quarta-feira, 31 de agosto de 2022

 

Desconfundindo
​“Direito internacional”, “direito comunitário” e “direito comparado”, o que são esses três “direitos”? Infelizmente, como descobri num papo entre amigos, nós, supostos juristas, ainda confundimos bastante os conceitos/significados dessas três categorias.
​Primeiramente, o direito internacional é o conjunto de normas – ou a disciplina, se olharmos sob o ponto de vista acadêmico – que trata das relações externas entre os entes que formam a sociedade internacional. “Um sistema jurídico autônomo” (em relação aos sistemas internos ou nacionais) onde, nas palavras de Francisco Rezek (em “Direito internacional público”, Saraiva, 1995), “se ordenam as relações entre Estados soberanos”, muito embora, hoje, esse conceito/sistema já esteja ampliado para abarcar as relações com outros “atores internacionais”, tais como as organizações exemplificadas na ONU, OMS, UNESCO, OTAN, FMI etc.
É importante ainda fazer duas observações quanto à terminologia direito internacional. Uma de relevância histórica. No passado, o que hoje chamamos de direito internacional era normalmente chamado de “direito das gentes” (e eu até acho gostosamente nostálgica essa denominação), sendo que a expressão direito internacional teria sido cunhada, já no fim do século XVIII, pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832). Ademais, é comum se acrescentar à expressão direito internacional a partícula “público”, para diferenciá-la de um “direito internacional privado”, este que é, na verdade, um ramo ou disciplina jurídica que especificamente cuida do conflito de leis – de nacionalidades diversas, por regra – em potencial aplicação em determinado espaço territorial ou caso. E não por outro motivo o que chamamos de direito internacional privado os ingleses chamam apenas de “conflict of laws”.
Já o direito comunitário pode ser classificado como uma subespécie ou, melhor, um desdobramento/desenvolvimento do direito internacional no sentido de uma quase total integração supranacional de Estados soberanos. Entre nós, teríamos como exemplo o “direito do Mercosul”; mas também é dito que o direito do Mercosul estaria bem aquém disso – falo dessa integração almejada –, se comparado com o direito da União Europeia, este, sim, um direito realmente integrado em nível comunitário ou um direito comunitário propriamente dito. Nesse sentido, aduz Benigno Nuñez Novo, em texto publicado no site Âmbito Jurídico (fevereiro de 2018): “O direito comunitário é composto pelo conjunto de normas jurídicas que regulam e disciplinam a organização e o funcionamento das Comunidades Europeias e da União Europeia. O surgimento dos blocos econômicos importou na necessidade da criação de um sistema de normas que os regulasse. Esse sistema de normas foi denominado Direito Comunitário, sendo um sistema jurídico autônomo, constituído de normas provenientes de determinadas fontes específicas, ordenado por uma hierarquia de normas, sendo regido por dois princípios essenciais: o princípio da integração e o princípio da primazia. O Direito Comunitário existente na União Europeia é incorporado de forma congênita aos direitos nacionais. Destarte, inexiste no Mercosul o verdadeiro direito comunitário, o que reina de forma absoluta é o direito internacional público, regional, integracionista, vinculado ao fenômeno de recepção”.
Por fim, temos o tal direito comparado. O papel deste na “arquitetura” do direito é assunto para debates. Posso afirmar que ele não é um direito no sentido de um conjunto de normas que visa disciplinar determinada matéria. O direito comparado está mais para uma disciplina da ciência jurídica (temos o aspecto acadêmico da coisa) e, sobretudo, para um método de estudo do direito. E como método serve, por exemplo, mediante a comparação: (i) para se entender o direito dos diversos países em geral; (ii) para se obter uma melhor compreensão do respectivo sistema jurídico nacional (por exemplo, quando se compara o que se dá em outros países para melhor interpretar/aplicar as regras internas); (iii) para se melhor empreender uma possível reforma da legislação/direito de determinado país; (iv) ou mesmo, de forma mais ambiciosa, como ferramenta para a unificação sistemática de um determinado ramo do direito ou de um sistema jurídico supranacional como um todo. No mais, essas comparações podem se dar de várias formas. Multilateralmente (entre vários sistemas jurídicos) ou bilateralmente. Podem ser integrativas e/ou contrastantes, focando em semelhanças e/ou em diferenças. Podem ser macrocomparações (de dois ou mais sistemas jurídicos nas suas inteirezas) ou microcomparações, que recaem sobre categorias ou instituições peculiares aos sistemas jurídicos comparados (desde coisas gerais como um determinado ramo do direito até coisas bem específicas como a disciplina que é dada a determinado tipo de contrato nos países comparados). E por aí vai.
Sou um entusiasta desses “direitos”, sobretudo do comparado. Mas isso talvez decorra do fato de eu adorar me aventurar com outros povos e culturas.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Nenhum comentário:

Postar um comentário