terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

 

CHOQUES FITOSSANITÁRIOS

 

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

 

O mundo jamais deixou de viver seus horrores pestilenciais. As pragas, as pestes e doenças contagiosas já dizimaram milhões de pessoas. Nada aconteceu por acaso. Desde a Antiguidade, passando pela Bíblia, fiel registro dessas ocorrências, até as regiões mais antigas e confins superatrasados da terra, todos experimentaram múltiplas epidemias. A grande maioria atinge tanto o ser humano como os animais. E a transmissão pode ser recíproca. Gripe espanhola, febre amarela, varíola, gripe asiática, gripe do frango, doença da vaca louca, a gripe suína e agora, o Coronavirus com suas variantes, que obrigam à vacinação três ou mais vezes, quem sabe? Todo esse elenco epidêmico afligiu os continentes nos séculos vinte e vinte um provocando milhares de óbitos. Alguns surtos assumiram proporções de pandemia que desafiam os higienistas, sanitaristas e infectologistas,  os quais, mesmo tendo inventado vacinas, não conseguem deter ou isolar as causas de novos ciclos viróticos completamente.

Essa é a questão. Por que, em plena era da cibernética, da exploração do universo, da informática, o homem ainda não conseguiu descobrir os males da própria degeneração das carnes humana e animal? Ou poderia tal fato ser atribuído à própria corrupção humana, fruto da depravação hereditária por sermos deste mundo? Faço tais reflexões por razões históricas. A raça humana sempre se inclinou à depravação dos costumes, das relações sexuais, da permissividade das leis, ao afrouxamento das medidas de prevenção às doenças infectocontagiosas, às guerras, e, enfim, à quebra das barreiras fitossanitárias em face das condições miseráveis de vida. Assim acontece com mais de dois terços da população mundial. A chamada gripe suína, por exemplo, surgiu nas fronteiras de dois países (México e Estados Unidos), cujas causas ainda não estão totalmente explicadas pelos cientistas. Todavia, muitas são as ilações a respeito.

O excesso da população do globo, que duplica a cada década, o lixo descartável, os dejetos dos esgotos despejados nos rios e oceanos, o subsolo do mundo afora repleto de restos de animais e cadáveres, as fossas sépticas das imensas metrópoles e cidades, muitas a céu aberto, enfim, os próprios hospitais infectados, tudo deve ser levado ao diagnóstico sobre o ar pestilencial que respiramos. Um descuido aqui outro acolá pode levar o planeta a uma pandemia, porque a ciência médica não evolui na mesma proporção dos desmantelos gerados pelo homem.

 

Se não forem redobrados os estudos, as pesquisas e os cuidados, peço a Deus que não permita o surgimento da gripe canina, do vírus felino, da virose da barata, como veio do rato a peste bubônica e chegou do mosquito a dengue. O ser humano de hoje luta para superar as enfermidades comuns do seu corpo (enfarto, câncer e segue-se uma lista interminável) e as infectocontagiosas por agentes externos bem demonstram a tragédia comum da carne – de que pouco somos neste circo e ciclo terrestres.

Sobre essas divagações, aceitem-nas ou não. Que cada leitor reflita por si mesmo. Exercite o pensamento. O seu livre pensar. Necessitamos nos apropriar da fonte sobre a certeza desses fenômenos, verdadeiros inimigos invisíveis. Não devemos para sempre ser escravos dos permanentes temores. De minha parte, já que não tenho a competência de julgar o mundo nem a ciência de curar, é lógico, prefiro sondar as profundezas do Espírito Santo de Deus e crescer na graça e nas palavras consoladoras de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

(*) Escritor

 

As “incelenças”

Padre João Medeiros Filho

São cânticos ou benditos fúnebres, executados por grupos de rezadores e rezadeiras (distintos das “Encomendadeiras das almas”), durante a vestição da mortalha, o velório (“fazer quarto”) e o sepultamento dos fiéis. Existem ainda em vários estados do Brasil. Discute-se a origem do termo. Evidentemente, trata-se de uma corruptela da palavra excelência. Para Oswaldo Lamartine, arrimado na Missão Abreviada, o termo provém de “orações de excelência para conduzir a alma ao Céu.  Lamartine seguia a recomendação do apóstolo Paulo: “Guardai cuidadosamente as tradições que vos foram ensinadas” (2Ts 2, 15). Segundo Théo Brandão, originalmente as incelenças eram cantadas nos funerais de criancinhas, verdadeiros anjinhos e excelências da corte celestial. De acordo com alguns historiadores, tal costume foi trazido de Portugal e enriquecido com elementos indígenas e africanos. Há vestígios de sua existência na Itália (Sicília) e na Grécia Antiga. Cabe lembrar que no sertão nordestino, urbano ou rural nem sempre existia a presença sacerdotal para presidir os funerais, nascendo formas alternativas de encomendação.

Os clérigos mostravam no passado (talvez ainda hoje) pouco apreço pela religiosidade popular. Faltava-nos uma melhor formação para perceber a riqueza cultural, integrante da identidade de nosso povo. Não fomos iniciados na verdadeira seiva da sabedoria popular que constrói as tradições de nossa gente. Em razão desse menoscabo, muita coisa se perdeu. Padres Jocy Rodrigues (Tutóia/MA) e Reginaldo Velloso (Olinda/PE) conseguiram resgatar obras primas. Houve tempos em que as incelenças eram consideradas superstições, sendo desestimuladas ou proibidas. Hoje, muitos movimentos tentam perpetuar a rica tradição religiosa e cultural. Dentre tantos, destaca-se um grupo da comunidade de Cabeceiras, em Barbalha (CE). Assevera-se que a sistematização das incelenças começou com o Padre José Antônio de Maria Ibiapina (1806-1883). Este organizava equipes de fiéis (beatos), denominados “penitentes”, para catequizar o meio rural.

Por muito tempo, tais cânticos constituíram parte fundamental dos velórios na região do semiárido, tendo sido registrados por vários estudiosos. Em “Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, a conversa entre Severino e a Comadre – na qual ela lhe pergunta se sabia rezar incelenças – sugere que estas desempenhavam papel importante na vida cotidiana das comunidades nordestinas. Assim lemos em João Cabral: “Essa vida por aqui é coisa familiar. Mas, diga-me retirante, sabe benditos rezar? Sabe cantar excelências, defuntos encomendar? Sabe tirar ladainhas? Sabe mortos enterrar?”  Dorival Caymmi gravou um desses benditos com o título de “Velório”, explicitando o fato de que para o sertanejo os velórios e as incelenças são quase inseparáveis. Algumas foram gravadas por: Clementina de Jesus e Edu Lobo. Nara Leão canta a incelença da Virgem: “Oh! Mãe de Deus, rogai por ele [falecido]. Esperança nossa, fonte do amor, gênio do bem, honesta flor.”

Nessa forma popular de velório, realizada na casa do falecido – estendendo-se por toda a noite anterior ao enterroatribui-se aos cânticos e rezas a propriedade de invocar anjos e santos, que, segundo a crença, acompanham a alma do falecido até o destino conveniente. De transmissão basicamente oral, nem sempre formam um ritual homogêneo, variando conforme a região, o grau de instrução dos presentes etc. Em tais rituais, há amálgama entre práticas oficiais da Igreja Católica e hábitos da religiosidade popular. Em muitos casos, versos lúdicos e trechos de cordel – despidos de qualquer significado místico – são enxertados para consolar os parentes do falecido.

A estrutura literária dos benditos é poética, geralmente composta de grupos de doze estrofes, suplicando misericórdia, demonstrando penitência e arrependimento pelos pecados cometidos. O número é simbólico em homenagem aos doze apóstolos de Cristo. A figura intercessora de Maria Santíssima sempre está presente. Inspiradamente, Ariano Suassuna a denomina “A Compadecida”. A musicalidade é um misto de canto gregoriano em forma de salmodia com sons e tons de aboio. São cânticos de melodia despojada, com o predomínio do estilo silábico e sonoridade repetida, proferidos diante do defunto pelos familiares, amigos e vizinhos. A vida e a morte são elementos importantes da religiosidade popular no Brasil. Revelam a espiritualidade do povo brasileiro, que vive em profunda comunhão com Deus, em quem deposita uma infinita confiança. Há consciência de que “Deus é o Senhor da vida e da morte.” (1 Sm 2, 6).

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

 

O psicólogo penal
Já escrevi, embora não recorde mais onde e quando, sobre Cesare Lombroso (1835-1909) e Enrico Ferri (1856-1929). Hoje é hora de conversarmos sobre Raffaele Garofalo (1851-1934), que, ao lado dos dois vultos precitados, formou a tríade da chamada Escola Positiva (italiana) do Direito Penal.
Garofalo nasceu na belíssima Nápoles. Estudou direito na Universidade da sua terra. E foi ser muitas coisas na vida. Magistrado (promotor em Nápoles e juiz na Corte di cassazione do seu país) e senador do Reino da Itália. Foi jurista e, especificamente, criminólogo. Foi um exacerbado conservador (o que o distinguia de Ferri, notório socialista), tendo militado a favor da pena de morte, inclusive daqueles mentalmente doentes, e aderido, para o final da vida, ao fascismo de Mussolini (1883-1945).
Como registra Walter Nunes da Silva Júnior (no texto “A escola positiva e os seus precursores”, constante da Revista da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande Norte, ano V, nº 6, novembro de 2021): “Garofalo foi um dos arautos da Escola Positiva e produziu extensa bibliografia. O seu escrito mais completo, no qual expôs o seu pensamento jurídico da Escola Positiva, foi Criminologia, editado em 1885. Outros escritos que merecem destaque foram Rippazazione alle vittime del delitto (1887) e La superstition socialiste (1895). Atribui-se-lhe o início da elaboração jurídica da Escola Positiva, trazendo, como elemento novo aos aspectos antropológicos de Lombroso e sociológicos de Ferri, as questões de ordem psicológica”.
De fato, entre os seguidores de Lombroso, surgiram derivações que enfatizavam outros condicionamentos como causa – ou, pelo menos, concausa – da criminalidade. Segundo Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, WMF Martins Fontes, 2014), “teve particular importância a obra de Enrico Ferri (1856-1929), advogado e político de ideias socialistas – foi também deputado por muito tempo –, autor da Sociologia criminal (1884), bem como o pensamento de Garofalo, magistrado atuante na primeira fase de preparação do Código Penal de 1889. Esses criminalistas insistiam não apenas na denúncia das discriminações sociais como motivos da criminalidade, mas também e sobretudo no tema da prevenção como meio principal para a diminuição dos fenômenos criminosos”.
A meu ver (e que não me xinguem os panfletários do punitivismo radical), a “pena” de Garofalo era pesada demais. A sua defesa da pena de morte, inclusive dos mentalmente doentes, da prisão perpétua, da prisão preventiva obrigatória para determinados crimes, a sua paixão por um processo penal inquisitorial (abeberando-se no outrora adotado pela Igreja), sem publicidade ou oralidade, a desimportância dada às nulidades (inclusive a ausência de advogado para o réu), a sua quase inversão do princípio da inocência, entre outras coisas, são, para mim, demais. Embora eu também entenda que era uma tática, exagerada (deixo claro), de se opor à Escola e ao direito penal clássico, de Beccaria a Carrara. E isso sem falar no seu abominável fascismo.
Entretanto, assim como se dá com Lombroso, que “exagerou” em diversos pontos, há também muito de bom em Garofalo. Lombroso iniciou o estudo da pessoa do delinquente e foi, assim, sua antropologia criminal que primeiro jogou luz sobre a pessoa do criminoso, na busca das causas que levavam este a delinquir e de como evitar esse ato. A isso o marxista/socialista Ferri somou o seu fatalismo social. E Garofalo muito contribuiu com o seu determinismo, de ordem psicológica, que segue uma trilha antes aberta por Charles Darwin (1809-1882) e Herbert Spencer (1820-1903). Ainda hoje somos influenciados por Garofalo, entendendo que o Estado deve intervir sobre o indivíduo/criminoso que não se adapta às regras da sociedade, às exigências de convivência, segregando-o, porque psicologicamente tendente ao ilícito, prevenindo a sociedade do cometimento do crime (caráter essencialmente preventivo da pena). Tirando os exageros, que são muitos sob a lupa de hoje, há em Garofalo sobretudo o enorme ponto positivo de misturar a psiquiatria/psicologia nos estudos do direito penal.
E, para resumir o papel de cada um dos “grandes” da Escola Positiva italiana, podemos dizer que Cesare Lombroso foi o seu antropólogo (penal); Enrico Ferri, o seu sociólogo; e o nosso Raffaele Garofalo, com certeza, o seu psicólogo. Daí a razão do título dado a este riscado.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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