quinta-feira, 3 de agosto de 2023

 DILACERAÇÃO E ILUSÃO

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

Num momento em que se questiona as coerências e incoerências do posicionamento político dos partidos com vistas ao pleito eleitoral do ano que vem, convém lembrar uma história antológica, clássica, e, por isso mesmo inesquecível, envolvendo o mestre do jornalismo potiguar o quase macaibense, irmão de Auta e Henrique, Eloy Castriciano de Souza. Ressalve-se na conduta do grande escritor, a sua inteligência singular, a sua memória incomum, as quais, mesmo quando postas a serviço da política partidária, elas não se apequenavam nem se contaminavam dos vícios redibitórios da desfaçatez, da indignidade ou do mau caratismo. Os fatos políticos de ontem se repetem hoje, só que, com outra roupagem, porquanto, naquele tempo, havia homens verdadeiros e eleições falsas, e agora, homens falsos mas eleições verdadeiras, muito embora - algumas, nem tanto.

Lá pelas décadas de trinta, quarenta, o jornalista Eloy de Souza pontificava na lide política do Estado. Certa vez, comandou a editoria do jornal da Oposição onde fazia de tudo. A sua marca registrada, ou faceta inimitável, consistia em ditar três artigos ao mesmo tempo, sem perder o raciocínio e a inteireza do tema de cada um. Foi em meio a essa faina redacional que ocorreu um fato inusitado. Quando discorria sobre a personalidade de um adversário político, acoimando-o de todos os diatribes imaginários, revelou-se de repente nele, uma luz, uma escapatória tão fremente que só os gênios são assim dotados. “Escreva”, ordenava: “Fulano de Tal é um político sanguinário, perseguidor que usa a farsa além da infâmia, a estupidez além do crime. Homem superado, liliputiano, de gestos grosseiros e destituído de nobreza de caráter”. Aí, de repente, um auxiliar adentra a redação e interrompe: “Dr. Eloy, Dr. Eloy, chega-nos notícia urgente do partido de que Fulano de Tal aderiu a nossa causa”. De pé, ar circunspecto sem esboçar qualquer reação, Dr. Eloy - após um instante de reflexão – retoma a dissertação: “Todavia, isso tudo é o que afirmam os seus adversários, injuriosos, despeitados e invejosos. Para nós, trata-se de um homem de bem, honesto, cumpridor de suas obrigações, bom pai e esposo exemplar”. Ao recordar esse episódio da Velha República no Rio Grande do Norte concluo que, qualquer semelhança com fato político da atualidade é mera coincidência. A diferença pontual, é a de que hoje a política perdeu a autenticidade e o talento de antigamente, vítima da amnésia eleitoral. O jogo de interesses imediatos assume proporções tão devastadoras no caráter e na conduta das pessoas ao ponto de nos causar asco e dó ao mesmo tempo.

Mas, essa história também é interessante. Aconteceu no primeiro turno de uma eleição municipal, quando o odontólogo Luís Carlos, esposo de Graça, então candidata a prefeito de Monte Alegre, garimpava votos de conterrâneos residentes em Natal. Um desses eleitores foi Paizinho, seu velho conhecido, radicado na Zona Norte. Ao vê-lo, Luís pediu-lhe o apoio e que não faltasse a nova luta. “Seu Luís eu não posso”, respondeu Paizinho, em tom pesaroso. “Por que?”, retrucou o dentista. “Porque eu transferi o domicílio pra cá e vou votar em Miguel Mossoró”. “Em Miguel Mossoró?”. Indaga Luís Carlos, curioso e perplexo. “O seguinte é o seguinte”, (maneiroso jargão popular). “É que seu Miguel me prometeu nessa ponte aí que ele vai fazer para Fernando de Noronha, conseguir só pra mim uma borracharia bem no meio da danada...”.


(*) Escritor

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

 As relíquias de Sant’Ana 

Padre João Medeiros Filho 

Segundo documentos eclesiásticos e uma tradição carolíngia, os restos mortais de Sant’Ana foram trazidos para a Gália por discípulos de Jesus. Nos albores do cristianismo, seguidores do Nazareno foram expulsos da antiga Palestina por causa de sua fé. Levaram o corpo de Ana para Apta Julia (Apt), no sul da França. Urgia igualmente proteger as relíquias dos santos, quando da perseguição aos cristãos, no Ocidente. Por isso, os restos mortais da avó do Salvador foram inumados na cripta de uma igreja. É o que atesta “O Martirológio de Apt”. Trata-se da fonte mais antiga, mencionando o fato. Outra versão narra que os cruzados trasladaram da Terra Santa os restos mortais da genitora de Maria Santíssima, evitando que fossem violados pelos pagãos. Santo Auspicius, bispo de Apta Julia, teve o cuidado de salvaguardar esse tesouro sagrado, colocando-o em segurança no jazigo subterrâneo de uma igreja. Os ataques bélicos e o desgaste dos anos arruinaram as paredes do templo. Com isso, o lugar do túmulo foi ficando esquecido. Após a vitória de Carlos Magno sobre os sarracenos, no final do século VIII, a paz voltou a reinar na Gália. Construiu-se uma nova igreja sobre os escombros da primitiva, em Apt. As escavações depararam-se com estruturas fortalecidas. Conta-se que no domingo de Páscoa de 792, na cerimônia de dedicação do novo templo, as relíquias da Mãe da Virgem de Nazaré foram descobertas, graças a um menino surdo, mudo e cego. Durante a solenidade, a criança apontava insistentemente para o lugar da tumba na cripta, como se estivesse vendo algo. Tal relato consta dos documentos atribuídos ao Papa Leão III, aos quais se anexou um relatório eventualmente escrito pelo próprio Imperador, o qual fora coroado por aquele Pontífice. Conserva-se ainda cópia dessa documentação. Terminada a missa, Carlos Magno ordenou a escavação no local indicado pela criança. Removeram-se as escadarias atrás do altar, aparecendo uma porta lacrada com enormes pedras. Era a entrada da cripta, onde Auspicius costumava celebrar a Eucaristia. “O corpo de Sant’Ana, a mãe de Maria, está descansando ali”, palavras do menino que começou a falar, quando avistaram a sepultura. Diante desse acontecimento considerado miraculoso, a multidão presente na Igreja prostrou-se de joelhos. No ataúde havia uma inscrição: “Aqui jaz o corpo de Ana, a mãe da Virgem Maria.” As autoridades das principais cidades gaulesas e de outras nações apressaram-se em pedir à Igreja partes do corpo santificado. Fragmentos foram destinados a várias localidades (como Düren, na Alemanha), sendo doados por soberanos e prelados. Consoante informações, grande parte do corpo sagrado de Sant’Ana repousa em Apt, numa capelatúmulo construída por Ana da Áustria, Rainha da França. Clemente VII concedia indulgências aos peregrinos que ali acorriam. Os dignitários eclesiásticos atuais têm sido cautelosos em partilhar as relíquias, alegando necessidade de depurar os fatos, separando os verídicos dos lendários, para se comprovar ainda mais a autenticidade histórica. Partículas dos ossos espalhadas por vários países contribuíram para disseminar a devoção à mãe de Nossa Senhora. Hanna é muito estimada pelos judeus. Descendia do sacerdote Aarão, desposada por Joaquim, oriundo da família real de Davi. Dessa nobreza nasceu a Mãe do Salvador. As famílias real portuguesa e imperial brasileira dedicavam devoção especial à genitora de Nossa Senhora, a ponto de ser designada protetora da Casa da Moeda do Brasil. Sant’Ana é co-patrona do Rio de Janeiro e São Paulo, padroeira de Goiás, centenas de paróquias e do Seridó potiguar (onde viveram flamengos judeus e católicos lusitanos), bem como titular da sé episcopal de Caicó. Há tempos, uma fervorosa devota caicoense, tendo visitado algumas vezes Apt, tenta adquirir uma relíquia da “Senhora doce e clemente” para a catedral de sua terra. Diante do túmulo exclamou: “Creio que aqui está parte do corpo da avó de Cristo. Acredito que ela irá partilhar um pouco de si mesma para a veneração dos seridoenses.” Finalmente, rezemos à “Mãe da graça e do perdão” por nosso arcebispo emérito, Dom Heitor de Araújo Sales, no ensejo de seu 97º aniversário, em 29/07 próximo. Que ela o abençoe e proteja sempre. Em mais de setenta anos dedicados à Igreja, durante quinze, Dom Heitor cuidou do Povo de Deus no Seridó. “Salve, Sant’Ana gloriosa!"

 “Aproveita, enquanto Brás é tesoureiro” 

Padre João Medeiros Filho 

Segundo vários pesquisadores, a expressão é antiga e oriunda de Portugal. No Brasil, ganhou ressonância com a música carnavalesca de Efson e Nei Lopes, intitulada “Firme e Forte”, interpretada por Beth Carvalho. Diz a letra: “Aproveita hoje, porque a vida é uma só. Deixa correr frouxo, esquentar não é legal. Se o Brás é tesoureiro, a gente acerta no final. 

Deus é brasileiro e a vida, um grande carnaval.” O ditado denota complacência com o descontrole financeiro, ético e político. Emprega-se em contexto de malversação de dinheiro ou bens, mormente públicos e aplica-se a muitos campos e assuntos da vida nacional. 

 Apregoa estímulo à desobediência de normas vigentes ou sua lassidão. Qual a origem? Destacam-se duas versões. A mais difundida remonta aos tempos de Portugal concordatário, “ex-vi” do padroado. 

Em razão da união entre Estado e Igreja, vigente outrora na Coroa – bem como no Brasil colonial e imperial – o catolicismo gozava do status de religião oficial. Em decorrência desse acordo, os eclesiásticos eram funcionários de Estado, percebendo côngruas e espórtulas. 

O poder público financiava os templos e irmandades. Com o advento da República, o Brasil tornou-se constitucionalmente um ente laico. 

No passado, os párocos e capelães eram concursados e detinham vitaliciedade no cargo. Até alguns anos, usava-se o termo vigário colado, em razão da colação do título de efetividade. No regime concordatário luso-brasileiro, após a aprovação em concurso, além da estabilidade como servidor público, o clérigo adquiria inamovibilidade. Bispos, párocos e capelães eram nomeados pelo rei, imperador ou quem suas vezes fizesse. 

É singular e merece aprofundamento a Questão Religiosa brasileira, em virtude da qual os prelados de Olinda e Belém do Pará foram presos por desobedecerem a ordens do Imperador, seu superior hierárquico, no campo administrativo. 

Durante o padroado, nas paróquias ou capelanias lusitanas e brasileiras, havia a figura do fabriqueiro, termo usado para designar o tesoureiro. Em Póvoa de Varzim, os sobrinhos e afilhados do pároco da freguesia eram inescrupulosos e pródigos. Levavam o tio ou padrinho a aceitar o esbanjamento e despesas desnecessárias. 

O velho cura (ou prior, como se dizia por lá) devia convencer o tesoureiro Antônio Brás a pagar os gastos. Este usava de uma química contábil na prestação de contas aos órgãos estatais. Os parentes do eclesiástico insistiam junto ao tio: “Aproveita, enquanto Brás é tesoureiro.” 

 A semelhança com personagens da atualidade é mera coincidência. Eça de Queiroz, nascido naquele município português, conhecia e usava a expressão aqui analisada, a qual sublinhava o seu anticlericalismo. Assim corrobora o renomado pesquisador alagoano Théo Brandão, situando o ditado na primeira metade do século XVIII. 

Um parlamentar gaúcho, diante de situações análogas, chegou a exclamar: “Ou se aproveita a ocasião e se desvendam os esquemas pelos quais tanto dinheiro desaparece, de forma inaceitável, ou então se fará um pacto com a impunidade, nomeando-se um Brás como tesoureiro oficial.” Muitos esquecem o ensinamento do apóstolo Paulo: “Por se entregarem com volúpia ao dinheiro, alguns se desviaram da fé” (1Tm 6, 10). 

Uma variante do ditado, de menor repercussão, identifica Brás com o fundador do bairro que leva esse nome na capital paulista. Há historiadores que afirmam ser as origens do dito popular ligadas à figura do português José Brás. Este era proprietário de uma chácara na região, tendo construído a Igreja do Bom Jesus de Matosinhos. 

Tal senhor foi designado o responsável pela arrecadação e guarda dos impostos e taxas devidos ao erário. Familiares seus eram perdulários e ambiciosos, repetindo entre eles: “Aproveita, enquanto Brás é tesoureiro.” 

Consoante certas fontes, o bairro se desenvolveu bastante, graças ao desvio dos recursos, tornando-se hoje um dos influentes polos da moda.

Acredita-se que a versão anterior seja digna de mais credibilidade, posto que a fundação do bairro paulistano data da segunda metade do século XIX. Deve-se acrescentar ainda que Brás nada tem a ver com o personagem do romance de Machado de Assis. O profeta Isaías já se insurgia contra o esbanjamento: “Por que gastais o dinheiro naquilo que não traz pão e vida?” (Is 55, 2).