Em homenagem a FRANKLIN JORGE, transcrevo artigo que publiquei neste blog em 30 de Maio de 2007 para que não se esqueçam desse extraordinário escritor da terra dos canaviais.
SOBRE O SANTO OFICIO
[Por Carlos Roberto de Miranda Gomes*]
[Por Carlos Roberto de Miranda Gomes*]
No ensejo em que Franklin Jorge comemora o seu blog O Santo Ofício,
tenho a alegria de oferecer o meu modesto comentário ao fato.
O
estimado escritor responsável pelo documento virtual conseguiu inovar a
divulgação da cultura com a maior dignidade, fugindo do trivial das
notícias sociais ou enfoques particulares ou corporativos, para ofertar
uma dimensão da realidade política e cultural da terra potiguar.
Através desse blog desfilam os mais festejados autores da literatura
universal e, com maior intensidade, os escritores pátrios, que nos
permite uma leitura de excelentes trabalhos, cujo volume já publicado
virtualmente, comporta uma coletânea impressa.
Parabéns pela coragem de tentar fazer cultura neste palco de tantos preconceitos e apologia do supérfluo.
A divisão temática do blog nos leva e enleva para uma altitude de
extremo sentimento com o enaltecer de pessoas notáveis e fatos que
fizeram história.
Para exemplificar o que estou a dizer, resolvi
destacar o caderno ‘séries’, com sua localização territorial sob títulos
sugestivos como: O ouro de Mossoró; O céu de Ceará-Mirim; O spleen de
Natal; Abaixo do Equador; O ouro de Goiás; Assu, Mitologia e Vivências e
Histórias Brejeiras, todos da autoria do editor do blog.
Em
cada um deles é possível conhecer figuras interessantes como a foliona
Cristina dos Pimpões, a leitora desordenada D. Zélia; o viageiro Rogério
Queiroz; o estoicismo de D. Cícera Nogueira; a escritora Zenaide
Almeida ou da simplicidade da rezadeira D.Maria Etelvina, todos da terra
de Santa Luzia.
Na planície dos canaviais a lembrança da
poetisa Adele de Oliveira, mestra de Nilo Pereira e Edgar Barbosa e
tantos outros bem desenhados na série O spleen de Natal, como a cidade
mítica de Natal e a Ribeira profunda cantadas por Navarro; recordos de
Palmira, José Maria Guilherme, do português Olívio Domingues.
Nas
narrativas da geografia física e humana ‘Abaixo do Equador’, existem
registros do cotidiano feitos com graça e emoção, resultado das andanças
pelo outro lado da linha do Equador, com passagens por Belém, o
continente Amazônico, o extremo norte – Xapuri, Seringal, Rio Branco, a
zoologia do Acre, o Padre José, vigário de Xapuri, o Bosque dos Buritis
passeando com Carmo Bernardes, memorialista sagaz.
Um aspecto
realmente singular se inclina para a singeleza da forma de dizer de
Franklin ao retratar pessoas e lugares, quando descreve:
“O verso
de José Décio Filho dança entre os monumentos da velha cidade
enclausurada no tempo. Repercute, deliciosamente, em nossa sensibilidade
imantada de pulsação telúrica: ‘Goiás...Que nome largo, longe’. Doutora
Amália o recorda freqüentando a Pensão Manduca e fazendo parte da
rapaziada do Largo do Moreira, na Cidade de Goiás, onde morreria
voluntariamente, aos 58 anos, em plena maturidade. José Décio era
moreno, esguio, de olhos penetrantes e cabelo negro com topete, quando,
em 1946, escreveu o Poema dos homens amargos, que sua amiga lê para mim,
em sua casa de Goiânia, à sombra de árvores seculares –
O melhor é não rir atoa
a-fim-de se parecer feliz.
O melhor é não se importar
que os outros nos achem tristes ou alegres.
É certo que teremos de rir
não só dos nossos próprios ridículos
como dos aleijões alheios.
Um riso duro, impiedoso,
Quase um arremedo de choro
que enegrece o coração cansado...
Lá para as tantas, ainda Franklin completa:
‘Pouco sei sobre o poeta, exceto que morreu em 1976, amou a sua terra e
agora é ele próprio um nome que vem de muito longe, para acompanhar-me
neste passeio pela cidade sagrada dos goianos, onde viveu a mocidade e
escreveu seus primeiros versos cheios de sortilégios verbais. Caminho
pelas ruas da velha cidade de Goiás repetindo como quem reza o verso
emblemático e misterioso que o vento toma de minha boca e o leva aos
confins da terra azul, percutindo-o na minha nostalgia do paraíso
perdido da infância.’
Numa passagem por Assu, visita Renato Caldas e esse encontro está narrado com a verve e autenticidade do entrevistado:
‘Você é o primeiro jornalista a entrevistar-me, afirma Renato Caldas,
abanando-se com um jornal velho dobrado duas vezes. Sem camisa, o tórax
muito branco e pingando suor, sentado diante de mim. Porém, nessa idade,
já não tenho memória nem vontade de lembrar-me do passado. Depois de
tanta vida vivida e decepções, o melhor, mesmo, seria esquecer tudo...
Tudo...
O passado é uma carga pesadíssima. E temos que
carregá-lo, ainda assim, com os nossos achaques... Eu ia fazer a sesta,
sagrada depois do almoço, quando senti a urgência de falar-lhe. Do bar
para casa, vinha pensando em suas palavras e no seu empenho para
resgatar a memória do Assu e dar vida aos mortos... Pensei que não seria
justo privá-lo disso... ‘
Sem programar, Franklin descobre fatos
importantes da nossa província, quando retrata O velho da Redinha, no
caderno Histórias Brejeiras, que descreve o lugarejo da antiga Natal,
lugar preferido pelos veranistas, numa época em que o transporte era de
barco e a luz era de lamparinas, vejamos:
Seu nome era Raimundo, que
pensa não ter mais família no mundo - o impaludismo reduzira a
população do município. Bah, naquele tempo morreu gente como bêia... E
continua:
‘Quando cheguei aqui o transporte era o bote. Cada
passageiro que ia ou vinha de Natal, pagava quinhentos réis pela viagem.
Depois, Luiz Romão botou uma lancha para fazer a linha, cobrando
deztões da passagem. A primeira lancha, chamada Carminha, não levava
mais de dez pessoas. Pertencia a Vital Correia, um homem rico do
Ceará-Mirim. Com a chegada dessas lanchas, os botes foram caindo em
desuso e desaparecendo. O embarque e o desembarque eram feitos no
trapiche, construído em madeira. A Redinha tinha boteiros famosos, com o
Manoel Pedro e Manoel de Paula, proprietários do São Paulo; Joaquim de
Dona, que explorava os botes Campo Grande e Sergipe. Toda essa gente,
tão considerada em sua época, está morta e enterrada há muito tempo.’
Esse relato levou-me à minha infância/adolescência, pois na Redinha
passei, pelo menos, quinze veraneios (1948 a 1962). Ali encontrei já um
motor a diesel que funcionava até às 9 horas da noite, depois era o
‘breu’, mas fiquei conhecendo bem a geografia do lugar e aprendi a andar
entre as suas pedras, apenas com o medo do ‘fogo fátuo’. Lembrei-me do
meu irmão Fernando, cantando a música de sua autoria –
Redinha, praia linda e sem igual,
poema lírico e imortal,
onde nasceu nosso amor.
Redinha em teus recantos lindos
lembra-me o tempo de menino colhendo búzios de multicor.
Redinha de casa de taipa e bangalô,
onde não há escravo nem Sinhô
– todos ali são iguais.
Redinha volta de novo ao teu seio
para eu viver sem receio aqueles tempos ideais.
As histórias contadas no Redinha Clube sobre a construção da igrejinha
pelo Sr. Barroca, do furto da Santa, da nova igreja de pedras feita
pelos veranistas. As travessias em dia de jogos no barco de “Ferrinho”
suportando as brigas dos torcedores rivais do ABC e América, com
destaque para Seu Maranhão e o risco do bote virar. O Rio Doce explorado
de bicicleta.
Outra entrevista pungente é sobre Dona Cícera – a
Nossa Senhora dos Pobres, nascida e criada em São José, bairro de gente
humilde e trabalhadora, uma mulher ocupada com o povo na condição de
missionária do bem, movida apenas pelo desejo de consolar os aflitos e
servir a quem precisa. Todos os dias ela está na casa do povo e o povo
está na sua casa. Por isso, embora pobre de bens materiais, sente-se
rica da graça de Deus. Sobre ela narra Franklin:
‘De compleição
frágil, pouco mais de um metro e meio de altura, Dona Cícera está sempre
em grande atividade, indo e vindo pelas ruas da cidade, socorrendo,
ouvindo, orientando, resolvendo os problemas dos outros, dispensando a
todos, indiscriminadamente, esperança, sem regateios nem falsas
promessas. Ela não está jogando palavras fora quando diz que vive
ocupada com o povo, isto é, com os sofridos e os desesperados que batem à
sua porta, como náufragos em busca de uma bóia salva-vida -- que pode
ser uma simples palavra de conforto e encorajamento --, de um toque,
pois sempre alguma coisa acontece quando, literal ou metaforicamente,
tocamos alguém.’
Fico por aqui para não tirar o gosto pela leitura integral do texto publicado no blog.
Já me alonguei e vou terminar com o Navarro Andando, onde Franklin desnuda o nosso imortal pintor/boêmio:
‘Beira-Rio não é boteco somente, explica Navarro entre garrafas
cantantes, num chão escuro da Ribeira, de pedra, entre os começos da
cidade e a margem esquerda do rio. Pátria dos apátridas, diria noutra
parte do seu poema, composto da prosa de embarcadiços, de mulheres-damas
e de boêmios, derradeiros boêmios que descem nas correntezas noturnas
da Rua Chile. Reino de Francisquinha, Dona Francisquinha, proprietária
de sete bordéis, uma das deusas tutelares da Ribeira, bairro por
excelência comercial, devasso e cosmopolita.
Navarro caminha.
Sente o chão da Ribeira sob os pés, ao caminhar de sentidos alertas,
entregue à magia da música de Caetano, nesse momento tocando em todas as
rádios da cidade. Um hit de época quer ver Irene dar sua risada. Todos
querem ir para alguma utopia. Navarro haveria de querer também rir com
Caetano, que aparece de repente, sem lenço nem documento, eletrizando
com a sua música.
Na pedra do cais, o porto, a enseada, o
mirante, o abrigo, a hospedaria e, correndo para o mar, o rio, o velho
rio Potengi que já existia antes do surgimento de la Ciudad de los
Reyes. O rio fala-lhe pela bocarra úmida de suas gamboas.’
Concluindo, diz Franklin:
‘A velha Ribeira já se embuça de sombras. O deserto é geral. Gatos e
cães vadios se ajuntam no Beira-Rio, onde Navarro escreve uma prosa
viril feita de sol e salsugem. Com a nitidez cortante de um desenho
aquarelado de sombras e de luz.’
É uma crônica de vida que
todos devem ler no original, retratando esse nosso mito, amado por
Cascudo e por onde toda a cidade encontra a sua presença.
Ainda que exaustivas de transcrições termino estas linhas com Franklin Jorge:
‘Newton Navarro (1928/1991) pertenceu muito à nossa época para que
possamos ter a seu respeito opiniões estritamente artísticas. Enfant
terrible da segunda geração do modernismo potiguar, foi um ser múltiplo e
forjou ao longo de três décadas o misterioso e fascinante personagem
que nos legou e contribuiu algumas vezes para eclipsar o seu próprio
criador.’
*Da Academia de Letras Jurídicas e do Instituto Histórico e Geográfico do RN
Texto de abertura do blogue
O SANTO OFICIO
[Mossoró, 24 de Março de 2007]
[Por Franklin Jorge]
Começo neste dia a escrever o meu blogue, inspirando-me na recordação
de uma ligação da poetisa Zila Mamede, que numa tarde já remota, leu
para mim, ao telefone, versos e fragmentos de escritos jornalísticos
daquele que me disse ter sido o seu mestre, o poeta, crítico e
jornalista Antonio Pinto de Medeiros, signatário da coluna “O Santo
Ofício”, uma espécie de tribunal literário instalado em Natal, por muito
tempo, em permanente e aterradora atividade. Poucos conseguiram escapar
de suas sentenças irrecorríveis, o que o malquistou com metade da
população de literatos da cidade e lhe granjeou a admiração e o respeito
da outra metade, que vibrava ao desfrutar com a agonia dos confrades
ardendo na fogueira de seus escritos.
Foi Antonio Pinto um leitor
mau humorado e cheio de verve. Exigentíssimo, sua amizade não servia de
salvo-conduto para nenhum escritor que botasse livro na praça. Porém,
homem inteligente que era, chamou para perto de si os melhores talentos
da época, formando uma espécie de movimento literário, animado só pelos
bons e excelentes.
Amparado em ampla e variada cultura,
contribuiu para a elevação do nível da nossa produção literária,
atraindo para si a animosidade da província dorminhoquenta que se abalou
com a pertinência de sua crítica apta a distinguir o trigo do joio.
Eleito para a Academia Norte-rio-grandense de Letras, foi tomar posse de
alpercatas, contrariando assim a norma acadêmica feita de
exterioridades e ouropéis.
Tornou-se, por seu modo de ser, uma
lenda urbana ainda em vida. Uma lenda que teima em persistir na memória
de uns poucos. Sua mudança para o Rio de Janeiro, onde continuou atuando
no jornalismo, foi recebida com alívio pela maioria dos nossos
literatos, especialmente por aqueles que em algum momento de sua
militância foram alvos de seus dardos envenenados.
Grande
incentivador dos novos,invectivou especialmente os medalhões e a cultura
oficial, embora escrevendo em um jornal que era a própria voz do
oficialismo. Poeta, escreveu um verso longo, schmidtiano, moroso e
convencional, completamente avesso à velocidade de sua crítica de leitor
bem informado e infenso à promiscuidade do elogio gratuito e recíproco.
Para ele, era o mérito que contava e dava as ordens. Deu-nos, porém, um
belo título - “Rio dos Ventos” - e exerceu, através do jornalismo
cultural, grande influência sobre os jovens intelectuais e artistas,
inclusive os da palavra, como a própria Zila, Myriam Coeli, Dorian Gray,
Newton Navarro, Luis Carlos Guimarães, Berilo Wanderley, a quem sucedi
na “Tribuna do Norte”, ao escrever já numa outra época e em um outro
estilo, a crônica cultural da cidade do Natal.
Era Antonio Pinto
de Medeiros cheio de idiossincrasias, mas forneceu através do exercício
da crítica da cultura o combustível necessário à efervescência
intelectual e estética de uma cidade com vocação para o cosmopolitismo.
Fez-se, portanto, o mestre de alguns jovens ávidos de experiências e de
novidades. Pode-se dizer dele que alargou e iluminou o caminho dos
novos, orientando-os e prescrevendo-lhes, de uma forma aparentemente
ditatorial, uma dieta estética antenada com o melhor da produção
literária off Natal. Esta, a meu ver, a sua grande obra, numa terra em
que todos são reis ou carregam reis na barriga.
Sempre os mais
velhos que o conheceram de perto,como o escritor Nilson Patriota,
presidente do Conselho Estadual de Cultura, têm procurado associar-me,
como escritor e jornalista, ao criador do “Santo Ofício”. Creio, porém,
que há um pouco de exagero e bajulação nisso, como ocorre às vezes nas
relações entre velhos e novos. Afinal, só temos em comum o gosto pela
crítica e a prática do jornalismo. Nessa noite já remota do telefonema
de Zila, evocada aqui por causa da expropriação do título da famosa
coluna criada em “A República” por Antonio Pinto de Medeiros, disse-me a
Autora de "Navegos", ao concluir ao telefone a leitura de uma página do
autor de “Um Poeta à toa”, que eu lhe parecera sempre, ao escrever, a
reencarnação do seu querido e inesquecível mestre e amigo, talvez mais
pela ousadia de dizer do que pela forma. Á memória de mestre e discípula
dedico estas linhas de estréia.
Franklin Jorge
PÁGINAS DE UM ÁLBUM
[Da Redação]
[Da Redação]
O escritor Franklin Jorge em 1978, fotografado por Ivanizio Ramos, seu colega de redação da Tribuna do Norte.Muito querido por seus
companheiros de jornal, posou para mais de 5.000 fotos, numa época em
que as máquinas não era digitais e os repórteres-fotográficos recebiam
uma cota diária de filmes para documentar os fatos.Sempre sobravam
filmes virgens.
Frequentemente essas sobras eram aproveitadas em registros
extra-jornalísticos que fixavam companheiros de trabalho ou cenas que no
decorrer da jornada chamaram a atenção do repórter-fotográfico.
Franklin tornou-se, assim, o modelo predileto de vários fotógrafos com
os quais fazia duplas.
Talvez seja pertinente registrar também
que foi mais ou menos nesse período de sete anos em que Franklin
trabalhou "no jornal dos Alves", que o jovem repórter ganhou, do
escritor Luis da Câmara Cascudo, o apelido de "Caetano", em alusão ao
cantor baiano.
.Abaixo, o jovem escritor norte-riograqndense
fotografado por Ivanizio Ramos usando um amuleto presenteado pela
escritora Zélia Gattai para dar-lhe sorte e atrair bons fluidos.
Arquivo do Instituto Franklin Jorge [em organização]
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