sábado, 23 de julho de 2022

 

TOMÉ DE LUDUGERO – UMA HISTÓRIA DOS SERTÕES DO SERIDÓ.
Grassava um setembro quente nas eras de 98. Rumava na crina oeste da Borborema Potiguar, rincão da Serra do Doutor, no azimute do velho Seridó, cruzando o Riacho do Maxixe, onde até aí, ainda viçam os velhos facheiros sob a forma de cálices sepulcrais; espinhentos e ruídos na base pelo preá da caatinga, velho freguês do cascavel asqueroso.
Dando lugar daí em diante, ao reino dos xique-xiques e de mandacarus, entrelaçados pela jurema e marmeleiros desnudados de sua folhagem sedosa e aromática, que quando na puberdade, Rebento das águas de março, é velho coito de reprodução das mutucas sanguinárias.
Manhã calorenta, embora ainda meã. Prenunciava uma tarde abrasadora, como resultado do sol do equinócio primaveril. Desejava visitar no “Manhoso”, um velho conhecido. Naveguei na terra de Paulo Balá, escriba das “Cartas do Sertão do Seridó”, sem deixar rastro no Gargalheiras. Havia pressa, logo comecei a avistar o amarelo desbotado das “macambiras de pedra” nos umbrais da Serra da Rajada. Velho peador e ponto arranchação de matutos almocreves, que da primeira metade do Século XIX até os dois primeiros quartéis do século XX, traziam peixe escalado e salpreso do Sertão, para o Brejo paraibano e trocavam por aguardente, revendendo-a como remédio, para mulheres curarem o “resguardo” nas terras do Caicó e de todo o Seridó.
Meneei sutilmente e ao largo para a terra de Manoel Paulino, velho alcaide jardinense da melhor estirpe. Daí, segui no asfalto, meandrando a ribanceira esquerda do Rio Seridó, sem perder de vistas os carrascais favelados e as arribaçãs da caatinga colhendo a sementeira destes. O destino imediato era o Rio Barra Nova, vertente do Itans, cujo leito pretendia cruzar. Eis que de chofre, vislumbro a silhueta de um velho ancião octogenário, caco de enxada nas costas, um matolão desbotado dependurado e um cabaço que lhe servia de cantil. Arrastava uma perna, como se tivesse sofrido da popular congestão, que os entendidos chamam de acidente vascular cerebral.
Passava de meio dia, a cigarra trinava nos pés de velame, numa incelência apelativa e mórbida, protestando contra o braseiro que lhe caía. Em sentido contrário, cumprimentei aquele vivente e rumei no destino que era perto. Não encontrei o velho seridoense Dadá em sua fazenda. Voltei à passo de gazela*, lá ia nova mente, a figura mancando, ofereci-lhe carona, não aceitou.
Numa distância mediana, parei o carro, dei meia volta, e insisti novamente, pedindo-lhe explicação, porque numa hora daquela, desdenhava o meu gesto. Porém, antes que me desse resposta, perguntei-lhe: qual sua graça? O velho seridoense, de gesto labial trêmulo, não se fez de rogado. “Eu sou TOMÉ DE LUDUGERO, seu criado, nasci e me criei na ribanceira do ri Seridó”. Afogado na emoção repentina, também de voz trêmula, fui mais que de repente e lhe falei: Eu sou aquele menino da ribanceira do Rio Piranhas, que na seca de 58, vinha visitar suas velhas tias avós, Benigna e Paulina, e a vaca sabiá, que parira duas bezerras, a quem o senhor dava mandacaru trinchado.
Eis que também de repente, levantou a cabeça, fez tino pro meu lado e disse: espere... O Senhor é Doutor Jair? Lágrimas do ancião caíam da face em crosta, que abraço! Reencontro de dois monstros sagrados da amizade fraterna, hospitaleira, no melhor padrão seridoense.
Saudades de 40 anos idos, “eu pensando na minha infância com a vaca sabiá e TOMÉ DE LUDUGERO revendo o menino já Doutor. Ato contínuo, deu de garra dos apetrechos, entrou na camionete e fomos para sua casa. Uma tapera de barro, linhas de miolo de aroeira centenária, caibros e ripas de pereiro caatingueiro, tendo como móveis mais nobres: dois tamboretes de caibeiras, onde num sentei, e fiz a provocação. Como tem passado? Foi aí que começou a história de TOMÉ DE LUDUGERO.
“Meu filho, perdi Salomé minha mulher há dez anos. Minha filha Julieta, “buliram” com ela, e nasceu esse menino. Somos dois viventes sem viver, quando chego ele sai, quando chega estou dormindo. A mãe vive em São Paulo, faz anos... manda cinqüenta mil réis no mês, para ajudar na sua mantença. O pai não lhe deu a bênção, é a vida.
De soslaio, olhei em meu redor, vi no obtuso destino daqueles viventes, a fagulha da miséria: Um fogão de trempe, onde jazia uma porção de “feijão macassar”, dentro de uma panela de barro, tinturada até as bordas pela pucumã diária, que seria a refeição do velho Tomé, pois, o menino já comera feito “ raposa” com um naco de rapadura do Cariri, cujo resíduo ainda estava no prato.
Nesse ínterim intervém o ancião: aqui é assim, tenho o aposento que compro o meu remédio, a mistura e ajudo esse menino que vai para a escola todos os dias. O “grosseiro”, tiro do roçado, que me serve pras duas coisas, espicho as pernas também. Daí não ter aceitado o seu carro. Antes vinha o transporte, que me levava para o tratamento (fisioterapia), depois não veio mais, é a vida. Saio de manhã, deixo a panela no fogo, feijão n’água e sá, quando seca a água, esse menino puxa a lenha para traz. Tem dia que coze, tem dia que ta cru, se come assim mesmo, não tem “muié”.
De repente, me vi como se estivesse numa sala de aula, colhendo os ramalhetes de cidadania, embriagado de TOMÉ DE LUDUGERO, o meu melhor personagem naquele instante, e da minha vida, como professor e como escriba. UM VELHO, octogenário, bocejando em linguagem arrastada, cristalina preocupação cidadã, doente, carcomido pelo tempo, sem a sua dileta companheira, abandonado pelo Estado. Uma criança sem lar e sem o affetio maternal. Uma mãe distante, sem afagar seu rebento, é a vida. .Em assim sendo: TOMÉ DE LUDUGERO ME DEU A MELHOR AULA DE MINHA VIDA.
J.E.S.
4
1 comentário
1 compartilhamento
Curtir
Comentar

Nenhum comentário:

Postar um comentário