sábado, 25 de fevereiro de 2023

 ENQUANTO O POVO DORME


enquanto o povo dorme
dizem eles
tudo é permitido
e não há censura

enquanto o povo dorme
não há problema algum
para os sombrios planos
tratativas e negócios

por que então desesperar
se ainda há tempo
e o povo está dormindo?

por que então se  preocupar
enquanto o povo dorme
e não há qualquer perigo?

ele não pode ouvir
ver ou entender
pois está dormindo

e nem acreditar
pois ainda não sabe
que a simulação é a chave

não há que perder a calma
quando ainda há tempo

não há risco
enquanto o povo dorme

o risco é o povo acordar

mas nunca é tarde
e ainda poderemos fingir
que sempre estivemos com ele
e que até o ajudamos
a despertar


-  Horácio Paiva

 A 5ª DIMENSÃO DO ESTRESSE

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Tudo incomoda o vivente. O sobrevivente. Provar a sensação amarga da guerra perdida. Contemplar do alto do edifício urbano as maiorias fúteis impondo iniquidades sobre Natal. O ter que se habituar com a visão torta e vesga dos poderosos de plantão que impõem suas regras pela mídia. Natal sem becos, sem esquinas boêmias, sem praças, sem preces, povoadas de vultos inexpressivos que não serão falados amanhã. Extraviaram a noção de história. Os anos inaugurais do século XXI, não têm o glamour dos fatos e das figuras do século passado. O homem coisificou-se. Perdeu a densidade, a identidade, a musculatura dos gestos e dos passos que fazem história.

Na política, não temos mais líderes como antigamente: os neófitos já saúdam os poucos náufragos que irão morrer amanhã. A paisagem é deserta. As instituições se burocratizaram em blocos de ferro e cimento armado. Não têm mais lume nem leme. “Igrejinhas” tão somente. Não sei se há esperança. Não sei se há salvação. As únicas ameaças à ordem constituída continua a ser o Covid, a droga, a dengue, a chikungunya e a zica. Muitos acreditam que é o maior desafio ainda não enfrentado pelo Ministério Público. Por outro lado, Natal a cada dia, fica mais insuportável com a quantidade de veículos. De motos. Principalmente aquelas que cortam o seu carro pela direita. Mas, assim caminham as capitais, as metrópoles para o futuro enganoso oferecido pelas imobiliárias. O ensino público e privado mercadejou-se tanto quanto o turismo sexual. Perdeu a qualidade. E viva a quantidade.

Fortunas repentinas arremetem-se para o alto iguais ao crescimento vertical da cidade. Não há explicação. Não há investigação. Tudo é volátil e volante. Expresso em arcos voltaicos celebrados na crônica social. É aí que se deduz que toda celebridade quando não é célere, é celerada. Ou fazem de cômicas todas as autoridades.

Saio de mim para penetrar na imponderabilidade do oceano que assiste, lá fora, a decomposição humana. A visão misteriosa do oceano pacífica e beatifica o pecador solerte, já dizia o décimo terceiro apóstolo de Cristo, perdido no tempo e no espaço, ainda acreditando na grandeza do último milagre.

Mas, estresse é coisa séria. Pode ser trágico, para não dizer cômico. Não há como escapar de suas ilações, reações adversas e efeitos colaterais. Mas, que Natal está chata e irreconhecível infelizmente é verdade. Tenho ultimamente pensado muito em Lucrécia. As duas. A Bórgia e a do Oeste. São pontos de fuga. Estações de tratamento para os dias. Os mesmos dias.

Hoje em dia, é raríssima a autoridade pública ou privada que dá retorno de telefonemas. Deixar recado é esforço pífio e inútil. Não existe mais apreço, atenção, respeito, civilidade, sociabilidade, humanidade. O político, via de regra, só retorna ligação se houver vantagem de voto gratuito ou financiamento de campanha. O empresário pergunta logo quem está na ponta da linha e quanto vai lucrar. Já alguns secretários de governo, nomeados para atender a sociedade, sempre estão em reunião com “aspones” para evitar interrupções que não atendam seus interesses imediatos. Devolver um telefonema que não foi atendido de imediato por ocupação instantânea ou outro motivo relevante, ou não receber um cidadão que pediu audiência, é ato de cavalheirismo, de educação, de nobreza que pouca gente cultiva.

Sei que muitos leitores estão incluídos na estatística dos sofredores. E gostariam de dizer o que afirmo agora. Os cultores da prática mafiosa alegam que é preciso racionalizar o tempo, eleger prioridades, formatizar custos e ganhos de produtividade, e, o lado humano/cidadão vai para o beleléu, descartado por não representar modernidade, segundo os fariseus dos templos públicos. Cheguei a imaginar, de início, que a minha tese é inconsistente. Seria antiquado portar-me assim, mandando a secretária anotar quem telefonou para retornar, em seguida, uma a uma, as ligações recebidas? Acho que não. Tudo é uma questão de estilo, de ética, de personalidade e de berço.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

 

O sentido do tempo quaresmal

Padre João Medeiros Filho

A palavra marcante com que se abre a celebração quaresmal é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança, interior, dir-se-ia, transformação na mente e no espírito. Foi exatamente isto o que Cristo veio trazer com sua doutrina. Indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver, a tal ponto do apóstolo Paulo chamá-lo de: Novo Adão – nova humanidade (Rm 5, 12-21).

Durante quarenta dias, somos convidados a meditar sobre nosso destino e nossa condição de filhos de Deus. Sabemos que a Igreja muitas vezes se alimenta liturgicamente de simbolismos. O símbolo é aberto, enquanto a palavra linear é fechada e, não raro, limitada e pobre. Recorrendo amiúde à numerologia, a liturgia recorda-nos os quarenta anos de marcha do Povo de Deus, em direção a Canaã, os quarenta dias e quarenta noites que o Senhor passou no deserto, antes de ser tentado por Satanás. Portanto, a palavra quaresma está sempre ligada à reflexão e caminhada.

Como nos rituais do Antigo Testamento, a quaresma cristã exorta-nos ao jejum e à conversão (em grego: metanóia). Na sociedade hodierna, fala-se muito na linguagem administrativa e biomédica em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que possamos ser capazes de cortar as gorduras do egoísmo, da vaidade, da violência, da injustiça e do desamor. Na sociedade hodierna de culto ao corpo, malha-se muito e inúmeras modalidades de exercícios são praticadas e ensinadas. Jejuar é malhar interiormente, eliminar os excessos nocivos ao ser humano para dar lugar à fome do Deus Vivo.

A quaresma lembra também o êxodo do Povo de Deus em busca da Terra Prometida. A partir daí, a Igreja chama a atenção sobre a nossa trajetória diária. A liturgia proporciona-nos um espaço interno e temporal, durante o ano, a fim de realizarmos uma viagem ao interior de nós mesmos. E assim, voltando ao que é verdadeiramente nosso, possamos nos deparar com o que ali deixamos, encontrando-o renovado. Às vezes, de volta à casa, depois de meses ou anos, muita coisa não existe mais. Da mesma maneira, o “que é velho”, no dizer do apóstolo Paulo, deverá desaparecer para dar lugar à novidade de Deus. Esse tempo privilegiado na vida cristã é a quaresma. Mas, esta não é apenas um período litúrgico. É também um momento ao longo de nossas vidas, em que devemos retornar, com a ajuda da graça divina, ao nosso interior. E ali, é indispensável realizar o encontro com nossos erros e virtudes.

A celebração quaresmal convida-nos ao despojamento para um renascer. A cerimônia de cinzas significa o fim de tudo o que nos afasta do Pai e de nós mesmos. É preciso reduzir a pó nossa mentira, nosso egoísmo, nossa insensibilidade, numa palavra, nossos erros, limitações e pecados, para que possa nascer em nós o “homem novo”, que Cristo Jesus veio trazer ao mundo. As cinzas traduzem simbolicamente nossa conversão, o queimar de nossos erros e o brotar de novos planos. Por isso deve surgir em cada um de nós um desejo autêntico de escuta da palavra de Deus. Caminhar ou viajar pode nos ensejar uma oportunidade de dialogar e ouvir outras pessoas. A quaresma é esse convite a uma escuta atenta e profunda de Deus Pai. É sua Palavra que ilumina nossa vida, nos convida à transformação interior e nos dá a verdadeira dimensão da misericórdia divina, do perdão e da graça do Senhor Jesus. “Somos pó e a ele voltaremos” (Gn 3, 19). Esta é mais uma das verdades sobre a qual a Igreja pretende nos conscientizar. Assim compreenderemos o significado da Quarta-feira de Cinzas. Há um apelo para destruir o velho homem dentro de nós a fim de ressurgir uma criatura totalmente renovada, segundo a expressão de Paulo (Ef. 4, 22-24). “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3), falou Cristo a Nicodemos. Precisamos dar lugar à outra criatura dentro de nós. Eis o sentido das Cinzas que nos foram impostas, na cerimônia litúrgica, acontecida em nossas paróquias e comunidades, ao adentrarmos no tempo quaresmal, que nos levará à alegria da Páscoa do Senhor.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

 Simbolismo e significado bíblico das cinzas 

Padre João Medeiros Filho 

O ato da imposição de cinzas remonta ao Antigo Testamento. O livro de Ester narra que Mardoqueu se vestiu com pano de saco (estopa) e cobriu-se de cinzas ao saber do decreto de Assuero (Xerxes I, da Pérsia), condenando à morte os judeus ali residentes (cf. Est 4,1). Atitude semelhante teve Jó, demonstrando o seu arrependimento (Jó 42, 6). Daniel, ao profetizar a tomada de Jerusalém pela Babilônia, escreveu: “Voltei o olhar para o Senhor Deus, procurando fazer preces e súplicas com jejuns, vestido de tecido rústico e coberto de cinzas.” (Dn 9, 3). Após a pregação de Jonas, o povo de Nínive se vestiu de roupas grosseiras, impondo-se cinzas. O rei levantou-se do trono e sentou-se sobre elas (Jn 3, 5-6). Tais exemplos demonstram a prática religiosa do uso das cinzas como símbolo de arrependimento, tristeza, penitência, conversão e dor. Cristo aludiu igualmente a esse costume, quando se dirigiu aos habitantes das cidades de Corazim e Betsaida que não se arrependiam de seus pecados, apesar de terem presenciado milagres e ouvido a Boa Nova. “Se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demonstrado arrependimento, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas”, advertiu o Mestre. (Mt 11, 21). A Igreja, desde os primórdios, continuou este ritual com um simbolismo análogo. Tertuliano aconselhava o pecador a “vestir-se com um tecido de cânhamo e cobrir-se de borralho.” Eusébio, primeiro historiador da Igreja, relata que Natálio se apresentou com esses trajes diante do Papa Zeferino para suplicar-lhe o perdão. No cristianismo medieval, quando o penitente saía do confessionário, o sacerdote impunha-lhe cinzas para significar que o “velho homem” tinha sido destruído, dando lugar ao “novo homem” (Ef 4, 24), do qual fala o apóstolo Paulo. Por volta do século VIII, as pessoas que estavam prestes a morrer, eram deitadas no chão sobre um tecido rude e nelas se jogava pó. O sacerdote, aspergindo-as com água benta, dizia: “Lembra-te, ó criatura, que és pó e nele te hás de tornar.” (Gn 3, 19). Este rito foi tomando uma nova dimensão espiritual e passou a significar morte ao pecado, em seus diversos aspectos: mentira, orgulho, injustiça, inveja, ódio, violência etc. Assim, com o passar dos anos, tal costume foi associado ao tempo quaresmal. Neste, somos convidados a sepultar o velho homem existente em nós para ressurgir com Cristo, na Páscoa. Na liturgia atual, as cinzas utilizadas na quarta-feira são obtidas com a queima da sobra das palmas bentas no Domingo de Ramos do ano anterior. O sacerdote as abençoa e impõe sobre os fiéis, dizendo: “Lembra-te que és pó e nele te hás de tornar”, ou então: “Converte-te e crê no Evangelho.” (Mc 1, 15). Essa cerimônia é um convite à preparação para a Páscoa pela vivência da quaresma, tempo privilegiado para uma revisão de tudo o que nos aniquila em nossa caminhada de fé e amor. Aceitando tal ritual, expressamos duas realidades fundamentais: a consciência de que somos criaturas efêmeras e nossa fé na ressurreição. Cristo ressuscitou dos mortos, prometendo-nos que também ressuscitaremos. É conhecida na mitologia grega a força de Fênix, que renasce das cinzas. Isto lembra-nos que delas também nós podemos surgir, como criaturas novas, pela graça inefável de Deus. Elas simbolizam mudança radical, na medida em que representam aniquilamento ou destruição. Por essa razão, somos chamados a nos converter ao Evangelho de Jesus Cristo, mudando nossa maneira de pensar, julgar e agir, libertando-nos da arrogância, do egoísmo e de tudo aquilo que nos afasta de Deus. A palavra marcante com que se abre a celebração da quaresma – a qual se inicia na quarta-feira, após o carnaval – é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança interior, dir-se-ia, transformação da mente e do espírito. Foi isto o que Cristo veio trazer com sua mensagem. Ele indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver. O apóstolo Paulo, de forma inspirada, o chama de “novo Adão”, qual seja, uma nova humanidade (Rm 5, 12-21).

 


Cartas de Cotovelo – Verão de 2023 – 8

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

AGORA VOLTAMOS À REALIDADE - CINZAS

Retornei da Comunidade de Cotovelo para recomeçar a realidade da vida normal, sem confetes nem serpentinas, mas com a assunção das responsabilidades do cotidiano.

Nada de arrependimento para os que souberam brincar, justificada toda a alegria pelo retorno dos velhos costumes após dois anos de pandemia, represando a festa de Momo, oportunidade da confraternização entre familiares e amigos neste verão, não tanto de sol, mas que foi suficiente para revigoramento espiritual.

Continuo com a mesma opinião – o Carnaval não é coisa satânica, malévola, mas um relaxamento das atividades repetitivas do dia a dia, renovando esperanças, que renascem na quarta-feira de cinzas, com a presença da religiosidade do brasileiro.

É da nossa tradição a aposição das cinzas, com o seu especial significado, como bem o esclarece o nosso querido amigo Padre João Medeiros Filho, em artigo que divulgo em seguida.

Também não poderia esquecer o passado, onde despertava cantarolando uma música (apenas dois versos dela), que se tornou icônica, para retratar a quebra dos dias de folia, composta num passado remoto por Aldo Cabral e Benedito Lacerda, com o título dramático de Carnaval da Minha Vida:

Quarta-feira de cinzas amanhece
Na cidade há um silêncio que parece
Que o próprio mundo se despovoou
Um toque de clarins além, distante
Vai levando consigo agonizante
O som do carnaval que já passou

E repete-se a cena de costume
Cacos dispersos de lança-perfume
Serpentina e confete pelo chão
É a máscara que a vida jogou fora
Mostrando que a alegria foi-se embora
Nos rastros da passagem da ilusão

...............................

Infelizmente não conto mais com a participação da minha parceira THEREZINHA cantarolando comigo pois, coincidentemente, partiu num período de Carnaval de 2019.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 “A alegria, filha de Deus” 

Padre João Medeiros Filho 

A alegria desperta em nós um sabor divino e, mesmo efêmera, deixa marcas e oferece novas possibilidades ao cotidiano. Atualmente, vivem-se dias difíceis, tristes e vexatórios. Hoje, é comum encontrar gente com o rosto acabrunhado em shoppings, escritórios, consultórios e mesmo dentro de casa. No convívio social, enfrentam-se problemas, que desafiam e exigem maior agilidade, perspicácia e sabedoria para solucionálos. Cresce o número daqueles que são abandonados e desprotegidos, perambulando pelas ruas das cidades. Também aumenta a estatística das vítimas de malversadoras políticas de governos, que enfrentam provavelmente o terrível drama da fome ou desemprego. Muitos são os discriminados e violentados por causa de sua raça, origem e condição social. E como se não bastasse, certas pessoas são alijadas, em razão de sua opção religiosa, ideológica ou familiar. O radicalismo, a intransigência e o sectarismo estão se tornando regras gerais na sociedade brasileira. Seres humanos tombam frequentemente mortos, até diante de sua família, vítimas de uma guerra que não poupa inocentes e indefesos. Um olhar mais atento para a realidade atual tende a mostrar quão corrompidos se tornaram tantos e imersos estão num processo deletério de desumanização. Infelizmente, são cada vez mais raros os gestos concretos de bondade, acolhimento, humanismo e fraternidade. Não repercutem no mesmo ritmo como os de violência, que rondam e ameaçam os cidadãos. Diante da realidade atual cabe perguntar: há lugar ainda para os alegres e os de mente sã? Vinícius de Moraes cantou em “Samba da Bênção” a primazia do júbilo sobre a tristeza: “É melhor ser alegre que ser triste. A alegria é a melhor coisa que existe. É assim como a luz no coração...” E um coração entristecido, entregue à dor e às forças do mal, não pulsa com tanto vigor. Por isso, vale a pena cultivar a alegria. Esta não representa necessariamente ausência de sofrimentos. Entretanto, revigora e acalenta a alma, tem a capacidade de neutralizar o negativismo e colocar o espírito em contato com o que há além dos acontecimentos. Lembremo-nos das palavras de Santo Agostinho, quando se dirigia aos fiéis de Hipona: “A alegria é filha predileta de Deus e pode salvar da morte.” Para a teologia cristã, é dom do Pai ao mundo, prognóstico da salvação que Ele sempre oferece à humanidade. E a salvação se dá num movimento pascal, na passagem da morte para a vida que o Senhor oferece. Compreende-se, assim, porque o Papa Francisco insiste em sua encíclica na “Alegria do Evangelho” (“Evangelii Guadium”). Os cristãos sabem que o contentamento, experimentado nos pequenos acontecimentos do dia a dia, antecipa aquilo que Deus oferece: um Reino no qual “ninguém mais vai sofrer, ninguém mais vai chorar, ninguém mais vai ficar triste”, como se reza na Prece Eucarística XI, inspirada no Apocalipse: “E Deus enxugará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais pranto, nem clamor, nem dor” (Ap 21, 4). A promessa é a de que o sofrimento e a tristeza terão seu fim, quanto mais cedo se consolide o Reino de Deus, que Cristo pregou. É precisamente isso que deve motivar os momentos alegres, ao longo da existência terrena. E como o júbilo dá brilho à vida, torna-se possível distingui-la da exaltação eufórica, na qual muita gente manifesta uma falsa felicidade e uma ilusória sensação de bem-estar. Nos dias de carnaval, muitos põem o bloco na rua com o coração contristado, aguardando a quarta-feira para retornar a uma vida acinzentada. Deste modo, torna-se difícil ser verdadeiramente feliz. Por isso, é preciso fazer brotar no fundo de nosso ser o ânimo e a coragem, mesmo no agora sofrido viver diário. Nas pessoas risonhas Deus também se revela. Quando os dias duros sobrevierem com suas tiranias lembrem-se de sorrir. “Sorria, embora o seu coração esteja doendo... Ilumine seu rosto com a alegria...”, evoca Charles Chaplin na magistral canção “Smile”. Que as fantasias e os sonhos de agora não sejam sepultados. É importante buscar a alegria, réstia do Eterno e aceno do Infinito! “Exultem e alegrem-se, pois Deus é grande e está em seu meio” (Is 12, 6).

 O sentido do tempo quaresmal 

Padre João Medeiros Filho 

A palavra marcante com que se abre a celebração quaresmal é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança, interior, dir-se-ia, transformação na mente e no espírito. Foi exatamente isto o que Cristo veio trazer com sua doutrina. Indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver, a tal ponto do apóstolo Paulo chamá-lo de: Novo Adão – nova humanidade (Rm 5, 12-21). Durante quarenta dias, somos convidados a meditar sobre nosso destino e nossa condição de filhos de Deus. Sabemos que a Igreja muitas vezes se alimenta liturgicamente de simbolismos. O símbolo é aberto, enquanto a palavra linear é fechada e, não raro, limitada e pobre. Recorrendo amiúde à numerologia, a liturgia recorda-nos os quarenta anos de marcha do Povo de Deus, em direção a Canaã, os quarenta dias e quarenta noites que o Senhor passou no deserto, antes de ser tentado por Satanás. Portanto, a palavra quaresma está sempre ligada à reflexão e caminhada. Como nos rituais do Antigo Testamento, a quaresma cristã exorta-nos ao jejum e à conversão (em grego: metanóia). Na sociedade hodierna, fala-se muito na linguagem administrativa e biomédica em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que possamos ser capazes de cortar as gorduras do egoísmo, da vaidade, da violência, da injustiça e do desamor. Na sociedade hodierna de culto ao corpo, malha-se muito e inúmeras modalidades de exercícios são praticadas e ensinadas. Jejuar é malhar interiormente, eliminar os excessos nocivos ao ser humano para dar lugar à fome do Deus Vivo. A quaresma lembra também o êxodo do Povo de Deus em busca da Terra Prometida. A partir daí, a Igreja chama a atenção sobre a nossa trajetória diária. A liturgia proporciona-nos um espaço interno e temporal, durante o ano, a fim de realizarmos uma viagem ao interior de nós mesmos. E assim, voltando ao que é verdadeiramente nosso, possamos nos deparar com o que ali deixamos, encontrando-o renovado. Às vezes, de volta à casa, depois de meses ou anos, muita coisa não existe mais. Da mesma maneira, o “que é velho”, no dizer do apóstolo Paulo, deverá desaparecer para dar lugar à novidade de Deus. Esse tempo privilegiado na vida cristã é a quaresma. Mas, esta não é apenas um período litúrgico. É também um momento ao longo de nossas vidas, em que devemos retornar, com a ajuda da graça divina, ao nosso interior. E ali, é indispensável realizar o encontro com nossos erros e virtudes. A celebração quaresmal convida-nos ao despojamento para um renascer. A cerimônia de cinzas significa o fim de tudo o que nos afasta do Pai e de nós mesmos. É preciso reduzir a pó nossa mentira, nosso egoísmo, nossa insensibilidade, numa palavra, nossos erros, limitações e pecados, para que possa nascer em nós o “homem novo”, que Cristo Jesus veio trazer ao mundo. As cinzas traduzem simbolicamente nossa conversão, o queimar de nossos erros e o brotar de novos planos. Por isso deve surgir em cada um de nós um desejo autêntico de escuta da palavra de Deus. Caminhar ou viajar pode nos ensejar uma oportunidade de dialogar e ouvir outras pessoas. A quaresma é esse convite a uma escuta atenta e profunda de Deus Pai. É sua Palavra que ilumina nossa vida, nos convida à transformação interior e nos dá a verdadeira dimensão da misericórdia divina, do perdão e da graça do Senhor Jesus. “Somos pó e a ele voltaremos” (Gn 3, 19). Esta é mais uma das verdades sobre a qual a Igreja pretende nos conscientizar. Assim compreenderemos o significado da Quarta-feira de Cinzas. Há um apelo para destruir o velho homem dentro de nós a fim de ressurgir uma criatura totalmente renovada, segundo a expressão de Paulo (Ef. 4, 22-24). “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3), falou Cristo a Nicodemos. Precisamos dar lugar à outra criatura dentro de nós. Eis o sentido das Cinzas que nos foram impostas, na cerimônia litúrgica, acontecida em nossas paróquias e comunidades, ao adentrarmos no tempo quaresmal, que nos levará à alegria da Páscoa do Senhor

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

 

Justiça nas estrelas
​Como prometido, misturando Shakespeare com ficção científica, tratarei hoje da filosofia do direito presente nas aventuras de “Jornada nas Estrelas” (“Star Trek”, no original). E se assim o faço é porque acredito no que é defendido pelos autores de “Star Trek Visions of Law & Justice” (editado por Robert Chairs e Bradley Chilton e publicado pela Adios Press, 2003): se na obra de Shakespeare encontramos todos os tipos de seres humanos, em “Star Trek” podemos achar todos os questionamentos conhecidos da condição humana – e alguns desconhecidos até que vislumbrados em um dos muitíssimos episódios da franquia.
​Peguemos a questão do modelo – ou da medida, usando de uma licença poética – de Justiça que queremos para uma sociedade. Esse dilema nos é apresentado na comédia shakespeariana “Medida por Medida” (de 1604), que é considerada, de par com “O Mercador de Veneza” (1597), como registra Daniel J. Kornstein em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005), uma das duas peças marcadamente “jurídicas” do bardo.
​Até para não fazer spoiler, deixo a trama de “Medida por Medida”, em que nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, para uma futura pesquisa/leitura de vocês. Mas colho algumas sentenças do seu texto: “Que lhe perdoe o céu, como a nós todos! Uns sobem pelos crimes; outros caem pela virtude. Alguns vivem impunemente, nos vícios atolados, outros por uma falta são julgados”; “Não podemos medir nossos vizinhos pela nossa bitola; os poderosos riem das coisas santas; o que neles é espírito, não passa de disforme profanação nos outros”; “antes de a alguém castigar, deve seus erros pesar. Vergonha para quem pune pecados sem ser imune”; “Leis para todas as faltas (...): são motivo de zombaria mais que de advertência”; “Dizem que os melhores homens hão de conter sempre defeitos e que chegam a ser melhores quando alguma coisa de ruim contêm”. Em “Medida por Medida”, numa terra onde o vício floresce, a justiça implacável parece ser a solução para todos os problemas. E a “justificada” tirania de um só “incorruptível” há de reparar o dano que a frouxidão tem causado. Mas aí é que surge a hipocrisia da justiça absoluta aplicada pelos homens. A justiça pura e absoluta, no mundo real, de paixões e fraquezas, porque simplesmente não funciona, não é a medida certa. Pelo menos não na visão do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou – que foi Shakespeare.
​Considerando os modelos/paradigmas da “justiça absoluta”, da “justiça equitativa” (com base nas particularidades do caso) e do “devido processo legal”, à moda de Shakespeare, o direito da Federação em “Star Trek” opta claramente por rejeitar a ideia de justiça absoluta. Como se lê em “Star Trek Visions of Law & Justice”: “Dentro das várias reencarnações de Star Trek, esses modelos, paradigmas se vocês assim desejarem, de direito e justiça são vistos em constante conflito. Este conflito se dá em nível macro na oposição entre o equitativo/processualmente justo modelo da Federação v. os modelos absolutos dos ditos primitivos Klingons, Romulanos e Ferengis, dentro da Federação entre os seus mundos, e especificamente como um tema de constante conflito dentro da Frota Estelar, quando a absoluta Primeira Diretriz [de não intervenção em outras civilizações] se choca com equitativas considerações de justiça em situações concretas”.
​No mais, é fundamental não confundir a ideia de justiça absoluta com sistemas políticos autoritários ou totalitários. Aquela pode ser uma característica comum a esses. Mas essa perigosa justiça absoluta pode também andar disfarçada no mais edílico dos sistemas políticos. Aliás, foi ao fim de um episódio de “Star Trek: the Next Generation”, em que uma punição é buscada a qualquer preço, que o capitão da Enterprise, Jean-Luc Picard, alertou aos seus companheiros de jornada: é fácil identificar o bandido que enrola o bigode; difícil é identificar aquele que, sob uma falsa aparência de justiça, em verdade faz terror.
Bom, os autores de “Star Trek Visions of Law & Justice” indagam: deve ser “Star Trek” objeto de estudo da ciência política, da sociologia, da filosofia ou mesmo virar um novo campo para os estudos jurídicos [à semelhança de como se dá com a obra de Shakespeare, acrescento eu]? Advogo que sim; e para toda boa ficção científica. Anteciparemos muitos dos nossos problemas – jurídicos – do futuro. Aqui não posso pedir para que se escreva um livro “Jornada nas Estrelas e a filosofia do direito” como obra seminal. Essa obra já existe em “Star Trek Visions of Law & Justice” (ou em outros estudos que eu desconheço). Mas que tal subirmos nesses “ombros de gigantes” para enxergarmos mais longe? Explorando novos mundos, novas vidas, novas civilizações, juridicamente “indo onde nenhum homem jamais esteve!”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

 

Cartas de Cotovelo – Verão de 2023 – 7

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

CARNAVAL DE COTOVELO 2023

Vim para a Comunidade de Cotovelo com a intenção de apreciar os dias de Momo, mas fui raptado por Morfeu, e aproveitei muito, por sinal.

Televisão (filmes), quem diria que chegássemos nesta praia paradisíaca a tanta modernidade, pois o noticiário só trouxe tragédias. Nem os desfiles tive coragem de assistir, senão as primeiras Escolas de Samba desde sexta-feira até o sábado (São Paulo) e Domingo no Rio de Janeiro. Hoje não sei suportarei a passarela, pois deixaram de apresentar a espontaneidade de outrora, para oferecer um mega espetáculo para turistas.

Abracei-me com orações, mas igualmente fiz boas leituras – uma delas surpreendente: “Diamantes Invisíveis”, de Paulo de Paula, organizado por Iveraldo Guimarães.  Não porque Paulo não fosse uma pessoa importante, empresário bem sucedido, mas pela visão filosófica que me proporcionou em sua obra, muito bem organizada por Iveraldo, que já conhecia como do ramo. Paulo trata de sentimentos de conotação negativa – como rejeição, não pertencimento, impotência e egoísmo, que permitem se transformarem em positivos – generosidade e gratidão (ainda não terminei de ler), mas o quanto já o fiz me deu ansiedade para terminar até o final do Carnaval.

Ainda que, de longe, acompanhei o Carnaval da Promovec pelas fotos e vídeos e constatei que foi um sucesso. Parabéns para os novos dirigentes, que reverenciaram, no trajeto, o velho e querido folião Guga.

Preferi aproveitar os meus netos aqui comigo e com alguns colegas deles, para fazermos uma sessão de mela-mela, sob o comando da minha “Genra” Daniela, onde estiveram no cardápio: confete, serpentina, lança espuma, banho de mangueira e piscina, sob os acordes de músicas de velhos carnavais, coerente com a minha saudade de Thereza, que participava desta folia.

O paradoxo da alegria das festas com as tragédias em outros estados brasileiros, deu-me motivo para reflexões dos contrastes e a irreversível constatação de que o Espetáculo da Vida Deve Continuar.

Não vi o mar nesses dias de retiro, pois um pequeno problema de saúde obrigou-me a visitar uma clínica médica que me aplicou o “castigo” de ingredientes incompatíveis com uma cervejinha gelada e outras extravagâncias leniais.

Em nenhuma hipótese faltei com a obrigação diária e rigorosa de assistir missa e orar pelos amigos enfermos e espíritos dos que já foram chamados para a Eternidade.

Amanhã será o último dia de folia e ela não vai contar com a minha participação, por mera opção, pois sou daqueles que não vê nenhum satanismo nos que brincam e sim um tempo de alegria, confraternização com as melhores intenções possíveis, na certeza de que após a folia muitas amizades foram feitas, outras restabelecidas e se fez a PAZ nas terras brasilis.