Também ali eram penduradas grossas tranças
de cabeças de alho.
Sempre fazia o mesmo caminho. Saia
do mercado da cidade, subia a Rua Ulisses Caldas na altura do Armazém Natal e
chegava a Avenida Deodoro. Passava em frente a minha casa, de número 622, que
ficava em frente “A Palhoça”, do saudoso João Damasceno. De lá, perdia-se por
entre as ruas dos bairros de Petrópolis e Tirol, só retornando no dia seguinte,
na mesma hora e anunciando o mesmo pregão:
verdureeeeiro!
Havia também o vendedor de manguzás, ou munguzás, ou ainda “chá
de burro”, como também era conhecido, um mingau feito de milho com leite de
coco, temperado com açúcar e canela. Muito apreciado, na época fazia parte do
desjejum de inúmeras famílias. Utilizava a mesma técnica do verdureiro, na
condução do seu produto. Nas extremidades do pau de galão, preso por cordas, conduzia dois caldeirões de
alumínio. Na mão, uma grande concha para servir a iguaria, geralmente comprada
em generosas porções, para atender a toda a família, por ocasião do café da
manhã, ou no jantar.
Por cima da roupa, vestia um avental branco já meio
encardido pelo tempo e pelo uso, com dois grandes bolsos onde colocava o
apurado. Na cabeça, um chapéu de pano, evitava que algum indesejado cabelo,
aterrissasse indevidamente no prado do freguês. Anunciava seu produto com um pregão um tanto esquisito: nunca falava
o nome do que estava vendendo, gritava apenas “tem coco!”, e a freguesia já
sabia que se tratava do gostoso manguzá.
Na esquina da Rua Ulisses Caldas com a Avenida Deodoro, onde
ainda existe o colégio da Imaculada Conceição, era ponto de alguns ambulantes.
O mais famoso deles era Prego, um vendedor de poli – o picolé da época -, que
atendia por esse apelido. Nunca soube o seu verdadeiro nome. Diziam que era agricultor
e chegou a Natal retirante, fugindo de uma seca braba na região do Seridó, onde
morava com mulher e filhos. Nunca mais voltou. Da família, não teve mais
notícias. Apenas algumas lembranças que se perderam no tempo, juntamente com o
sofrimento vivenciado durante as constantes secas, que enfrentou naquele
longínquo sertão.
Morava lá pros lado das Rocas, bairro pobre que se
desenvolveu as margens do Rio Potengi, onde adquiria em uma pequena fabriqueta,
os tais polis, que nada mais era que
uma mistura de água, essência e açúcar. Conheci-o desde tenra idade, quando eu era
aluno no Instituto Brasil, localizado na Rua José Pinto Martins, das saudosas professoras
Carmem Pedroza e Pina. Naquela época, ele já era um homem velho. Muito
espirituoso, sempre estava fazendo algum gracejo para atrair a clientela. Um de
seus preferidos era espremer sua enorme língua, que conseguia dobrá-la com
incrível habilidade, entre suas gengivas, já que era desprovido de todos os
dentes. Num instante transformava sua cara magra e enrugada, numa careta
engraçada e assustadora, que mais lembrava uma máscara carnavalesca.
Ao seu lado, um amigo vendia roletes de cana. Sentado em um
tamborete com texto de couro, trabalhava pacientemente com sua quicé – pequena faca -, transformando um
pedaço de taboca de bambu, em um suporte para os roletes de cana. Abria a
taboca em diversas hastes onde fixava em cada extremidade, um suculento rolete
de cana caiana, formando uma espécie de cacho. Os maiores chegavam a ter até doze
roletes, dependendo da largura da taboca. Lembro-me dos cachos, dispostos cuidadosamente
em cima do tabuleiro forrado com um pano branco com bordados coloridos nas
extremidades, aguardando a cobiça da meninada. Quando terminava o dia, colocava
o tabuleiro na cabeça apoiado em uma rodilha de pano e retornava para casa apregoando
os últimos cachos: rolete, rolete de cana
caiana, ainda tem rolete de cana...
Por ocasião da sazonalidade, também se arranchavam naquela
calçada, diversos vendedores: o de jabuticabas, de siriguelas, de umbus, que eram
vendidos em litro, medida padrão,
amplamente utilizada por diversos vendedores. Naquela época, o litro do óleo Benedito
era o que mais se via, em virtude de sua larga utilização pelas classes mais
pobres além de ter sua fabrica na vizinha cidade de Macaíba. Aparecia também
naquela esquina o vendedor de goiabas, mangas, sapoti e também o vendedor de
milho assado, que utilizava um fogareiro feito com lata de querosene e as
espigas ficavam expostas em cima de uma pequena grelha sobre o fogareiro.
Já o vendedor de pitombas, comercializava seu produto em
cachos. O balaio ficava em cima de um tamborete e os cachos eram engordados, amarrando-se
uns aos outros, com embira de fibra da bananeira. A exposição era feita sem
muito critério. Os cachos ficavam amontoados no balaio a espera dos fregueses.
Os compradores sempre procuravam os mais recheados, pois, não havia diferença
de preço. Quando a fruta ainda não esta madura, ou como dizíamos, inchada, era possível degustar a polpa,
que se desprendia do caroço com facilidade. Porém se as frutas já estivessem
maduras, torna-se difícil a retirada da polpa, uma vez se tornavam bastante escorregadias,
aumentando assim o risco de engoli-la juntamente com o caroço. Nesse caso,
dependendo da quantidade de caroços engolidos, o indivíduo inevitavelmente teria
sérios problemas após a digestão.
Desfilavam pelas ruas da velha cidade, outros saudosos pregoeiros.
A velhinha da carimã, uma espécie de broa feita de massa azeda de mandioca,
muito utilizada na confecção de bolos e biscoitos. Andava sempre com um porrete
na mão, dizia, para se defender dos cachorros vadios, mas também pra correr
atrás dos garotos traquinos que mexiam com ela gritando “carimã podre!”.
O vendedor de alfenim, um simpático velhinho que usava uma
sandália de rabicho feita de sola e caminhava lentamente com paços miúdos e
cadenciados. Trazia em seu tabuleiro torrões de açúcar transformados em
miniaturas de bois, vacas, cachorros, galinhas e cavalos, tudo cuidadosamente pintados
com cores vivas e atraentes.
A vendedora de mangabas, negra alta e esbelta, equilibrava na
cabeça com graça e desenvoltura, um alguidar de barro cheio dessas frutinhas
genuinamente nordestina. A venda era
feita por litro e também em pequenas caixolas feitas com folhas de cajueiro
brabo e costuradas com palitos de coqueiro. O produto era colhido nas dunas que
circulam nossa cidade pelo lado do oceano.
Outro pregoeiro, que ainda hoje pode ser visto pela cidade, é
o vendedor de geleia de coco. Conduzindo o tabuleiro na cabeça, anunciava o
produto batendo seguidamente com uma espátula, que utilizava no corte das
poções, em uma das pernas do tabuleiro que produzia um Sam metálico. Os preços variavam
de acordo com o tamanho da porção. Ao lado do tabuleiro, presos por um arame,
pedaços de papéis de diversas cores serviam para acondicionar a guloseima. Pessoas
que por ventura utilizasse próteses dentária, por motivos óbvios, evitavam seu
consumo.
O vendedor de pirulitos, franzino e saltitante, vez por
outra encostava a tábua recheada com as deliciosas iguarias no muro de alguma
casa, pra jogar bola de meia ou de gude, com os garotos da rua. Não raro,
quando apanhava a tábua novamente, alguns pirulitos haviam desparecido
misteriosamente. Mesmo assim, sempre estava por ali batendo uma bolinha.
Lembro do vendedor de raivas, que trazia o produto em um
depósito cilíndrico dentro de um saco e o conduzia preso as costas segurando-o com
uma das mãos. Havia ainda o vendedor de cocadas; o de tapioca e beijus no coco,
que passava propositalmente sempre no início das manhãs ou no final das tardes,
horário que antecede as refeições; o vendedor do famoso cuscuz da Mata, que caminhava
equilibrando o tabuleiro na cabeça, com andar ligeiro e cadenciado como se
disputasse uma macha atlética. Com os primeiros raios do sol, partia para sua
maratona que começava na Avenida Um, no bairro do Alecrim, onde se localizava a
fábrica, só retornando no dia seguinte após novo carregamento.
O pipoqueiro, presente constante nas portas das escolas ou onde
houvesse aglomeração de crianças. O vendedor de cavaco chinês, que apesar da
modernidade, ainda insiste em sobreviver. Também não utilizava nenhum pregão. Era reconhecido apenas pelo frenético
tilitar de seu triângulo, que obedecia uma cadência bem conhecida,
principalmente pela criançada.
E continuava o desfile dos pregoeiros matinais. Aparecia o
vendedor de peixe, que os trazia pendurados em uma peça de madeira em cima de
seu ombro. Na mão, um porrete de madeira e na cintura uma peixeira 12 polegadas,
para tratar o pescado, ou dividi-los em postas de acordo com o deseja da dona
de casa. O vendedor de carangueijos-uça e gordos goiamuns, que eram vendidos amarrados
em cordas de 10 e 12 unidades, pendurados em um pau de galão. O vendedor
de camarões torrado, vendidos em litro, atraia os fregueses anunciando que sua
medida era “cheio no capricho” e sempre tinha um agrado de 4 a 5 camarões que colocava
depois.
Um dos pregoeiros mais famoso daquela época foi o jornaleiro
Cambraia. Conheci-o muito bem, pois, todos os dias, passava em frente a minha
casa anunciando com um vozeirão arrebatador: “ôlelê, ôlelê, jorná de natá”. Negro
alto, de brancos cabelos pixains que mais pareciam pipocas, tinha feições
marcadas pelo tempo. Andava sempre de pés descalços, calças arregaçadas na
altura das canelas e camisa entreaberta. Trazia os jornais, em baixo do braço
protegidos por uma espécie de papelão.
Recordo do sorveteiro, empurrava seu carrinho de madeira,
pintado com cores alegres. Na frente,
dois espelhinhos redondos, imitavam os faróis de um carro. Entre eles, duas flâmulas:
uma do ABC e outra do América. Não revelava o time do coração nem sob tortura.
Tinha medo de perder os fregueses adversários. Num dos braços do carro, uma
buzina tipo “fom, fom” era acionada para chamar a atenção da clientela. Naquela
época o sorvete era feito em casa, e os sabores pouco mudavam: coco, coco
queimado, chocolate, feito com toddy, morango (essência) e algumas frutas
sazonais.
Sem horário nem dia definidos para sua aparição, ouvia-se
também o grito do vendedor de cestos e espanadores. Vendia inclusive um
espanador em miniatura que eram comprados para as crianças brincarem. Era um
homem ainda jovem, mas sempre o via descansando em baixo dos enormes fícus
benjamina, que arborizavam a Avenida Deodoro.
Por fim, me vem a figura do confeiteiro Mané Anão. Impávido,
junto ao tabuleiro sortido de buzis, torrões, drops dulcora, chicletes Adams -
aquele que trazia um pequeno número numa das orelhas, quando a caixinha era
aberta -, o chiclete de bolas ping pong, que acompanhava figurinhas infantis,
as coloridas jujubas, confeitos (balas) de mel e hortelã, além das desejadas
barras de chocolate Diamante Negro, para nós, de valor inalcançável. Tinha a
prerrogativa de ser o único vendedor em frente ao Cine Rio Grande, garantido
pelo seu proprietário Dr. Moacir Maia e corroborado pelo administrador, Seu
Antonio. Todos esses saudosos personagens ainda continuam desfilando nas minhas
lembranças de garoto, morador da Avenida Deodoro.
Ormuz, caro amigo,
ResponderExcluirpermita-me a intimidade, visto que nos conhecemos na casa dos queridíssimos Dr. Carlos Gomes e sua Tereza e, lá, iniciamos uma amizade que espero regarmos por muitos e muitos anos.
Bem, queria externar o meu encantamento por essa sua crônica "RECORDANDO OS VENDEDORES AMBULANTES E SEUS PREGÕES MATINAIS" que me levou aos anos sessenta, quando em Natal haviam pomares, mangueiras e abacateiros nos quintais... Saudades daquela nossa Natal, dos ambulantes andarilhos e pregoeiros, dos cestos de pitomba, de azeitona(jamelão para os cariocas), dos roletes de cana, enfim. Se ser saudosista é lembrar com carinho desse tempo bom, amigo, sou saudosista também.
Parabéns pelo texto quase roteiro de um filme das nossas vidas numa Natal ordeira, romântica e inesquecível.
Um forte abraço desse seu leitor e amigo recente.
DIDI AVELINO
Em tempo: Não esqueci e não esquecerei das sapatilhas nº 39. Rs Rs Rs