segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

 

Justiça nas estrelas
​Como prometido, misturando Shakespeare com ficção científica, tratarei hoje da filosofia do direito presente nas aventuras de “Jornada nas Estrelas” (“Star Trek”, no original). E se assim o faço é porque acredito no que é defendido pelos autores de “Star Trek Visions of Law & Justice” (editado por Robert Chairs e Bradley Chilton e publicado pela Adios Press, 2003): se na obra de Shakespeare encontramos todos os tipos de seres humanos, em “Star Trek” podemos achar todos os questionamentos conhecidos da condição humana – e alguns desconhecidos até que vislumbrados em um dos muitíssimos episódios da franquia.
​Peguemos a questão do modelo – ou da medida, usando de uma licença poética – de Justiça que queremos para uma sociedade. Esse dilema nos é apresentado na comédia shakespeariana “Medida por Medida” (de 1604), que é considerada, de par com “O Mercador de Veneza” (1597), como registra Daniel J. Kornstein em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005), uma das duas peças marcadamente “jurídicas” do bardo.
​Até para não fazer spoiler, deixo a trama de “Medida por Medida”, em que nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, para uma futura pesquisa/leitura de vocês. Mas colho algumas sentenças do seu texto: “Que lhe perdoe o céu, como a nós todos! Uns sobem pelos crimes; outros caem pela virtude. Alguns vivem impunemente, nos vícios atolados, outros por uma falta são julgados”; “Não podemos medir nossos vizinhos pela nossa bitola; os poderosos riem das coisas santas; o que neles é espírito, não passa de disforme profanação nos outros”; “antes de a alguém castigar, deve seus erros pesar. Vergonha para quem pune pecados sem ser imune”; “Leis para todas as faltas (...): são motivo de zombaria mais que de advertência”; “Dizem que os melhores homens hão de conter sempre defeitos e que chegam a ser melhores quando alguma coisa de ruim contêm”. Em “Medida por Medida”, numa terra onde o vício floresce, a justiça implacável parece ser a solução para todos os problemas. E a “justificada” tirania de um só “incorruptível” há de reparar o dano que a frouxidão tem causado. Mas aí é que surge a hipocrisia da justiça absoluta aplicada pelos homens. A justiça pura e absoluta, no mundo real, de paixões e fraquezas, porque simplesmente não funciona, não é a medida certa. Pelo menos não na visão do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou – que foi Shakespeare.
​Considerando os modelos/paradigmas da “justiça absoluta”, da “justiça equitativa” (com base nas particularidades do caso) e do “devido processo legal”, à moda de Shakespeare, o direito da Federação em “Star Trek” opta claramente por rejeitar a ideia de justiça absoluta. Como se lê em “Star Trek Visions of Law & Justice”: “Dentro das várias reencarnações de Star Trek, esses modelos, paradigmas se vocês assim desejarem, de direito e justiça são vistos em constante conflito. Este conflito se dá em nível macro na oposição entre o equitativo/processualmente justo modelo da Federação v. os modelos absolutos dos ditos primitivos Klingons, Romulanos e Ferengis, dentro da Federação entre os seus mundos, e especificamente como um tema de constante conflito dentro da Frota Estelar, quando a absoluta Primeira Diretriz [de não intervenção em outras civilizações] se choca com equitativas considerações de justiça em situações concretas”.
​No mais, é fundamental não confundir a ideia de justiça absoluta com sistemas políticos autoritários ou totalitários. Aquela pode ser uma característica comum a esses. Mas essa perigosa justiça absoluta pode também andar disfarçada no mais edílico dos sistemas políticos. Aliás, foi ao fim de um episódio de “Star Trek: the Next Generation”, em que uma punição é buscada a qualquer preço, que o capitão da Enterprise, Jean-Luc Picard, alertou aos seus companheiros de jornada: é fácil identificar o bandido que enrola o bigode; difícil é identificar aquele que, sob uma falsa aparência de justiça, em verdade faz terror.
Bom, os autores de “Star Trek Visions of Law & Justice” indagam: deve ser “Star Trek” objeto de estudo da ciência política, da sociologia, da filosofia ou mesmo virar um novo campo para os estudos jurídicos [à semelhança de como se dá com a obra de Shakespeare, acrescento eu]? Advogo que sim; e para toda boa ficção científica. Anteciparemos muitos dos nossos problemas – jurídicos – do futuro. Aqui não posso pedir para que se escreva um livro “Jornada nas Estrelas e a filosofia do direito” como obra seminal. Essa obra já existe em “Star Trek Visions of Law & Justice” (ou em outros estudos que eu desconheço). Mas que tal subirmos nesses “ombros de gigantes” para enxergarmos mais longe? Explorando novos mundos, novas vidas, novas civilizações, juridicamente “indo onde nenhum homem jamais esteve!”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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