sexta-feira, 2 de maio de 2025

 Narrativas,sofismas, falácias 

Padre João Medeiros Filho 

Atualmente, grassam as narrativas, uma espécie de sofisma, temperado com falácias e mentiras. Na Grécia Antiga, os sofistas ensinavam retórica. Com a técnica do discurso tentavam demonstrar como o interlocutor deveria ser seduzido, independente da veracidade das mensagens. Sócrates, Platão e Aristóteles condenaram seus métodos, considerando-os desonestos e farsantes. Para Aristóteles eles enganavam o público, recorrendo ao erro travestido de aparente argumentação. No sofisma, interessa fundamentalmente seduzir o ouvinte ou leitor, conduzindo-o ao ilusório com promessas de possíveis vantagens econômicas, políticas, científicas ou religiosas. As escolas sofistas não ficaram apenas na antiguidade clássica. Atravessaram séculos, influenciando o pensamento humano. Hoje, é possível dizer que há um novo tipo de sofisma, veiculado pelas recentes tecnologias de comunicação, cada vez mais velozes. Há uma proliferação de boatos, engodos e inverdades, uma contínua guerra de informações em busca de seguidores. O apelo proposital ao espetacular e emocional constitui a expressão dessa luta para tentar a validade das palavras e tornar reais as patranhas. Muitas vezes, a objetividade já não tem tanta relevância para formar a opinião pública. Em seu lugar, impõe-se a despudorada e antiética arquitetura das versões de uso rotineiro de muitos ideólogos, políticos e governantes. Abre-se o caminho para o embuste, a desconfiança e as aleivosias repetidas incansavelmente. O apóstolo Paulo ensinava: “Deixando a mentira, cada um diga a verdade” (Ef 4, 25). Hoje, a forma importa mais que o conteúdo. É o que se verifica neste mundo das famosas redes sociais. Sobre isso chamava a atenção o Papa Francisco, destacando a necessidade de cultivar uma comunicação verdadeira, à luz da afirmação de Jesus Cristo: “A verdade tornar-vos-á livres” (Jo 8, 31). É próprio do ser humano comunicar-se e interagir. A linguagem gera participação e amor. O homem é a única criatura que tem a capacidade de expressar e dizer algo sobre o verdadeiro, o bom e o belo. Entretanto, é também capaz de ludibriar e mentir com uma aparência de verdade. Saint Exupéry, em O Pequeno Príncipe, já dizia que “a linguagem é uma fonte de mal-entendidos.” Em tempos de redes sociais, conflitos partidários e sociais, presencia-se algo surpreendente: informações infundadas, fraudes, maledicências, desconstruções e calúnias transmitidas em tempo real. Deste modo, dados inexistentes, distorcidos ou tendenciosos são divulgados com objetivos predeterminados. Geralmente ocorre para influenciar opções políticas, ideológicas, auferir lucros ou dividendos eleitoreiros. E o pior, tais notícias falaciosas são, não raro, fruto de inveja, intolerância, radicalismo e ódio. Com elas, reputações são destruídas celeremente sem que os atingidos tenham condições de se defender. As narrativas, novos nomes dos sofismas, estão contaminando a sociedade e fazendo vítimas. Nem sempre é fácil desvendá-las ou erradicá-las. Isso exige atenção, serenidade, sabedoria para confrontar fontes e fatos. Muitas dessas notícias parecem verdadeiras e atraentes, indo de encontro aos interesses de vários. Por isso, são imediata e automaticamente encaminhadas a amigos ou conhecidos. Os cristãos devem focar a capacidade de discernimento, visando à verdade. Isto significa formar para avaliar e pesar os desejos e inclinações que surgem para não ser disseminadores da mentira. Em Os Irmãos Karamazov, Dostoievski aborda esse tema: “Quem mente a si mesmo e repete sistematicamente as próprias mentiras, chega ao ponto de já não poder distinguir a verdade dentro de si, nem a seu redor. Assim começa a perder a credibilidade por parte de outros.” Há necessidade e urgência de discutir como conciliar razão e emoção, discurso e prática. Como filtrar incontáveis informações, invadindo os espaços virtuais e hospedando dados sem cair nas malhas da desonestidade, da farsa e do logro? De que modo ajudar os outros a pensar e discernir sobre seus questionamentos e problemas, sem a influência invasora e interesseira de gurus de plantão? É tarefa dos cristãos contribuir para preencher o vazio existencial de muitos, mantendo neles a capacidade de refletir para fazer suas escolhas e assumir as consequências. No Brasil hodierno, muitos estão grávidos de malícia, por isso darão à luz inverdades. O apóstolo Paulo já advertia: “Há os que trocam a verdade pela mentira” (Rm 1, 25).

 O CALVÁRIO DAS LETRAS

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

“Help! De tanto esperar já nem sei mais pedir socorro em português”. Assim falou um conhecido intelectual da paróquia que habitamos. Viu ao derredor, tudo abandonado, sucateado. Disse um amigo que pedira um catálogo do patrimônio cultural da cidade para um grupo catarinense que visitava Natal. Em João Pessoa, Recife e Fortaleza, a agenda dos turistas fora inteiramente cumprida. A expectativa era de que na cidade dos Reis Magos não seria diferente. Alguém do Rio Grande do Norte, numa das capitais antes visitadas, forneceu informações sobre alguns pontos culturais a serem visitados. Deve ter sido um guia turístico desinformado da realidade em que se encontram os bens culturais móveis e imóveis do Estado.

Apesar dos esforços dos órgãos de promoção cultural no enfrentamento dos problemas, tudo esbarra na falta de classe e de vontade política. Como explicar à sociedade e aos turistas por que o Memorial Câmara Cascudo ainda está interditado? O museu do Guaporé em Ceará-Mirim está semidestruído. O cadáver do escritor Nilo Pereira está se contorcendo no túmulo. O prédio centenário do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte urge por uma restauração, pois lá está guardada toda a história do Estado desde o período colonial. O Empório dos Guarapes, em Macaíba, patrimônio imóvel do Estado, continua desprezado e invadido. A praça Augusto Severo na Ribeira é outro exemplo de isolamento que chega a atingir o teatro Alberto Maranhão, por osmose.

A cultura potiguar está a merecer o surgimento de vozes que despertem e unifiquem o pensamento e a ação, das entidades públicas e privadas, em defesa do patrimônio histórico, artístico, bibliográfico. Aliás, tudo isso pertence com mais legitimidade ao povo do que às próprias instituições.

Lembrei-me de Guimarães Rosa quando disse que “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. No passo rápido e mágico das emendas parlamentares as restaurações poderão surgir. No debate legislativo, a Casa de José Augusto Bezerra de Medeiros, justamente com o Palácio Felipe Camarão, alí, pertinho, poderão ser a maternidade dos projetos, lua nova de ações e discussões, ouvidas, igualmente, as instituições da cultura, do comércio, da indústria e dos serviços. Não construo alegorias. Busco claridades. Visibilidades.

A decadência do bairro da Ribeira é uma fratura exposta do empobrecimento de Natal. Certa noite, vindo da Rampa, cruzei as ruas Frei Miguelinho, Tavares de Lyra e Doutor Barata. Um calafrio se apossou do corpo. Me assustei, e confesso: tive medo. Veio-me à mente uma ressurreição de imagens dos anos cinquenta, com vultos de almas taladas a ferro e a fogo. Nostalgia, silêncio, tudo deserto. A Ribeira, à noite, é um cemitério de poucos vivos e muitos mortos.

É a assombração que já está subindo a ladeira da Junqueira Ayres (Câmara Cascudo) para chegar a Cidade Alta. Se a Assembleia Legislativa e a Prefeitura saírem dali, o bairro fecha pra balanço. Não existe projeto, à olho nú, de revitalização económica, social, cultural para nenhum desses logradouros. Ninguém constrói nada!

No Nordeste, Natal ocupa a lanterna, atrás de Fortaleza, Recife, João Pessoa e Maceió. E o Rio Grande do Norte também. O mal é que as emendas parlamentares continuarão sendo fatores de erro de cálculo no serviço público brasileiro. A Ribeira e a Cidade Alta permanecem dignas de compadecimento pelos seus mistérios circundantes. Precisam ser revisitadas, restituídas e que as transformações do tempo não sejam pelo silêncio nem pelo abandono.

 

(*) Escritor.