terça-feira, 19 de janeiro de 2021

  Diálogo poético

 

APROVEITEMOS A NOITE


É tudo puro ontem
marcado pelo engano
e isto também passará

Aproveitemos a noite
que se alonga
mas não quer afastar-se 

Ninguém tomará nossa palavra
nosso estro
nossa musa
nem mesmo nosso amor
e a alguns até poderemos socorrer

Procuremos os jardins
antes ocupados pelos bem-te-vis
sanhaçus e rouxinóis
e agora visitados pelas sombras
pelo rocio e pelo piscar das estrelas

E preparemos o coração
para que não assuma o seu comando
a nostalgia
pois é certo que a aurora virá
mas quando vier
muitos terão partido


-  Horácio Paiva

 

 

RESPOSTA AO AMIGO HORÁCIO PAIVA
 

É tudo puro ontem, realmente,
porém marcado pela saudade
que para nós nunca passará.

A noite é para ser sempre aproveitada
ainda que se alongue
e até não se acabe mais.

Ninguém tomará nossa lembrança,
nosso amor, nossas recordações.

A solidão não nos apavora 
porque a nossa musa sempre está presente para o socorro.
 
Vivemos nos jardins
ocupados pelos bem-te-vis, sanhaçus e rouxinóis,
seja no raiar de um dia ensolarado ou 
nas sombras de um fim de tarde,
no piscar das estrelas.
 
O coração está pronto 
para assumir o comando de tudo, sem nostalgia, 
pois sabemos que a aurora virá quando nossos espíritos se encontrarem, 
mesmo deixando muitos dos que amamos.

É o destino dos amantes.

-  Carlos Gomes

 

 

BEM-VINDOS AO BARBARISMO 

Valério Mesquita*
mesquita.valerio@gmail.com 

Bem-vindos ao novo mundo do exagero! A mulher ideal, festejada, é aquela bombada, coxas grossas e quadris enormes. Morreu o modelo feminino clássico, comportado, que foi decantado em prosa e verso. E viva o funk, onde a animalidade, a macaquice dos gestos humanos são interpretados como manifestação cultural pelos cariocas. Bom mesmo, até chegar ao orgasmo, é a histeria adolescente que promove o trote universitário. Nele, vê-se um desejo mórbido, doentio, sádico dos jovens que sentem no sofrimento humano, na dor, um prazer sexual que só Freud explica. Só pode ser tara. O problema não é só da polícia mas da psiquiatria. 

Bem-vindos ao novo mundo do transtorno de conduta. A prática da virtude é vaiada na rua e banida dos lares trocada pela patifaria de programa como o BigBrother. O maníaco sexual, hoje, está dentro de sua casa. A juventude continua enferma, sôfrega, cantando forró erótico, sofrível, de letra pobre e homicida, pois, assassinaram a memória musical de Luiz Gonzaga e toda aquela côrte formidável de intérpretes da verdadeira mentalidade nordestina. Tudo é abuso, transgressão, subversão da ordem social, cultural e política. 

A criança, na escola ou em casa, aprende logo a dançar, remexer o traseiro, a ensaiar os passos promocionais do funk,  rumo ao estrelato, para gáudio dos olheiros pedófilos. Ninguém quer ser honesto. Meretriz em vez de atriz. Eu sei, eu sei que o tempo muda os costumes, o mundo gira, uma geração difere da outra num rodízio interminável. Mas, não poderia mudar prá melhor? Por que os vícios permanecem e triplicam a nocividade no ser humano que cada vez mais sucumbe e se bestializa?  

Bem-vindos ao trágico, ao catastrófico e ao sinistro das estatísticas do pós carnaval nas estradas, nas ruas, nas praias, onde tudo é subvertido em nome da velocidade, do alcoolismo e da vulgaridade. Quantos inocentes não morrem no lugar dos maus? O fabricante do cenário do crime é sempre o próprio homem, pela ganância do dinheiro, pelo prazer indecoroso do sexo e, enfim, toda permissividade inclinada eternamente para o ilícito. Isso vem da gênese e do gênesis. Aliás, o pecado não mora ao lado e sim, dentro de nós. 

Não pensem que sou contra o carnaval, a música, a dança, aos divertimentos públicos. Absolutamente. Critico o excesso na bebida, o consumo de drogas, a degradação dos costumes pelo modismo em nome de uma falsa modernidade. Esquece o passista que o chão onde pisa é também o repouso da carniça. 

São coisas minhas, muito minhas. Imaginar que as festas ditas profanas reúnem milhões de foliões com gastos e gostos extravagantes!! E as festas beneficentes em prol dos oprimidos, dos sem tetos, sem planos de saúde, desempregados e famintos não chegam nem a agrupar um terço de gente e de recursos? Em dezenas de capitais do Brasil o carnaval dura de sete a oito dias. Feriado religioso é mais comemorado nas praias que nos templos. Pode ser que a fé cristã esteja perdendo a parada para o mundo cão. Mas, como o Salvador falou em “benditos do meu Pai”, o processo seletivo se resume numa minoria. “Muitos são chamados e poucos os escolhidos”, apesar da imensa misericórdia de Jesus Cristo.
Mas, afinal, quem for partidário do barbarismo que me desculpe: a leitura da Bíblia, como um hábito, é fundamental para evitar e se defender do caos. Seja íntimo, pois, do Senhor. Amém. 



 

A lei do aborto na Argentina

Padre João Medeiros Filho

Em frase lapidar se expressou o presidente da Conferência Episcopal Argentina: “Uma sociedade é definida pela forma como olha para os mais vulneráveis, pobres e indefesos. Eis o que identifica a dignidade de um povo e sua cultura.” Tais palavras aplicam-se igualmente ao nascituro em total incapacidade de defesa. Diante de uma gravidez inesperada ou indesejada, não se deveria interromper a vida, mas abrir espaço para aqueles que a ela são chamados e dela possam participar. Apela-se ao respeito e altruísmo das pessoas, a fim de que todos – e não apenas alguns – sejam bem-vindos à existência.

Divulgou-se que o Papa Francisco calou diante da aprovação da lei do aborto, em seu país de origem. Entretanto, pode-se ler, em sites eclesiásticos, dentre tantos de seus pronunciamentos, uma carta ao movimento “Mujeres de las villas”, datada de 22/11/2020. O Sumo Pontífice também se dirigiu aos ex-alunos clérigos e religiosos, explicando que, ao falar ao mundo sobre a sacralidade da vida, ali estão inclusos os argentinos. Nesse documento, ele foi categórico: “Não é uma lei para os pobres. Ela vai ao encontro do espírito egoísta que rejeita a responsabilidade. Hoje, fala-se tanto em pobres, mas se legisla para os ricos. Os pobres não terão acesso aos efeitos de tal legislação, mesmo se fosse justa e ética.” Alguns países iludem-se com certas leis. Acham que vão resolver os problemas de seus habitantes. O Papa insiste em dizer que o aborto não é somente uma questão religiosa, mas, sobretudo, humanitária e interdisciplinar.

Não aprofundaremos aqui argumentos teológicos. No entanto, convém lembrar documentos históricos, que já registram a preocupação com o direito à vida. Dentre eles, a Carta de Barnabé (início do século II), onde se lê: “Não mates a criança no seio de sua mãe, nem a qualquer momento” (CB 19, 5). O mesmo posicionamento encontra-se em Tertuliano, teólogo e jurista do século II. Ele sintetiza a sua opinião sobre a temática nestes termos: “Não faz diferença tirar a vida de uma pessoa já nascida ou destruí-la ainda nascente. O nascituro já é pessoa humana” (Apologeticum IX, 8).

Evidentemente, trata-se de um tema complexo, envolvendo a Ética, o Direito, a Teologia, a Medicina e outros ramos do conhecimento humano. Há uma pletora de argumentos a respeito do tema. Verifica-se uma gama de opiniões e decisões, partindo em todas as direções. O Superior Tribunal de Justiça (em recurso contra uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de SC) manifestou-se pela vida, ao ocorrer a morte de um nascituro no ventre da mãe, vítima de um acidente automobilístico. Aquela corte federal argumentou que havia vida no nascituro, pronunciando-se a favor do pedido de indenização, determinando a seguradora “efetuar o pagamento pela perda de uma vida humana”. Jean Ladrière, ex-professor de Filosofia da Universidade de Louvain (Bélgica), afirmava que “não se pode discutir o tema sob um único enfoque, há nele uma interdisciplinariedade envolvida. Discutir apenas sob um ângulo, revela leviandade”. Manifesta-se também seu colega Albert Dondeyne: “A concepção a e expectativa de vida, já são a vida. Assim como é assentimento jurídico que a expectativa de direito começa a produzir os seus efeitos”.

Gostaríamos de recordar a contundente argumentação do professor Louis Janssen, docente de Teologia Moral, na cita universidade belga e orientador de nossa tese teologal. O renomado mestre lança para reflexão dos católicos algumas interrogações: “A vida humana é nossa propriedade? Tem-se escritura cartorial dela? É criação absoluta e fabricação nossa? Patenteamos a sua fórmula em alguma instituição de direitos autorais? Se não é nosso patrimônio assegurado, não nos cabe dispor dela, como nos convém”. E arremata: “Somos apenas guardião da vida, não seu inventor e dono legítimo”. Constata-se muita veleidade na discussão do tema. Seria salutar aos cristãos refletir sobre as seguintes citações: “Não matarás a criança, fruto do teu seio” (Didaqué II, 2). A vida não é uma invenção do homem – embora tenha recebido o dom de transmiti-la – tampouco propriedade de quem a possa gerar ou acolher. Não matarás o inocente e não justificarás o culpado” (Ex 23, 6).

 

A verdade e a mentira

Padre João Medeiros Filho

É conhecido o quadro intitulado “A Verdade saindo do poço”, do pintor francês Jean Léon Gerôme. A obra é inspirada numa antiga parábola de origem judaica. Ela narra que a verdade e a mentira, em um dia ensolarado, saíram para caminhar e encontraram um poço. Resolveram banhar-se, pois a temperatura da água estava convidativa. Cada uma tirou a roupa, e entraram n’água. Em dado momento, a mentira maliciosa, aproveitando-se da distração e pureza da verdade, esgueirou-se e vestiu as roupas de sua acompanhante. Quando esta terminou o seu banho, sentiu-se ludibriada e recusou-se a usar os trajes da mentira. Saiu desnuda pelos campos e aldeias para desmascarar a rival. A mentira vestida, passando-se pela verdade, era acolhida pela população. Entretanto, ouviam-se impropérios e condenações contra a enganada e traída, que estava despida. Moral da história: não raro, as pessoas estão mais propensas a acatar a mentira com aparência de verdade do que enfrentar a realidade nua e crua.

Eis uma metáfora dos seres humanos – frequente nos dias atuais – em que notícias falsas soam como verídicas, mostrando-se com trajes enganosos. Aquilo que é ostentado com requinte na mídia ou nas redes sociais, nem sempre é autêntico ou goza de veracidade. Hoje, muitos consomem tempo e dinheiro com ostentações, que podem ocultar situações desprezíveis, individuais e sociais. A maquiagem (particular e pública) vem se tornando um artigo indispensável, no dia a dia de vários indivíduos. A aparência ardilosa e ilusória está se tornando cada vez mais constante. Por exemplo, atualmente, não faltam procedimentos estéticos e cirúrgicos para dissimular imperfeições ou aspectos não aceitáveis. Esteticistas e cirurgiões plásticos passam a exercer um papel crucial na busca da felicidade de muitos. É uma das aplicações da parábola aqui citada. Tenta-se apresentar o inverídico e dissimulado como verdadeiro e real. Isso acontece também na política e na vida pública. A inverdade camufla-se no sofisma, “o qual é a forma sutil e aparentemente científica da mentira”, segundo o filósofo Duns Escoto.

Outra característica do momento é a exposição da imagem. Há tecnologias e meios de comunicação especializados em produzir disfarces. O “photoshow” tornou-se um instrumento corriqueiro. Fotos veiculadas nas redes sociais e na mídia são produzidas para provocar impacto e, na medida do possível, iludir. Existem alguns deontologistas pregando a Ética da Estética diante do que é “fake” (em difusão de notícias, publicidades, comportamentos etc.). Há os que exultam com certas imagens buriladas e sequer perguntam se correspondem ao real. Não faltam aqueles que teimam em disfarçar seus cabelos brancos, como se isso conseguisse modificar a idade cronológica. O mesmo tipo de dolo acontece no mundo do marketing, dos relacionamentos, da política, da religião etc. Infelizmente, nos tempos de hoje, reina a cultura da falsidade. E a maioria das pessoas se acomoda a este estilo de vida. Por vezes, somos preparados para esconder nossa verdadeira condição e a viver das aparências. Cristo já alertava: “Que o vosso sim seja sim, e o vosso não seja não. O que passa disso vem do Maligno.” (Mt 5, 37).

É próprio do ser humano querer revelar um conceito de si mesmo diferente da realidade. Nem sempre somos tão bons, justos, generosos, honestos e leais como pensamos e desejamos que os outros acreditem. Isso já era denunciado pelo Mestre da Galileia, diante da hipocrisia de seus contemporâneos. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados, por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossadas e podridão. Assim também vós: por fora, pareceis justos diante dos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e iniquidade.” (Mt 23, 27). Dar-se conta disto é o caminho para se chegar à verdadeira ipseidade. O mundo das aparências traz consigo o peso da escravidão. Assim também é na vida pública, familiar e social. Descobrir a verdade sobre nós mesmos, sobre aquilo que nos cerca, é o início da nossa libertação. Santo Anselmo, arcebispo de Cantuária (século XI), pregava: “a verdade é filha predileta de Deus e a mentira procede do demônio!”