Cinco “sacadas”
Tenho frequentemente escrito aqui - certamente em virtude de meus
estudos de doutorado na Inglaterra, no King's College London, concluídos
faz um par de anos - sobre o direito anglo-americano, em regra, até bem
recentemente, tão pouco estudado entre nós.
Hoje, vou continuar nessa trilha escrevendo sobre cinco grandes
ideias originadas - ou pelo menos em alto grau desenvolvidas - no
chamado mundo anglofônico. Essas “sacadas” merecem ser aqui registradas
porque, na civilização ocidental contemporânea (e não apenas no mundo
anglofônico), em maior ou menor grau a depender de cada país, elas são,
como lembra Robert Hockett em “Little Book of Big Ideas – Law” (adorável
“livrinho” publicado pela A & C Black Publishers Ltd.), na prática,
as verdadeiras garantidoras dos direitos e das liberdades
constitucionais.
A primeira dessas “sacadas” é a chamada “Rule of Law”, a ideia, tão
bem construída/desenvolvida no mundo anglo-americano, de que a lei, a
Constituição, o Direito devem “governar” o Estado, controlando a vontade
arbitrária do soberano de plantão e até mesmo o Parlamento eleito. Essa
ideia (que vem de longe, registre-se), de “governo das leis” em
oposição ao “governo dos homens”, com seus vários corolários (igualdade
perante a lei, acesso ao judiciário etc.), é prima-irmã da nossa ideia
de Estado Democrático de Direito e está indissociavelmente relacionada
ao constitucionalismo moderno.
A segunda “sacada” está na plena adoção, sobretudo nos Estados
Unidos da América, da teoria da separação dos poderes, formulada (a bem
da verdade, mais divulgada que propriamente formulada) por Montesquieu
(1689-1775) em “De l'esprit des lois”, como receita de liberdade e peça
fundamental para o poder político atuar corretamente. Entende-se que a
distribuição da autoridade é pressuposto fundamental para exercício
democrático do poder e para a liberdade dos cidadãos, evitando o abuso
no uso daquela (da autoridade) por qualquer dos poderes do Estado. A
“sacada” da separação dos poderes caiu no gosto do pensamento político e
jurídico inglês e, sobretudo, no americano. James Madison (1751-1836),
em particular, era grande admirador de Montesquieu, citando-o
frequentemente em seus escritos em prol da Constituição americana. E
isso foi um (grande) passo para a ideia ganhar o mundo.
A terceira “sacada” vem com o famoso caso Marbury v. Madison 5 US
137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803). Nele, segundo convencionado, está a
origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation”
(que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das
leis), que, de raiz norte-americana, não proveio de texto expresso da
Constituição, mas foi, sim, uma criação predominantemente pretoriana. Na
referida decisão, o presidente da Suprema Corte americana, John
Marshall (1755-1835) afirmou que a Constituição foi a expressão de um
soberano desejo constituinte e, por conseguinte, regulava o exercício de
todo poder governamental. Isso incluía tanto os atos do Executivo
Federal e do Congresso Nacional como também os atos dos governos
estaduais. Do contrário, os atos do Legislativo e do Executivo seriam
supremos e incontroláveis, não obstante as prescrições contidas na
Constituição, resultando em usurpações extremamente perigosas, sem
qualquer remédio à disposição do cidadão. De acordo com Marbury v.
Madison, se a Constituição é suprema em relação à legislação
infraconstitucional, qualquer lei que a contradiga será declarada nula e
ineficaz. E é o Judiciário que detém o poder de “invalidar” (declarar
inválidos, melhor dizendo) os atos do governo contrários à Constituição,
tendo a última palavra sobre a questão. Muitos dizem que a doutrina
inaugurada por Marshall em Marbury v. Madison foi a maior contribuição
até hoje dada pelos EUA à ciência política do passado e dos nossos dias.
Outra boa “sacada” do pensamento anglo-americano foi a ideia do “due
processo of law” (“devido processo legal”, entre nós), originária do
direito inglês, pela qual, em resumo, um ato de autoridade, para ser
considerado válido (e produzir efeitos válidos), deve ser praticado em
conformidade com o que está prescrito em lei (seguindo as etapas e com
as garantias ali previstas). Diz-se que a ideia do “devido processo
legal” tem origem na cláusula 39 da famosa Magna Carta (também chamada
de Magna Carta Libertatum ou Grande Carta das Liberdades), de 1215, um
dos documentos mais importantes da história da Humanidade. A nossa
Constituição Federal consagra o “due processo of law” em seu art. 5º,
quando afirma que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal” (inciso LIV) e que “aos litigantes em processo
judicial e administrativo, e aos acusados em geral, serão assegurados o
contraditório e a ampla defesa, com os meios de recurso a ela
inerentes” (inciso LV).
Por fim, chegamos à instituição do tribunal do júri que, no mundo
anglofônico (onde está a origem moderna do instituto), tem seu
fundamento, segundo registra a história, na já referida cláusula 39 da
Magna Carta, que fala em “processo legal por seus pares”. Trata-se do
tipo de julgamento, cuja ancestralidade remonta aos primórdios da
civilização, que - com toda a sua teatralidade, os debates entre
acusação e defesa, a presença do réu, a majestade do juiz presidente e a
reunião dos jurados em sala secreta - mais apelo tem no imaginário
popular. No Brasil, segundo a nossa CF (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea
“d”), em regra, compete ao tribunal do júri o julgamento dos crimes
dolosos contra a vida. Na fase final, na sessão de julgamento pelo
tribunal do júri propriamente dita, sete cidadãos comuns (sem necessária
formação jurídica), que compõem o conselho de sentença, decidem, de
acordo com as suas consciências e (supostamente) as provas dos autos, o
destino do réu. A suposta diversidade dos jurados não deixa de ser uma
homenagem ao pluralismo, à tolerância e ao consenso, pilares
fundamentais de um estado democrático de direito que exige a
participação dos homens de bem para a realização final da Justiça. Mas
tenho minhas dúvidas. Não conheço a fundo os modelos inglês ou
norte-americano. Quanto ao nosso, tenho uma porção de críticas.
Bom, de minha parte, tirando talvez a questão do tribunal do júri,
sempre achei fantásticas essas “sacadas” do direito anglo-americano. E
você, caro leitor, o que acha?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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