quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

 

 


A presença do Filho de Deus

Padre João Medeiros Filho

Regalos, mimos e lembrancinhas foram comprados, adornando as árvores natalinas. Serão abertos na noite santa. As crianças tornam-se ansiosas e felizes. Pais e avós ficam emocionados, ao ver a alegria ingênua de seus filhos e netos. Talvez, lembrem-se de sua infância e imaginam, como o poeta Guilhermino César: “Quem me dera voltar a ser criança outra vez!” Procura-se ornamentar a cidade, mesmo persistindo a pandemia. Brilham luzes coloridas. Parecem dias de encantamento, envolvendo todos. Afloram sentimentos positivos naqueles que creem e até nos incrédulos. Por alguns dias, a bondade e a solidariedade pairam no ar. Trocam-se mensagens de paz e felicidade, braços abertos para o encontro. Serve-se a ceia de natal com fartura de alimentos, nessa noite. Alguns ignoram seus reais motivos e simbolismo.

Difícil encontrar quem não goste do Natal, um período marcado de esperança e alegria. Mas, passa rápido. O que se celebra mesmo nesse dia? Parece relegar-se a um segundo plano o verdadeiro sentido do nascimento de Jesus, o qual deu origem ao cristianismo. Ocorreu há mais de dois mil anos, na Judéia, quando o Império Romano dominava aqueles povos. E, por ser quem Ele é, não se festeja apenas um aniversário, mas comemora-se o evento mais importante da história da humanidade. Na Criança, nascida da Virgem Maria, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio à terra. “O Verbo divino se fez carne e habitou entre nós.” (Jo 1, 14). O Eterno entra no tempo. O Infinito faz-se finito. O Todo-Poderoso quis ser pequeno e frágil. Nele contemplamos o rosto humano de Deus e a face divina do homem. Cristo é solidário. Assume nossa pequenez para nos comunicar uma dignidade sublime. Chama-se “Emmanuel”: Deus conosco, Salvador e Redentor da humanidade. Eis o que os cristãos afirmam e acreditam a respeito Dele. Assim, devemos festejar a sua vinda!

Talvez alguém diga: impossível, inconcebível um Deus se tornar humano, sem deixar de ser divino! Isso não faz o menor sentido, dizem alguns! A própria Mãe de Jesus quis saber como seria tal realidade. “Como se dará isto”? (Lc 1, 34) E muitos, depois dela, duvidaram e continuam a dizer: “Não é possível; não pode ser!” É preciso entender as palavras do anjo: “É obra divina, não do homem. Não tenhas medo, Maria. Para Deus, nada é impossível” (Lc 1, 37). A beleza do Natal convida-nos também a esquecer as divergências, sobretudo as agressões e polêmicas ideológicas, oriundas de um radicalismo reinante no Brasil hodierno. Infelizmente, as convicções político-partidárias importam mais que o bem-estar do povo. Natal é um apelo para afastar tudo aquilo que causa divisões, contendas, contradições e hipocrisias na vida social e pública. Urge encontrar Aquele que será capaz de unir, disseminar a paz, nutrir o diálogo e espírito de concórdia, advindos do Verbo encarnado. A reconciliação e o perdão serão consequências da presença de Cristo entre nós.

Vale lembrar o Livro da Sabedoria, que profetizava o nascimento de Jesus: Palavra divina e Luz infinita. A Ternura celeste quis armar a sua tenda entre nós. “Quando a noite ia ao meio do seu curso e um silêncio profundo envolvia o universo, a tua palavra doce, serena, mansa e todo-poderosa desceu do seu trono real para a terra” (Sab 18, 14- 15). O Natal comemora a clemência divina, que se inclina para o homem. O Altíssimo fez-se criança, no meio de nós, para enriquecer-nos com sua grandeza. O homem não pode chegar sozinho a Deus. Mas, não é impensável para o Onipotente aproximar-se do ser humano. Por que Ele deveria ficar atrelado a nossos limites e critérios? Não podemos impor restrições ao amor infinito de nosso Criador. Jesus encarnou-se para que pudéssemos conhecer a magnitude da graça, da misericórdia e do perdão. “Ó surpresa celestial, maravilha divina e inefável. Alvíssaras para o homem!” Assim, exclamou Santo Agostinho. Nada perde o Criador, ao unir-se à criatura, a qual ganha tudo, deixando-se envolver pelo amor surpreendente e inefável de Deus! Feliz Natal para todos e que Cristo habite no coração de cada um!

 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

 


Juristas balzaquianos
Fiquem calmos: não vou relatar confidências de advogadas e advogados de mais de 30 anos. Embora adore essas fofocas (quem não gosta?), a conversa hoje é mais séria. Sou literal, digamos. Refiro-me aos profissionais do direito na obra de Honoré de Balzac (1799-1850).
“A Comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas.
Juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances.
E juristas imaginados pelo autor. Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996), teria contado mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da Comédia. Já em “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (Editorial Jusbaires, 2015), os organizadores Antoine Garapon e Denis Salas lembram: “Ali encontramos figuras de sujeitos de direito como os herdeiros de Ursule Mirouët, o ausente em O coronel Chabert, a falência em César Birotteau. O espelho que essa obra apresenta nos remete aos esplendores dos novos status da sociedade burguesa, como às suas sombras. O romance balzaquiano desvela um mundo de interesses e de crimes. (…). É o mundo de Esplendores e Misérias das Cortesãs, que celebra a mitologia romântica dos fora da lei”. Por outro lado, Balzac muitas vezes abre “um espaço positivo para a lei”, como no procurador-geral Granville, que encarna a nobreza da profissão do direito. Balzac crê nas instituições. Para ele, o juiz é um centro da sociedade, esta cheia de contradições, é vero. E se temos o juiz Popinot de “A interdição”, “pleno de modéstia e grandeza, homem justo e humilhado”, também encontramos o “flexível Camusot”, o juiz de instrução “destinado a uma carreira brilhante”.
São personagens tiradas ou postas – depende de olharmos pelo ângulo da inspiração ou da criação – de/em fiéis “cenas da vida jurídica” (inclusive citando decisões reais de cortes francesas). Desses personagens e cenas, tomemos o caso do juiz Popinot, de “A interdição” (1839), talvez o mais “investigado” dos juristas balzaquianos. “A interdição” é um texto seminal. Um romance curto e denso, em que o autor retrata as realidades do quotidiano e do foro. Várias de suas personagens são achadas em outros romances da Comédia, como de estilo no “mundo” de Balzac. A trama gira em torno da busca da Marquesa d’Espard para interditar o seu marido, de quem vive separada há anos. Seria o Marquês um louco pródigo, que impede uma mãe de ver os filhos e desperdiça a fortuna? Ou seria a Marquesa uma mulher inescrupulosa, disposta a qualquer coisa? É para decidir isso que são encarregados o “íntegro” juiz Popinot e o “flexível” juiz Camusot. E, sem crise de consciência, digo mais nada.
Balzac teve o seu modelo de magistrado no juiz Popinot, que José Antônio Aguirre, em “Escritores y procesos: casos reales y ficcionales del proceso penal” (Ediciones Didot, 2012), poeticamente define como “a ficção de um juiz real”. O autor retratou “este magistrado como um homem de altíssimos valores, severo, equânime, fiel à sua função judicial e de uma decência inquebrantável”. Mas, embora possuidor de numerosas virtudes, o juiz Popinot tem também defeitos (quem não tem?). O principal, embora não venal, é a sua ingenuidade. E a intromissão desse defeito nas suas qualidades faz desse juiz “uma personagem real, verossímil e crível”.
É verdade que Balzac se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade, personagens e por aí vai. Mas também nos deu muito de volta. Basta lembrar a sua contribuição para a preservação de uma história contada do direito, que procuramos inutilmente nos códigos, como lembrou Henri Lévy-Bruhl em “Sociologie du Droit” (PUF, 1981). Ou para a fixação de um vocabulário da nossa ciência. E há, claro, o exemplo do juiz Popinot. Assim, acredito ser “A comédia humana” um monumento da “ficção jurídica”, sem que dois séculos de mudanças prejudiquem a relevância das suas questões de direito. E parafraseio uma advertência constante de “Balzac, romancier du droit” (direção de Nicolas Dissaux, LexisNexis, 2012): “Todo jurista deveria ler Balzac”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL