Núbia Lafayette: o canto como necessidade
Texto de Márcio de Lima Dantas
Para Ridam, descoberta
Não pertence ao momento: vive
um mundo imemorial que passou,
que não terá chegado ou talvez
nem chegue nunca, pois instável.
Henriqueta Lisboa
A norte-rio-grandense Idenilde de Araújo Alves da Costa, nascida a 21 de janeiro de 1937, cujo nome artístico, por sugestão de Adelino Moreira, ficou sendo Núbia Lafayette, é originária do vale do Açu. Hoje, o Saco, antigo distrito de Ipanguaçu, constitui parte do município de Itajá. Atualmente, reside no Rio de Janeiro. Embora tenha seu nome vinculado ao que se chama de “música de roedeira” ou “repertório de cabaré” - hoje sintetizado, pejorativamente, por certos grupos, no “cantora de churrascaria” - atino que outros elementos entornam sua presença no palco e sua maneira de se portar em cena e de interpretar. Malgrado esses signos depreciativos orbitando em torno da cantora, não podemos olvidar o fato do seu nome estar honradamente vinculado ao de grandes nomes da cena musical do país, como um Ataulfo Alves, bem como de ter participado dos tempos áureos do rádio.
A cantora que tornou um clássico a música Casa e comida detém, na sua compleição facial, a angulosidade e o semblante saturniano, que, via de regra, são encontrados nos que sofrem os talhes do Destino, consubstanciados que estão por inumeráveis vicissitudes e açoites das permanentes forças da vida, as quais, com seu dedo em riste, seleciona alguns para cumprir a sina dos que transubstanciam a dor em letra, melodia, enfim canto. Falo daqueles necessitados de representar, por meio de arquétipos desde sempre presentes no Imaginário, o sofrimento em algo tangível, com signos pertencentes às vizinhanças da arte com seus inumeráveis círculos concêntricos inerentes ao que o humano carrega de trágico e forças indomáveis.
Quem duvidaria da autenticidade dessa cantora? Com certeza ela não poderia ter abraçado outro oficio, pois recebeu o chamado para confundir arte com vida e, assim, ritualizar, com suas vivências pessoais, a encenação no palco do mito do amor inexoravelmente fadado ao fracasso.
Tal componente antropológico – o de um indivíduo destacar-se cristalizando um sistema de pensamento ou um conjunto de representações, ou apreender e dramatizar por meio de uma expressão artística, certos sentimentos ou aspectos integrantes da vida social - é de natureza tão tenaz e tangível que, mesmo em condições sobremodo adversas, chega como necessidade de se cumprir, de se fadar, haja o que houver.
Sem dúvida, a vida em sociedade produz indivíduos, ou certos grupos, responsáveis para colocar em cena o caráter trágico da condição humana; tais sujeitos sociais detêm na carne e no espírito um não-sei-quê de pendor ou força para atrair signos fortalecedores do paradigma mítico ao qual a pessoa está “naturalmente” vinculada. Em assim sendo, o núcleo do mito funciona como espécie de energia centrípeta, exercendo atração sobre imagens capazes de fomentar uma maior voltagem semântica acerca do que representa no seio da vida social, ou seja, ao mito interessa sua eficácia e sua lógica interna, sendo sua capacidade de produzir sentido e harmonia no âmbito das micro e das macrorrelações sociais sua função primacial.
Como dizia, aquela que consagrou Fracasso detém em suas interpretações algo puxado a amargo, porque elas sugerem uma mescla de poesia somada a um forte componente de ordem pessoal. A mulher tece no fôlego o desencanto de quem parece ter vivenciado na pele o que é de ordem ficcional, estendendo para a platéia uma fronteira imprecisa que desperta o sentimento sito entre a piedade e uma identificação plena de temores e realizando o que Aristóteles chamava de catarse .
Aquela que o povo consagrou como “voz de veludo” tem o pejo de um it encontrado na cantora egípcia Oum Kalsoum, na grega Maria Callas, nas brasileiras Nora Ney, Elizete Cardoso, Clementina de Jesus, Elis Regina, na caboverdiana Cesária Évora, na espanhola Niña de Los Peines ou na portuguesa Amália Rodrigues. Todas elas detentoras de um não sei quê capaz de sintetizar, na sua carreira de artista, as inquietudes de uma geração ou o espírito do tempo de um dado momento histórico, e até mesmo certos traços acentuados por uma etnia. Quero falar dos artistas que infundem respeito e um certo hieratismo de quem impõe a presença por meio de um discurso corporal, de uma fala ou de uma personalidade demandadores de reverência, obrigando o expectador a remexer suas áreas atávicas, numa busca de situar o personagem numa tradição da história da arte, fazendo crer que o encenado no palco é matéria para ser levada a sério, pois é o que o humano alcança de melhor, ao simbolizar o caráter trágico da existência através da arte, transubstanciando o factual, com suas arestas, em cristais duráveis e permanentemente dotados de capacidade para resplender em qualquer espaço ou tempo, pois certas estruturas antropológicas nos acompanham, vigilantes, desde sempre.
E se quisermos estabelecer analogias com outras tradições do canto, podemos evocar as cantoras de blues ou de fados. As trajetórias de tantas delas acabam por confundir o representado no palco com momentos de suas vidas, dificultando a separação entre o vivido e o biográfico. A imprecisão é de tal monta que acaba tudo numa espécie de encenação. A vida e suas recorrentes eventualidades funcionam como pauta, de modo que mais se vive no cenário do que se produz arte, embaçando fronteiras, juntando o factual com o estético. Poesia, canto, dança (o que na Antiguidade grega chamavam de MUSIKÉ) concorrem para acentuar a dramatização de algo da ordem de experiências dolorosas, que estão veladas e implícitas, fazendo com que o expectador produza intimamente uma espécie de identificação. E eis que do corpo no palco reverbera em voz a condensação de uma espécie de matéria impossível de vir a ser linguagem, de organizar aquela contextura em palavra, contentando-se o espectador em silenciar, mesmo que seu íntimo esteja chafurdado, assanhando águas adormecidas.
Podemos pensar que se trata da cristalização, em forma de cantar, de uma espécie de dor, quem sabe, tipicamente oriunda das classes populares, que se representa por meio de queixumes e lamentos capazes de dramatizar em imagens hiperbólicas o pranto advindo quase sempre de um fracasso amoroso. Com efeito, a experiência amorosa é a matéria da qual a cantora extrai as sombras lancinantes que envolvem a interpretação das letras. Interessante é que no seu modo de cantar há uma espécie de pressa da voz, coisa parecida com uma (des)impaciência, não sei explicar direito, mas é como se houvesse um descompasso entre a palavra cantada e a melodia que ela, a voz, tem a obrigação de sincronizar, para que haja a desejada afinação (dizem que os músicos de Elis Regina viam-se doidos, pois a cantora não respeitava os instrumentos; os músicos é que tinham de acompanhá-la). A pressa funciona como busca de articular a pungência das emoções, de verbalizar o que lacera, de fazer manar a necessidade que as entranhas ansiosamente teimam em fazer imagens, numa tentativa de aplacar o que punge.
É engraçado como tudo acima dito só nos leva a pensar quanto o que conhecemos como “Amor” não passa de uma construção social, ou seja, ama-se de uma maneira porque fomos acostumados a isso vemos desde sempre tal comportamento em evidência, conseqüentemente há também uma específica maneira de sofrer quando nos arriscamos nas veredas das paixões e dos amores. Em assim sendo, não se trata de algo natural, mas introjetado nos sujeitos sociais quando do processo de socialização, vindo a impregnar o Imaginário coletivo ou integrar nosso esteio simbólico de ordem mais particular, digamos assim, estando-se este, eivado de sinais, mitos e obras de arte ritualizadores do amor romântico.
Alguns países ou cidades mais cosmopolitas pouca importância ao feitio da forma com a qual fomos acostumados a amar. Só para se ter uma idéia: quando do final de um casamento, para alguns, no mundo de hoje, não há o sentido de fracasso, mas de uma experiência a mais que não logrou êxito. Já li que as gentes escandinavas pensam assim. Embora seja difícil falar do amor, não há como deixar de lado certas ilações ou constatações. O amor é faca de dois gumes: cinde o ser que, recalcitrante, repete a experiência do desejo de amar e ser amado, mesmo inconscientemente sabendo da impossibilidade e do inelutável quando o humano se intromete, ansiando deter nas mãos as rédeas das coisas relacionadas às emoções.
Cultural ou não, o certo é que estamos fadados a elaborar algum tipo de variação opinativa acerca dos assuntos relacionados ao amor. Quem sabe o fato de Núbia Lafayette esculpir uma maneira de cantar, com feição visivelmente melancólica, tenha a ver com essa necessidade de expressar as circunstâncias presentes nos relacionamentos amorosos que, em grande parte, não passam de pura fantasia ou medo e ânsia de se negar a condição de estarmos fadados a sermos sozinhos, sobretudo porque a solidão integra e entrega o humano como matéria extremamente frágil e susceptível às intempéries de toda ordem.
O pior disso tudo é saber que o outro não tem como nos aplacar, se permanecermos obstinados, escoiceando a lógica autônoma que rege os distritos do amor Só instalaremos uma guerra íntima, uma desavença interior, aumentado o sofrimento e turvando uma eventual possibilidade de instalarmos um distanciamento crítico capaz de deslocar parte da nossas afetividade para outros objetos ao nosso redor, conduzindo-nos a um relativo equilíbrio, lastreado na prudência e na capacidade de transferir o afeto de um objeto para outro.
Até que tentaram afugentar um pouco os estigmas que rodeiam o nome da cantora; tanto é que se organizou um LP com músicas e compositores mais reconhecidos pela mídia e pelo público como de qualidade, tais como Gonzaguinha, porém é consabido o valor e o peso do campo simbólico no qual se lastreia um fenômeno.
Assim sendo, a cantora permaneceu ocupando um espaço equivocado, face a seu estofo como cantora, ritualizando um modo em extinção de amar, um feitio do sofrimento que pouco condiz com o jeito de ser em uso na sociedade contemporânea. Basta ver o quanto sua interpretação e presença têm de índices evocadores de signos que remetem à decadência e ao fracasso. Presa a um tempo que cumpriu seu ciclo vital, a cantora Núbia Lafayette recolhe os resíduos espalhados nos corações dos remanescentes e dos saudosistas de uma época encerrada, pois as horas pingam seus turnos em ampulhetas acumuladas no imenso arquivo da História.
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