O Tribunal dos Mortos
Marcelo Navarro Ribeiro Dantas
Quem julga, já morreu. GUIMARÃES ROSA
Quando eu era um jovem Procurador da República, no começo da década de 1990, visitando a então sede da do Ministério Público Federal, um velho Subprocurador-Geral me contou uma história sobre os primeiros concursos daquela Instituição: um causo de que jamais me esqueci.
Dizia ele que um colega, dos mais antigos ― e que sempre procurava participar das bancas dos primeiros certames de ingresso na Casa ―, era um examinador implacável. E se jactava: “Não dou dez a ninguém. O dez é meu. Nem nove. O nove é de mamãe. E, para completar, o oito é do meu pai. Sete é a maior nota que eu concedo.” Mas os ouvintes objetavam: “E se o cara acertar todas as perguntas, como é que você vai justificar isso?” E ele respondia, impassível: “Eu pego o sujeito na prova oral. Pergunto o que era o Tribunal dos Mortos na Roma antiga. Se ele souber, eu dou oito. Aí eu pergunto qual era a composição do Tribunal dos Mortos. Caso responda, tem meu nove. Então eu pergunto quem era o Presidente do Tribunal dos Mortos. Na improvável hipótese de ele acertar, aí sim, tem o dez. Mas nunca ninguém soube nem da primeira!... Por isso, até hoje, a maior nota que eu registrei foi um sete mesmo...”
Eu, na época, procurei em toda parte essas informações. Só as achei depois, num livro do Professor Cruz e Tucci (e L. C. Azevedo) sobre Processo Civil Romano. Está lá no finzinho da p. 34 (na edição que tenho). Depois encontrei em outras fontes. Hoje em dia está tudo não apenas nas bibliotecas, mas também online. Mas pouca gente liga, atualmente, para o Direito Romano ― o que é um grande erro, mas isso é tema para outro texto ―, e essa história me marcou. Como as informações são interessantes, aproveito para contar. Velho adora contar coisas.
Pois bem.
Durante o século V d.C. (os muito politicamente corretos preferem EC – Era Comum), o Império Romano vivia um cenário de proliferação desordenada de leis imperiais (constitutiones principum), oriundas de sucessivos imperadores. O volume, a sobreposição e as contradições entre normas antigas e recentes geravam insegurança e confusão interpretativa entre magistrados e advogados. Para remediar esse quadro ― com o qual os brasileiros de hoje já se acostumaram ―, o imperador Teodósio II (408–450), em acordo com Valentiniano III (425–455), promulgou, em 426 d.C., uma constituição imperial notável — a Lex Citandi (Lei de Citações), inserida posteriormente no Código Teodosiano (CTh 1.4.3).
Essa norma fixava quais jurisconsultos clássicos poderiam ser citados com autoridade legal (auctoritas), e como resolver divergências entre eles.
Por determinar que somente juristas já falecidos (Papiniano, isto é, Aemilius Papinianus; Ulpiano, ou seja, Domitius Ulpianus; Paulo, melhor dizendo, Julius Paulus; Gaio ou Caio, de quem só nos chegou o prenome, Gaius; e Modestino, a saber Herennius Modestinus) tinham força vinculante, os humanistas posteriores — especialmente os glosadores medievais e os juristas renascentistas — apelidaram esse dispositivo de “Tribunal dos Mortos” (concilium iurisprudentium defunctorum).
A transcrição latina do Código de Teodósio (CTh 1.4.3 – De responsis prudentium) reza:
“Papiniani, Pauli, Ulpiani, Modestini atque Gaii sententiae receptae leges obtineant; eorumque omnium commentarios et responsa, quorum memoriam sacri temporis veneratio consecravit, iudices pro suis sententiis accipiant.”
Ou, em português:
“As opiniões de Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e Gaio terão vigor de lei; e os juízes deverão acatar, como se fossem suas próprias sentenças, os comentários e respostas de todos esses cujas memórias foram consagradas pela veneração dos tempos.”
Primeira e segunda perguntas (lá do começo do texto) respondidas. Chegamos ao nove.
Falta, para o dez, saber quem era o “Presidente” do Tribunal dos Mortos, o que se descobre no final da mesma passagem acima transcrita, que vai adiante, também no original e em vernáculo:
Si de una re diversa sit eorum sententia, plurimorum auctoritas obtineat; si pares numero paresque merito fuerint, Papiniani responsum praevaleat; cuius tamen scripta non aliorum commentariis submoveantur.”
“Se, sobre um mesmo assunto, houver divergência entre suas opiniões, prevalecerá a autoridade da maioria; e, se forem iguais em número e mérito, prevalecerá a resposta de Papiniano — cujos escritos, todavia, não deverão ser rejeitados pelos comentários de outros.
Esse trecho consagra juridicamente a autoridade póstuma de cinco mestres do ius clássico e coloca Papiniano como um Chief Justice simbólico, pois sua opinião decidia os empates.
A Lex Citandirepresenta a primeira tentativa sistemática de hierarquização das fontes jurídicas no mundo romano tardio. Sua intenção era dupla: de um lado, racionalizar o uso das fontes — restringindo o número de autores cuja doutrina teria força legal; de outro, uniformizar a interpretação — evitando que juízes se apoiassem em textos de autores obscuros, contraditórios ou apócrifos.
Assim, criou-se uma espécie de “tribunal simbólico” de juristas mortos, cujas vozes ainda decidiam litígios vivos. Um momento em que a aplicação da Justiça pareceu desafiar a frase famosa que seria escrita muitos anos depois: a famosa afirmação de Bergeret de que a lei é morta, mas o juiz está vivo.
Com efeito, quem diz a frase é Lucian Bergeret, mas ele ― diferentemente do que alguns pensam, e até o citam como se fosse um jurista francês do passado ― em verdade, jamais existiu. É criação do grande escritor francês Anatole France. Aparece numa tetralogia de romances deste, História Contemporânea, composta de À sombra do olmo, O manequim de vime, O anel de ametista e O Senhor Bergeret em Paris.
Há também uma coleção de contos, em francês Crainquebille, Putois, Riquet et plusières autres récits profitables. Ao pé da letra, Crainquebille, Putois, Riquet e muitos outras histórias proveitosas. Esse livro foi traduzido em português como A justiça dos homens, edição que só ganhei depois que a citei num prefácio que fiz para o amigo Napoleão Maia, jurista e poeta cearense, que me fez esse mimo.
Pois bem: o sr. Bergeret está presente em várias das histórias antes mencionadas, e, numa delas, chamada Jean Marteau, a frase em foco ― além de intitular o capítulo II ― vem no seguinte contexto, em que fala o personagem mencionado (tradução minha, da edição eletrônica original referenciada no fim deste artigo): “
― "Eu meditei na Filosofia do Direito ―, disse o Sr. Bergeret ― e passei a reconhecer que toda a justiça social repousa em dois axiomas: o roubo é condenável; o produto do roubo é sagrado. Eis os princípios que garantem a segurança dos indivíduos e mantêm a ordem do Estado. (...) Eles foram estabelecidos desde o começo das eras... ...
― Mas de qualquer modo ―, diz o Sr. Goubin ―, há leis justas. ― O sr. Acredita? ―, pergunta Jean Marteau. ― O Sr. Gobin tem razão ―, diz o Sr. Bergeret. ― Há leis justas. Mas a lei, sendo instituída para a defesa da sociedade, não poderia ser, em seu espírito, mais equitativa que esta sociedade. E se essa sociedade é fundada na injustiça, as leis terão por função defender e sustentar a injustiça. E parecerão, portanto, tão mais respeitáveis quão mais injustas forem. Observem que, sendo, na maioria das vezes, muito antigas, elas representam não propriamente a iniquidade presente, mas uma iniquidade passada, mais rude e mais tosca. São monumentos de tempos mais brutais, que subsistem nestes dias mais amenos. ― Mas se pode corrigi-las ―, diz o Sr. Goubin. ― Pode ―, responde o Sr. Bergeret ―. A Câmara e o Senado trabalham nisso quando não têm outra coisa para fazer. Mas a base subsiste: e é amarga. Para dizer a verdade, eu não teria muito medo de leis ruins se elas fossem aplicadas por bons juízes. A lei é inflexível, dizem. Eu não acredito que seja. Não há texto que não se deixe ser amaciado. A lei está morta. O magistrado está vivo, essa é uma grande vantagem que ele tem sobre ela. Infelizmente, ele quase não a usa. Normalmente, ele se mostra mais morto, mas frio, mais insensível que o texto que aplica. Ele simplesmente não é humano; simplesmente não tem piedade. O espírito de casta abafa nele toda simpatia humana.”
Como quer que seja, a escolha dos cinco integrantes do Tribunal dos Mortos foi emblemática: Papiniano foi um mártir da Justiça, executado por recusar-se a justificar o fratricídio de Geta por Caracala; Ulpiano e Paulo foram os maiores representantes do pensamento jurisprudencial severiano; Gaio, o mestre do ensino jurídico de Roma e o autor das Institutas, única obra da fase jurídica romana clássica que sobreviveu; e Modestino, o último grande jurista do Direito romano clássico.
Quando as opiniões se dividissem (por exemplo, três contra dois), o juiz seguiria a maioria. Se houvesse empate (dois contra dois, ou divergências não mensuráveis), a autoridade moral e científica de Papiniano prevaleceria — daí o epíteto de “presidente do Tribunal dos Mortos”.
A Lex Citandi vigorou formalmente até a compilação do Código Teodosiano (438 d.C.), e influenciou decisivamente a metodologia jurídica posterior. No Direito Justinianeu (século VI), as opiniões desses mesmos juristas compuseram as Pandectas ou Digesto (não custa lembrar que as Pandectas foram norma positiva, até recentemente ― 1900 ― na Alemanha, por exemplo). Na Idade Média, os glosadores de Bolonha (séculos XI–XIII) viram nesse cânone uma antecipação do princípio da autoridade das fontes e do consenso doutrinário. Na teoria moderna dos precedentes, o critério de seguir a “maioria das autoridades” (e, no empate, o “decano”) ecoa claramente a solução teodosiana.
Essa tradição não nos é estranha, muito pelo contrário. Desde o final da Idade Média, o Direito português estruturou-se sob forte influência das fontes romanísticas e canônicas, mediadas pela tradição glosadora e pós-glosadora do ius commune. Entre os mestres italianos, Bártolo de Sassoferrato (1313–1357) destacou-se como a maior autoridade interpretativa do Corpus Iuris Civilis, sendo considerado, por séculos, princeps legum e doctor legum, cuja palavra — a chamada opinio Bartoli — valia, na prática, como verdadeira lei subsidiária.
O peso da doutrina bartolista no ordenamento jurídico português foi tamanho que se pode afirmar ter existido, até o século XVIII, um governo das opiniões dos mortos — expressão que bem traduz o caráter de autoridade quase sagrada conferido aos juristas clássicos e medievais. A aplicação dessas opiniões não decorria apenas de veneração intelectual, mas de uma necessidade institucional: diante da ausência de legislação casuística e da fragmentação normativa dos reinos medievais, os ensinamentos dos grandes doutores — sobretudo de Bártolo e de seu discípulo Baldo degli Ubaldi — serviam como direito comum subsidiário, apto a suprir lacunas e orientar decisões judiciais.
Por sinal, com o intuito de consolidar tal herança e assegurar maior uniformidade às decisões, D. João I (que reinou de 1385 a 1433) mandou traduzir e compilar, em português, um extrato do Codex Justiniani, acompanhado da Glosa de Acúrsio e dos Comentários de Bártolo, tornando-os de consulta oficial. Essa obra visava difundir entre os juízes e letrados lusitanos o acesso direto às fontes do ius commune, sem depender do latim técnico. Para tanto, o rei contou com a colaboração do eminente jurista João das Regras, seu chanceler-mor, que sistematizou o uso dos textos romanísticos e das glosas como instrumentos de hermenêutica jurídica e de fixação de jurisprudência uniforme.
A partir de então, consolidou-se no reino a prática segundo a qual, na ausência de disposição expressa nas Ordenações, os juízes deveriam recorrer, sucessivamente, ao Direito Romano, ao Direito Canônico, à Glosa de Acúrsio e, finalmente, à opinião de Bártolo, que tinha, portanto, força supletiva e vinculante. Tal hierarquia hermenêutica foi expressamente incorporada nas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), em dispositivos que estabeleciam o modo de “julgar os casos que não forem determinados por as Ordenações” (Ordenações Afonsinas 2,9,2–3; Ordenações Manuelinas 2,5 pr., 1–3; e Ordenações Filipinas 3,64).
Essa estrutura dogmática tinha o propósito de garantir segurança jurídica e uniformidade jurisprudencial, evitando a dispersão interpretativa entre os juízes do reino. A doutrina dos mestres italianos funcionava, assim, como um ius commune eruditorum, cuja autoridade emanava não do poder político, mas da ciência do Direito.
Essa influência, todavia, começou a ser questionada à medida que o pensamento iluminista e o reformismo jurídico pombalino difundiram a ideia de que o Direito deveria submeter-se à razão natural e às necessidades concretas da sociedade portuguesa, e não à mera autoridade de textos medievais. O ponto de inflexão deu-se com a Lei da Boa Razão, promulgada em 18 de agosto de 1769, sob o governo de D. José I e a direção política do Marquês de Pombal. Essa lei determinou que os juízes e tribunais não mais se apoiassem automaticamente nas opiniões de glosadores e comentadores antigos, devendo, ao contrário, decidir conforme a boa razão, isto é, de acordo com os princípios do direito natural e das luzes da razão moderna, além dos usos e costumes próprios do Reino. A norma estabelecia que o Direito Romano só poderia ser aplicado quando estivesse de acordo com a “boa razão, os princípios das leis pátrias e a utilidade pública”, afastandose o apego cego às interpretações bartolistas.
Apenas com a Lei da Boa Razão rompeu-se o ciclo de dependência do ius commune e inaugurou-se o caminho para a autonomia do Direito Português, abrindo espaço para a codificação nacional e para o nascimento de uma dogmática jurídica própria. O prestígio dos juristas mortos — sobretudo Bártolo — cedeu lugar à razão viva dos intérpretes modernos, sintonizados com o espírito das reformas ilustradas e com o novo paradigma de soberania racional do Estado.
Dessa forma, o “Tribunal dos Mortos” foi, em sentido técnico, um colegiado jurídico imaginário, mas de efeitos práticos e normativos concretos, que estabeleceu a base hermenêutica do direito ocidental codificado.
O chamado Tribunal dos Mortos de Teodósio II foi uma criação jurídica engenhosa para um império saturado de leis e carente de juristas vivos à altura dos clássicos. Transformou o legado de Papiniano, Ulpiano, Paulo, Gaio e Modestino em verdadeira autoridade normativa, antecipando a noção de corpus doutrinário oficial.
A Lex Citandi, portanto, não apenas prestou homenagem à jurisprudência clássica — ela instituiu a primeira forma de controle de precedentes e fixação de jurisprudência obrigatória na tradição jurídica ocidental, que teve imensas consequências na formação jurídica da Europa continental e, em especial, do Direito português (daí chegando a nós). O que fora o Tribunal dos Mortos para Roma foram depois as glosas e opiniões dos medievalistas, principalmente Bártolo, para Portugal, ao menos até a Lei da Boa Razão.
Recordar uma passagem do começo da minha vida profissional me dá a oportunidade de lembrar um momento importante do Direito Romano e fazer um link com a Teoria dos Precedentes que é hoje ― já na academia, já no tribunal ― uma parte importantíssima e muito atual da minha experiência como professor e como juiz.
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