sexta-feira, 1 de setembro de 2023

 Relendo Confissões de Santo Agostinho 

Padre João Medeiros Filho 

Agostinho Aurélio nasceu em Tagaste (antiga Numídia), aos 13 de novembro de 354, falecendo em Hipona (Argélia), aos 28 de agosto de 430. Foi um dos importantes pensadores dos primórdios do cristianismo, cujos escritos influenciaram sobremaneira o desenvolvimento da fé e o pensamento ocidental. Dentre as publicações católicas, talvez as obras agostinianas, destacando-se Confissões, sejam as mais publicadas, depois da Bíblia e da Imitação de Cristo. Pela densidade poética e originalidade representa um marco na história da literatura religiosa do Ocidente. Elaborou uma nova forma de fazer filosofia e teologia. Não prioriza o ensino calcado em deduções e conceitos abstratos, enfatizando a observação de reações e motivações interiores, do significado dos fatos e gestos cotidianos. Segundo estudiosos, Confissões é uma das primeiras autobiografias de que se tem notícia. Aos olhos de certos terapeutas, pode ser considerada precursora de métodos psicanalíticos. Agostinho despe-se aos olhos dos leitores com a humildade e serenidade de quem se encontrou na estrada da vida. Deixa transparecer a influência do cristianismo em sua caminhada intelectual. Transita pela poesia, psicologia, ética, mística, filosofia e teologia. Relevante é a sua contribuição como teólogo, tendo levado a Igreja a pensar. Em Confissões é possível encontrar o que a psicologia analítica chama “escuta de si mesmo”. O autor já passara dos quarenta anos de idade, quando começou a escrever o seu tão difundido livro, cuja atualidade permanece, passados dezesseis séculos. Desde cedo, o jovem de Tagaste revela sua personalidade e autenticidade, recusando uma proposta de pagar alguém para conseguir vencer um concurso de poesia dramática. A espiritualidade do filho de Santa Mônica é fundamentalmente evangélica, própria de quem se sente “morada divina” (Jo 14, 23). Ele tem consciência da graça de Deus em sua vida: “Senhor, tu não abandonas tuas criaturas como elas esquecem o seu Criador.” E num impulso de manifestação sobrenatural, exclama: “Onde estavas quando te procurava? Tu estavas diante de mim. Mas, eu me afastei até de mim mesmo e não me encontrei, quanto menos a ti! Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!” Desabafo que chega a impressionar até psicanalistas agnósticos. Em abordagem sócio-política, o Santo de Hipona critica os discursos lisonjeadores, demagógicos e oportunistas. Assim, relata: “Como eu era miserável, quando me preparava para fazer o elogio do imperador Valentiniano II, em que haveria de proferir mentiras para ganhar a aprovação dos poderosos.” Sente-se vazio e infeliz, confessando uma certa inveja de um boêmio que cantava e ria pelas ruas de Milão: “Ele era mais feliz do que eu, pois transbordava de alegria, enquanto eu era dilacerado por preocupações. Ele ganhava bebida, desejando felicidade aos outros, e eu buscava a vanglória, mentindo.” A respeito de tais palavras, afirmou Carl Gustav Jung: “Estamos diante de uma humanidade despida.” Em Confissões pode-se encontrar um tocante discurso contra a arrogância, corrupção, deterioração e abuso de poder. Elogia a postura ética de seu amigo Alípio, assessor do Chefe do Tesouro da Itália, de sua época. Assim escreveu: [Era] “um senador poderosíssimo, que a muitos dominava pelos benefícios ou subjugava pelo medo. Valendo-se de seu poder, pretendia que Alípio fizesse algo ilegal e antiético. Prometera-lhe um prêmio, o que foi resolutamente rechaçado. Fizera-lhe ameaças, mas Alípio reagiu com energia incomum, maravilhando a todos por contrariar e não temer como inimigo um homem tão poderoso, reconhecido pela reputação de dispor de inúmeros meios para favorecer ou prejudicar alguém.” Vale a pena meditar sobre as palavras de Santo Agostinho, referindo-se ao Deus Onipotente. Seus textos-orações possuem, além da profundidade teológico-espiritual, uma beleza poética: “NELE brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata e exala um perfume que o vento não dissipa, em que se saboreia um alimento que a sofreguidão não diminui e se vivenciaum contato que a saciedade não destrói.” Ao ler tais palavras agostinianas, parece ouvir-se o canto do salmista: “Quão grandiosas são as tuas obras, Senhor, quão profundos os teus pensamentos” (Sl 92/91, 5).

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

 SOMBRAS DA CIDADE

 

Valério Mesquita




mesquita.valerio@gmail.com

 

O progresso é um cárcere privado, muitas vezes, ominoso e fatal para os telúricos, os proustianos como eu. Nasci na antiga Rua do Comércio, hoje, Nair Mesquita, em Macaíba. O local é um sobrado que não resistiu numa rua de casarões destruídos ou desfigurados. Assim ocorreu com os sobrados onde nasceram na mesma rua: Auta de Souza, Henrique Castriciano, Augusto Severo e Alberto Maranhão.

Da ponte sobre o rio Jundiaí, até a Igreja Matriz em frente a antiga prefeitura, na avenida Nossa Senhora da Conceição - berço histórico, social e cultural da cidade - todo o passado está sepultado sobre o asfalto e edificações novas em nome do progresso. É um visual que choca, punge, frustra. E como são falsas e hipócritas as coisas novas. Esse trecho parece com o bairro do Alecrim, burguês, atrofiado, tumultuado e disforme.

Macaíba perdeu a elegância clássica, altiva, portentosa, de cidade antiga nascida às margens de um rio. Cidade dormitório, super povoada, crescimento desordenado, são outras chagas doloridas de sua deformação permanente. No centro investiram no seu futuro matando o antigo, o passado, o histórico, como se não valessem. Destruíram a sua identidade. Não conheço mais a minha cidade, porque baniram as antigas tardes silenciosas e as manhãs contemplativas das velhas figuras da cidade que tanto encantavam os meus olhos de menino: Olimpio Maciel, Euclides Ribeiro, Emídio Pereira, Manoel Alves, Severino Aleixo, Francisco Moura, Isbelo Vieira, Alfredo de Almeida, José Benevides Campos, Luiz Cúrcio Marinho, Magno Tinôco, José Augusto Costa, Agnaldo Ferreira, João Fagundes, Luiz Marinho de Carvalho (tenho dezenas de outros nomes que se torna enfadonho declinar), sem esquecer as folclóricas: Maria Cabral, Pachêco, Cabeção, Sérgio Cabeceiro, Zé Bomba, Sabiá, Pirôba, Núbia Lafayette, Luiz Bicho Feio, Manoel Dedo Melado, Zé Distinto e tantos outros.

Vivo e convivo com todos esses fantasmas da cidade na minha mente. São sombras que não se desfazem com o tempo porque viveram momentos profundos, densos e intensos. Por mais que Macaíba desintegre a sua configuração urbana elas estão impregnadas nas paredes e refletem no chão dos antepassados, tudo o que já foi. Ninguém pense que sou contra o progresso. Não. Espero que entendam o meu sentimento. Registro o fato como quem fotografa um instante, um instante triste, de um universo perdido de sonhos e ilusões. Uma canção ligeira em louvor de tantos - simples e sábios - hoje, sombras, nada mais.

É nesse vácuo que reside a minha perplexidade. Um silêncio dominado pelo abandono e a indiferença. Ninguém coloca em cena a coragem de contemplar restituído, o universo oculto de Fabrício que fez brilhar o nome de Macaíba dentro e fora do Rio Grande do Norte, na segunda metade do século dezenove. Não bastam, apenas, reprisá-lo com lendas e narrativas, como tivesse sido um mundo de ficção. Melhor que a dispersão da palavra solta, é ouvir o eco de suas paredes reerguidas, das vozes trazidas pelo vento das vidas que não se pulverizaram mas renasceram pelas mãos das novas gerações. Esse universo semi-desaparecido, clamo por ele, aqui e agora, afirmando que a melhor imagem de um homem, após a morte, não são as cinzas, mas a obra que legou à posteridade, revivida e restaurada como reconfortante e fiel fotografia de sua história e vida.

 

(*) Escritor.


domingo, 27 de agosto de 2023

 Carta de Lembranças

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes


    Outro começo de semana, às vésperas do mês de setembro quando completarei 84 anos, posso dizer bem vividos pela Graça de Deus.

    Não é fácil chegar a essa idade, quando você perdeu a sua metade (Therezinha) e manuseia a mídia diariamente, assistindo a partido dos seus ídolos e dos amigos com idades nos espaços dos anos 60 e 70 anos, trazendo a preocupação de quando chegará a minha vez.

    Sou uma pessoa lúcida, mas racionalmente sei que se aproxima o momento e por isso procuro levar a minha vida arrumada para partir em paz.

    Tais pensamentos são reapresentados todas noites na minha solidão voluntária e a preocupação é constante não com o medo da caetana, mas pelos problemas que poderei estar deixando por resolver em relação à família.

    Espero que os meus amigos entendam esse sentimento que venho atravessando e me apoiem com mensagens de carinho e incentivo para que eu não pare, até porque tenho a idade mental de 50 anos num corpo de 100.

    Fico feliz quando ainda posso fazer alguma coisa na vertente da ajuda humanística e, em especial, na da cultura, com crônicas, pinturas e prosas.

    Como todo brasileiro relapso, desde o falecimento da minha querida Teca passei a estreitar os meus laços com as igrejas (sou ecumênico) onde tenho a oportunidade de orar pelos amigos e amigas ainda nesta dimensão da existência, enfermos ou não e pelo que partiram, conhecidos ou fora do meu convívio social.

    Reforcei a capacidade de perdoar os soberbos e aos indiferentes, que se incomodam com algum prestígio que possa merecer na trilha da cultura, não divulgando o que escrevo ou errando nas notícias de eventual lançamento. O que me satisfaz é o resultado e o comentário ao pé do ouvido - poucos, mas que incentivam a continuar.

    Nada melhor num final de vida e carreira do que viver a simplicidade, com amigos igualmente sem ambição, porque eles terão um bom lugar na Mansão Celeste, a qual pretendo habitar um dia.

    Vários amigos me cobram as Cartas de Cotovelo. Vou atendê-los a partir de novembro, com o meu regresso à minha pasárgada litorânea. Por enquanto algumas poucas cartas avulsas, para evitar a prescrição.

    A rede e a brisa me esperem, Estou voltando.

    

 .



PARA SOFIA

SOFIA, o coração me prende
e há nele um grande amor
que o amor de Deus revela:

Olhar para você
pequenina como uma estrela
que se avista na noite
e sentir o universo
no amor de seu coração
que vem bater junto ao meu

-  Horácio Paiva