terça-feira, 21 de março de 2023

 

A virtude da delicadeza

Padre João Medeiros Filho

Em artigo publicado no Jornal do Brasil, em junho de 2006, o escritor Affonso Romano de Sant´Ana opinou como necessária a virtude da delicadeza para redimir a grosseria e a violência, que parecem dominar o mundo hodierno. O termo possui larga sinonímia na língua portuguesa: afabilidade, atenção, amabilidade gentileza, doçura, suavidade etc. Provém do latim castrense “delicatum”, significando desligado, solto, leve, liberto, delicado. Este não possui amarras, é livre das convenções e chega a possuir na linguagem bíblica o sentido de autêntico. Na literatura veterotestamentária identifica-se com ternura. A esse respeito, Carlo Rocchetta escreveu um belíssimo trabalho, intitulado Teologia da Ternura.

Importa ser atento e sensível ao outro, à sua dor e alegria. O cristianismo ensina-nos que a delicadeza é uma virtude bíblica, cuja razão de ser reside na essência de Deus. O salmista deleita-se com a suavidade divina, exortando os que o leem ou escutam: “Provai e vede como o Senhor é suave. Feliz o homem que nele se abriga” (Sl 34/33, 9). Cristo, em suas recomendações aos discípulos, mostrando que se deve amar até mesmo os inimigos, aponta o fundamento evangélico da necessidade de sermos afáveis e ternos uns com os outros. Uma das novidades de sua pregação consiste em afirmar que Deus é Pai, cheio de bondade, comiseração e paciência conosco. O apóstolo Paulo, pregando aos gálatas, enumera entre os frutos do Espírito “a brandura e a delicadeza” (Gl 5, 22). Elias experimentou Deus na serenidade da brisa. “Ele é suave e doce”, afirmou Teilhard de Chardin. Na verdade, a inefável presença de Deus é tácita e partilhante.

As palavras de Cristo são plenas de sinais (inefáveis e sem parâmetros) da delicadeza e doçura de Deus. “Vinde a mim todos vós que estais cansados sob o peso do fardo e eu vos aliviarei. Sim, o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11, 30). Cristo revelou-se sempre em seus encontros como uma pessoa solícita, capaz de escutar e compreender. Quanta atenção com Zaqueu, a samaritana, a mulher pecadora e até Dimas, seu vizinho de crucificação. Vários exegetas, dentre eles Jacques Dupont em “Les beatitudes”, afirmam que a delicadeza é uma bem-aventurança e traduzem por “bem-aventurados os delicados” (Mt 5, 5), em lugar de mansos. Alguns Padres da Igreja, como Irineu de Lyon e Gregório de Nissa, compreendem que a bem-aventurança da mansidão habita naqueles que se mostram delicados e atenciosos com os irmãos.

Na verdade, o mundo de tanta irritabilidade, impaciência, insensibilidade, falta de tempo e agressividade caminha na contramão do Evangelho. Santo Antão, anacoreta e pai dos monges orientais, ensinava que a falta de delicadeza com o outro é sempre grave, pois lesa a natureza do ser humano, criado à imagem de Deus. Este é terno e compassivo com todos. Quando seminarista na Bélgica, fui designado para acolitar a missa do Cardeal Joseph Cardijn. Dele ouvi: “Pode-se medir a espiritualidade de uma paróquia pela delicadeza com que se é tratado na sacristia ou secretaria.” Simone Weil, judia convertida ao cristianismo, a definia como “o sorriso do coração. Só a possui quem priva da intimidade com Deus.” Quem é próximo do Altíssimo, percebe a sua afabilidade, sente o seu toque doce dentro de si, sabendo reconhecer sua presença nos outros. E, se por ventura, alguém não agradar aos nossos olhos, não deve esquecer sua beleza interior, pois todos são templos do Espírito Santo (cf.1Cor 3, 16). Cada ser humano é sacramento do Divino.

 É conhecido o poema de São João da Cruz, dedicado ao Crucificado: “Oh! Toque de amor, quão delicadamente me amas!” A experiência da suavidade divina convida-nos a ultrapassar os limites da violência que nos desumaniza. Lembremo-nos dos recentes acontecimentos, aqui no RN, beirando à barbárie. Por isso, a delicadeza faz-se cada vez mais necessária, nos dias atuais. É preciso senti-la, como a mão de Deus que nos acaricia, para poder irradiá-la aos nossos irmãos. Eis o conselho contido no Livro dos Provérbios: “Uma resposta delicada acalma, enquanto uma palavra áspera atiça o furor” (Pr 15, 1).

segunda-feira, 20 de março de 2023

 

Genardo Lucas, um pioneiro esquecido da música erudita potiguar

Em texto publicado no site Navegos, historiador lembra a importância do primeiro violonista erudito do Estado, que faleceu em 2020, aos 85 anos

Por Claudio Galvão | texto original do site Navegos  www.navegos.com.br

A tradição de Natal como terra de intelectuais, poetas e boêmios vem dos anos 1800. Há uma quadrinha popular que diz: “Rio Grande do Norte / Capital Natal / Em cada esquina um poeta / Em cada rua um jornal”. Na área musical, por exemplo, a publicação “A Modinha Norte-rio-grandense” (Edufrn; 2000), de minha autoria, apresenta letras e partituras musicais de trezentas e sessenta e uma modinhas que eram cantadas na cidade, sendo duzentas e uma delas de autor local confirmado. Não se conhece pesquisa semelhante em outros Estados do país.

O poema musicado era mais conhecido como modinha. A quase totalidade deles era originado de autores que compunham ao violão, um instrumento tocado sempre “de ouvido”. Era raramente solista, mas sempre acompanhador de cantores ou outros instrumentos. Sabe-se com certeza que o mais antigo poeta de Natal foi Lourival Açucena (1827-1907). O seu livro póstumo de poemas, “Polianteia”, traz alguns deles com a advertência: “Tem muzica do auctor”. É ele o primeiro poeta que se conhece sendo “tocador de violão”.

Depois dele vem Heronides de França (1860-1926), de quem se tem notícias graças aos jornais da época. Sabe-se que era também solista, mas não deixou nada escrito. As músicas que criou para versos de poetas locais são de grande riqueza melódica. Vem, em seguida, Eduardo Medeiros (1888-1961), que se notabilizou como autor da melodia da célebre “Praieira dos Meus Amores”. Mais recente é Olympio Baptista Filho (1889-1942), ele mesmo também poeta e autor de grande número de belas melodias. Resta destacar o violonista Henrique Brito (1907-1935) que, residindo no Rio de Janeiro, foi o primeiro natalense a gravar discos. A cidade foi perdendo paulatinamente os velhos hábitos dos poetas, violonistas e cantores vivendo românticas serenatas pelas ruas desertas.

O progresso dos toca-discos, cinema, rádio e, recentemente, a televisão puseram o ponto final. Agora as músicas são outras, inteiramente diferentes. O velho violão popular, tocado “de ouvido”, também haveria de ter a sua transformação, mesmo que ainda mantendo a tradição dos acompanhadores. Tudo começou com a presença em Natal do violonista areia-branquense Amaro Siqueira (1908-1970), que estudou violão no Recife. Voltando para Natal, ensinou violão no Instituto de Música e para particulares. Apresentou diversos recitais e, no dia 26 de setembro de 1948, criou o Clube do Violão. Iniciava-se, então, a fase do violão erudito na cidade, com repertório tanto popular como clássico e sempre tocado por música. É nesse contexto que aparece o jovem Genardo Lucas da Câmara, hoje com 84 anos.

Quando criança, tocou trombone numa banda infantil, aí se iniciando na teoria musical. Em sua casa, a maior influência: seu pai, João Lucas da Costa, e seu tio, José Lucas, eram exímios violonistas populares. O contato com o Clube do Violão indicou-lhe o caminho do instrumento tocado por música, rapidamente ingressando no repertório erudito. Sem contar com apoio de um professor, desenvolveu-se apenas através do conhecimento da teoria musical, aliado a seu talento e particular musicalidade. Genardo Lucas marcou a história da música no Rio Grande do Norte por ter sido o primeiro natalense a apresentar recitais eruditos de violão.

Seu primeiro concerto realizou-se no Teatro Carlos Gomes (atual Alberto Maranhão), no dia 12 de janeiro de 1954. A 5 de junho de 1957 apresentou-se no salão de festas da sede do ABC Futebol Clube (prédio demolido, onde hoje é o CCAB-Petrópolis). Apresentou-se, ainda, no Recife, no auditório da Caixa Econômica Federal, em 30 de maio de 1959. Seu último recital realizou-se no Clube dos Oficiais da Base Naval de Natal, em 26 de junho de 1960.

A partir de então, na impossibilidade de dedicar-se inteiramente à sua arte por falta de campo profissional na cidade, dedicou-se a outro tipo de atividade. Hoje, a Escola de Música da UFRN oferece cursos completos de violão, a cargo de professores portadores de mestrado e doutorado, oferecendo ainda mestrado no instrumento.

Há sessenta anos passados, as dificuldades eram quase intransponíveis. Os cultores do violão têm hoje todos os motivos para reconhecer e homenagear o exemplo, força de vontade e pioneirismo de Genardo Lucas, nosso primeiro violonista erudito.

*Claudio Galvão, professor e criador do Departamento de Artes, do Núcleo de Arte e Cultura e do Laboratório de Restauração de Livros e Documentos da UFRN, é autor do livro “Oswaldo Souza – O Canto do Nordeste” (Funarte; 1988), além de ser pesquisador, organizador e introdutor das obras de Othoniel Menezes, Tonheca Dantas e Sebastião Fernandes.
*O violonista faleceu em 2 de março de 2020, na Policlínica, aos 85 anos. Estava lúcido e ainda tocando violão.