terça-feira, 1 de setembro de 2015

  
Marcelo Alves

 

Cinco “sacadas”
Tenho frequentemente escrito aqui - certamente em virtude de meus estudos de doutorado na Inglaterra, no King's College London, concluídos faz um par de anos - sobre o direito anglo-americano, em regra, até bem recentemente, tão pouco estudado entre nós. 

Hoje, vou continuar nessa trilha escrevendo sobre cinco grandes ideias originadas - ou pelo menos em alto grau desenvolvidas - no chamado mundo anglofônico. Essas “sacadas” merecem ser aqui registradas porque, na civilização ocidental contemporânea (e não apenas no mundo anglofônico), em maior ou menor grau a depender de cada país, elas são, como lembra Robert Hockett em “Little Book of Big Ideas – Law” (adorável “livrinho” publicado pela A & C Black Publishers Ltd.), na prática, as verdadeiras garantidoras dos direitos e das liberdades constitucionais. 

A primeira dessas “sacadas” é a chamada “Rule of Law”, a ideia, tão bem construída/desenvolvida no mundo anglo-americano, de que a lei, a Constituição, o Direito devem “governar” o Estado, controlando a vontade arbitrária do soberano de plantão e até mesmo o Parlamento eleito. Essa ideia (que vem de longe, registre-se), de “governo das leis” em oposição ao “governo dos homens”, com seus vários corolários (igualdade perante a lei, acesso ao judiciário etc.), é prima-irmã da nossa ideia de Estado Democrático de Direito e está indissociavelmente relacionada ao constitucionalismo moderno. 

A segunda “sacada” está na plena adoção, sobretudo nos Estados Unidos da América, da teoria da separação dos poderes, formulada (a bem da verdade, mais divulgada que propriamente formulada) por Montesquieu (1689-1775) em “De l'esprit des lois”, como receita de liberdade e peça fundamental para o poder político atuar corretamente. Entende-se que a distribuição da autoridade é pressuposto fundamental para exercício democrático do poder e para a liberdade dos cidadãos, evitando o abuso no uso daquela (da autoridade) por qualquer dos poderes do Estado. A “sacada” da separação dos poderes caiu no gosto do pensamento político e jurídico inglês e, sobretudo, no americano. James Madison (1751-1836), em particular, era grande admirador de Montesquieu, citando-o frequentemente em seus escritos em prol da Constituição americana. E isso foi um (grande) passo para a ideia ganhar o mundo. 

A terceira “sacada” vem com o famoso caso Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803). Nele, segundo convencionado, está a origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis), que, de raiz norte-americana, não proveio de texto expresso da Constituição, mas foi, sim, uma criação predominantemente pretoriana. Na referida decisão, o presidente da Suprema Corte americana, John Marshall (1755-1835) afirmou que a Constituição foi a expressão de um soberano desejo constituinte e, por conseguinte, regulava o exercício de todo poder governamental. Isso incluía tanto os atos do Executivo Federal e do Congresso Nacional como também os atos dos governos estaduais. Do contrário, os atos do Legislativo e do Executivo seriam supremos e incontroláveis, não obstante as prescrições contidas na Constituição, resultando em usurpações extremamente perigosas, sem qualquer remédio à disposição do cidadão. De acordo com Marbury v. Madison, se a Constituição é suprema em relação à legislação infraconstitucional, qualquer lei que a contradiga será declarada nula e ineficaz. E é o Judiciário que detém o poder de “invalidar” (declarar inválidos, melhor dizendo) os atos do governo contrários à Constituição, tendo a última palavra sobre a questão. Muitos dizem que a doutrina inaugurada por Marshall em Marbury v. Madison foi a maior contribuição até hoje dada pelos EUA à ciência política do passado e dos nossos dias. 

Outra boa “sacada” do pensamento anglo-americano foi a ideia do “due processo of law” (“devido processo legal”, entre nós), originária do direito inglês, pela qual, em resumo, um ato de autoridade, para ser considerado válido (e produzir efeitos válidos), deve ser praticado em conformidade com o que está prescrito em lei (seguindo as etapas e com as garantias ali previstas). Diz-se que a ideia do “devido processo legal” tem origem na cláusula 39 da famosa Magna Carta (também chamada de Magna Carta Libertatum ou Grande Carta das Liberdades), de 1215, um dos documentos mais importantes da história da Humanidade. A nossa Constituição Federal consagra o “due processo of law” em seu art. 5º, quando afirma que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (inciso LIV) e que “aos litigantes em processo judicial e administrativo, e aos acusados em geral, serão assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios de recurso a ela inerentes” (inciso LV). 

Por fim, chegamos à instituição do tribunal do júri que, no mundo anglofônico (onde está a origem moderna do instituto), tem seu fundamento, segundo registra a história, na já referida cláusula 39 da Magna Carta, que fala em “processo legal por seus pares”. Trata-se do tipo de julgamento, cuja ancestralidade remonta aos primórdios da civilização, que - com toda a sua teatralidade, os debates entre acusação e defesa, a presença do réu, a majestade do juiz presidente e a reunião dos jurados em sala secreta - mais apelo tem no imaginário popular. No Brasil, segundo a nossa CF (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”), em regra, compete ao tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Na fase final, na sessão de julgamento pelo tribunal do júri propriamente dita, sete cidadãos comuns (sem necessária formação jurídica), que compõem o conselho de sentença, decidem, de acordo com as suas consciências e (supostamente) as provas dos autos, o destino do réu. A suposta diversidade dos jurados não deixa de ser uma homenagem ao pluralismo, à tolerância e ao consenso, pilares fundamentais de um estado democrático de direito que exige a participação dos homens de bem para a realização final da Justiça. Mas tenho minhas dúvidas. Não conheço a fundo os modelos inglês ou norte-americano. Quanto ao nosso, tenho uma porção de críticas. 

Bom, de minha parte, tirando talvez a questão do tribunal do júri, sempre achei fantásticas essas “sacadas” do direito anglo-americano. E você, caro leitor, o que acha? 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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